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Artigo
A ditadura militar revisitada: literatura, teatro e cinema
Por Francisco Foot Hardman e Alcir Pécora
10/04/2015
A passagem dos cinquenta anos do golpe militar de 1964, no ano passado, propiciou um forte impulso aos debates e rememorações em torno do assunto, muito diversos em conteúdos e gêneros discursivos, por todo o país. Da mesma forma, não exatamente por causa da efeméride, mas tomando-a igualmente como marco favorável à reflexão, resolvemos oferecer, desde o ano passado, na graduação de letras do período noturno do Instituto de Estudos da Linguagem, um curso sobre representações culturais da ditadura militar. Neste primeiro semestre de 2015, o curso se encontra já em sua terceira edição pelo terceiro semestre consecutivo de oferecimento. Mas, além de ser ministrado com siglas diversas, seu conteúdo programático tem se modificado sempre e, até agora, não repetimos os materiais apresentados e discutidos em sala de aula. Por conta disso, vários alunos têm escolhido cursá-los em sua sequência. Mas, também, cada programa possui desenvolvimento autônomo. E, sendo eletivos, podem sempre receber novos alunos, sem pré-requisito além do interesse próprio, mantendo-se absolutamente abertos a alunos de todas as áreas de conhecimento.

Estudamos, nesses cursos, diferentes representações literárias, dramatúrgicas e cinematográficas da ditadura militar, com destaque maior para narrativas coevas às experiências vividas naquele período (1964-1985), mas incluindo também outras, posteriores e mais recentes, conforme a solicitação de um ou outro problema examinado. Nesta terceira edição, com cerca de 60 alunos, podemos já dizer que o interesse tem se mantido grande em todos os semestres, mas é um interesse que, também podemos afirmar agora, ocorre em proporção inversa ao grau de desinformação geral que a atual geração de estudantes – estamos falando especialmente de alunos na casa dos 20 anos – possui sobre a história contemporânea do Brasil.

Essa desinformação também pode ser analisada dentro do próprio escopo de nosso programa. A desmemória, assim como se apresenta, em parte, fruto da repressão e da censura impostas pelo regime militar, e também do persistente processo de destruição da educação pública primária e secundária, cujos efeitos disseminaram-se entre pessoas, famílias, grupos e classes –, neste momento, ela já se alia desafortunadamente à dispersão de mídias, à aceleração do tempo de consumo e de seu correlato, o “tempo de desatenção”, da banalização da imagem e da “selfiezação” da sociedade de massas, voltada mais para a auto-fixação de projeções narcísicas do “eu mínimo” (a expressão é do ensaísta Christopher Lasch em livro homônimo) do que para o desejo de conhecer e investigar as camadas mais opacas do real. Como resumiu bem o professor Salvo Vaccaro, cientista político da Universidade de Palermo, em seminário sobre Michel Foucault, em João Pessoa, no ano passado: enquanto em regimes ditatoriais, autoritários ou totalitários, a censura se faz diretamente pelo controle e falta de informação, pelo não acesso deliberado a suas fontes, no atual cenário global midiatizado estamos sujeitos a outra forma de censura, mais sutil e não menos eficaz – a do excesso de informações fragmentárias, que resulta da proliferação de textos descontextualizados e da superexposição de imagens.

Como se pode notar por essa simples apresentação, o tema das representações culturais da ditadura militar é vasto em suas possibilidades de estudo. No nosso caso, a nossa pretensão básica é apenas a de que os alunos acompanhem um roteiro de aulas que informe sobre os acontecimentos decisivos de um período que desconhecem ou conhecem pouco, mas que o façam de forma a considerar, como abordagem privilegiada, não a informação historiográfica apenas, mas a relação que ela guarda com as diversas representações artísticas e culturais que a tomam como matéria. Para nós, não se trata apenas de contar o que foi a ditadura, ou de dar a nossa opinião, como testemunhas e intelectuais, sobre o que pensamos da ditadura e de seus horrores; mais do que isso, gostaríamos de levantar e estudar, por meio de debates livres, as formas privilegiadas pelas quais esses acontecimentos foram reconstruídos no âmbito de objetos e projetos artísticos de vária ordem.

Ou seja, a questão que nos interessa é, fundamentalmente, a de saber como a ditadura e seus horrores encontraram formas de serem enunciados. O propósito inalienável de alimentar o espírito crítico, antidogmático e democrático está, portanto, no curso, determinado pelo estudo dos processos de ficcionalização do real de e em situações de extrema dramaticidade e violência.

O requisito de nosso trabalho em sala foi, desde a primeira versão, claramente enunciado aos alunos: comprometer-se com a carga de leitura e empenhar-se intelectualmente para compor, com base em sua própria experiência de leitura, um exame comparativo de obras artísticas, historiográficas e políticas produzidas sobre a ditadura militar. A presença e a participação também foram seriamente exigidas, o que está longe de ser comum, e isto porque imaginamos que o exercício de elaboração argumentativa diante de obras variadas, muitas vezes com posições bem distintas entre si, e que dão margens a interpretações contraditórias, pareceu-nos que ganharia em ser incentivado na própria sala de aula, com as suas limitações e inibições, mas também com a variedade de suas perspectivas.

O curso também é fortemente crítico em relação a certa visão corrente na academia de que seria preciso ser especialista num tema para estudá-lo. Daí que, conquanto trabalhem com um tema histórico, dentro de uma perspectiva ficcional e memorialista, as aulas estão abertas para alunos de todas as áreas da Unicamp. E assim como a palavra-de-ordem “Abaixo a Ditadura!” foi capaz de unificar o pensamento e ação de milhões de pessoas em movimento de resistência contra o regime militar, levando, a partir da segunda metade dos anos 70, a seu crescente enfraquecimento até seu estertor, em 1985, esses cursos seriados pretendem também contribuir, nos seus limites, para que a perspectiva “Ditadura Nunca Mais!” seja um consenso das atuais gerações. E a maior aquisição para o “não será” é o conhecimento o mais aprofundado possível, mas sem condicionalismos disciplinares, daquilo “que foi”.

O exame dos tópicos temáticos, bibliográficos e/ou iconográficos pelos quais passamos pode ilustrar, concretamente, a ideia de ficção e de memória multifacetada e contraditória que tentamos abordar. Numa primeira versão do curso, sempre para alunos de graduação, oferecida no primeiro semestre de 2014, propúnhamos os seguintes tópicos e materiais literários e cinematográficos:

Unidade 1: Vítimas “invisíveis”: índios, camponeses

Callado, Antônio. Quarup. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. (romance).

Coutinho, Eduardo. Cabra marcado para morrer. 1964-1984. (filme documentário).

Tonacci, Andrea. Serra da desordem. 2006. (filme docudrama).

Unidade 2: Tortura, desaparecimento e morte em suas marcas textuais

Mota, Urariano. Soledad no Recife. São Paulo: Boitempo, 2009. (novela-memória).

Kucinski, Bernardo. K. São Paulo: Expressão popular, 2011. (novela-memória).

Tapajós, Renato. Câmara lenta. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. 1977.

Foglia, Rossana; Rewald, Rubens. Corpo. 2008. (filme de ficção).

Unidade 3: Explosão/implosão da linguagem: fragmento, experimento, excesso, silêncio

Leminski, Paulo. Catatau 1975. 3ª. ed. São Paulo: Iluminuras, 2010. (prosa experimental).

Guimarães, Cao. Ex-Isto. 2010. (filme de ficção).

Lungaretti, Celso. Náufrago da utopia. Rio de Janeiro: Geração Editorial, 2004. (memórias).

Osakabe, Haquira. "De como viver dentro e fora". São Paulo, MS inédito 2 fls. datilo., 1973 (Cedae-IEL, Fundo Haquira Osakabe).

Souza, Márcio. Operação silêncio. São Paulo: Marco Zero, 1979 (romance).

Noll, João Gilberto. "Alguma coisa urgentemente". In: O cego e a dançarina. Porto Alegre: L&PM, 1980. (contos).

Salles, Murilo. Nunca fomos tão felizes. 1983. (filme de ficção).

Unidade 4: O passado que fica

Tavares, Flávio. Memórias do esquecimento 1999. Porto Alegre: L&PM, 2012. (memórias).

Tavares, Camilo. O dia que durou 21 anos. 2012. (filme documentário).

Como referências gerais de estudos do período e suas obras, foram indicados ainda os seguintes títulos:

Ginzburg, Jaime; Seligmann-Silva, Márcio: Hardman, Francisco Foot (Orgs.). Escritas da violência. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, 2 v.

Sussekind, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários, retratos. 2ª. ed. rev. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

Teles, Edson; Safatle, Vladimir (Orgs.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.

Na segunda edição do curso, no segundo semestre de 2014, ampliamos significativamente as referências literárias e artístico-culturais, introduzindo, além de ensaios de memória histórico-política e obras de jornalismo investigativo, uma seleção de textos teatrais, gênero usualmente deixado de lado nos cursos de letras, e que, no período histórico assinalado, tiveram importância decisiva na cena cultural e política. O roteiro de seções temáticas, com as respectivas leituras e visões a ser trabalhadas, foi então o seguinte:

1. Referência geral: história, política e cultura

Dreyfuss, René Armand. 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 1981.

Fico, Carlos. O Grande Irmão: da operação Brother San aos anos de chumbo. O governo dos EUA e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

Gaspari, Elio. As ilusões armadas. (v.1: A ditadura envergonhada; v.2: A ditadura escancarada). 2ª. ed. revista. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 2002.

_______. O sacerdote e o feiticeiro. (v. 3: A ditadura derrotada; v. 4: A ditadura encurralada). 2ª. ed. revista. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 2003.

Gorender, Jacob. Combate nas trevas: a esquerda brasileira – das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Ática, 1987.

Kushnir, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004.

Leme, Caroline Gomes. Ditadura em imagem e som. São Paulo: Unesp, 2013.

Ridenti, Marcelo. O fantasma da revolução brasileira. 2ª. ed. revista e ampliada. São Paulo: Unesp, 2010.

Skidmore, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro: Saga, 1969.

2. Obras literárias (ficção, memória, depoimento):

Callado, Antônio. Bar Don Juan. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.

Cony, Carlos Heitor. Pessach: a travessia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

Fortes, Luís Roberto Salinas. Retrato falado. São Paulo: Marco Zero, 1988.

Gertel, Vera. Um gosto amargo de bala. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

Guerra, Claudio. Memórias de uma guerra suja: depoimento a Marcelo Netto e Rogerio Medeiros. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

Paula, José Agrippino de. Panamérica. São Paulo: Papagaio, 2001. 1967.

Pompeu, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. 1976.

Syrkis, Alfredo. Os carbonários: memórias da guerrilha perdida. São Paulo: Global, 1979.

Souza, Márcio. Operação silêncio. São Paulo: Marco Zero, 1979.

3. Teatro, poesia e cinema:

Castro, Consuelo de. À flor da pele. 1969.

Marcos, Plínio. Quando as máquinas param. 1967. São Paulo: Global, 1978.

Gullar, Ferreira. Poema sujo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

Foglia, Rossana; Rewald, Rubens. Diretores. Corpo. 2007.

Giorgetti, Ugo. Diretor. Cara ou coroa. 2012.

Tapajós, Renato. Diretor. Corte seco. 2014. Filme inédito cuja projeção contou com a presença do diretor.

Finalmente, na atual edição neste primeiro semestre de 2015, damos continuidade a esse projeto, com forte presença de textos teatrais e obras fílmicas, articulados à literatura tomada sempre em sentido amplo, o que inclui, além da prosa de ficção, a memória, o depoimento, a reportagem historiográfica, o ensaio histórico-político. Aqui, segue o novo roteiro:

1. Referência geral: história, política e cultura

Costa, Cristina (org.). Censura, repressão e resistência no teatro brasileiro. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008.

Jatobá, Roniwalter. A crise do regime militar. São Paulo: Claridade, 2013.

Markun, Paulo. Brado retumbante (v.1: Na lei ou na marra: 1964-1968). São Paulo: Benvirá, 2014.

______. Brado retumbante (v. 2: Farol alto sobre as diretas: 1969-1984). São Paulo: Benvirá, 2014. A discussão desta obra contou com a presença do jornalista Paulo Markun no IEL, graças ao apoio do Labjor.

2. Obras literárias (ficção, memória, ensaio, depoimento):

Carvalho, Apolônio de. Vale a pena sonhar. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

Espinosa, Antonio Roberto. Abraços que sufocam – e outros ensaios sobre a liberdade. São Paulo: Viramundo, 2000.

Gonçalves, Vanessa. Eduardo Leite Bacuri. São Paulo: Plena, 2011.

Kucinski, Bernardo. Você vai voltar pra mim e outros contos. São Paulo: Cosac Naif, 2014.

Patarra, Judith Lieblich. Iara. (Reportagem biográfica). 3ª. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.

Santos, José Anselmo dos. Eu, cabo Anselmo: depoimento a Percival de Souza. São Paulo: Globo, 1999.

3. Teatro e cinema:

Assunção, Leilah. Sobrevividos. In: Feira Brasileira de Opinião. São Paulo: Global, 1978.

Escobar, Carlos Henrique de. A caixa de cimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

Escobar, Maria Clara. Os dias com ele. 2013 – filme documentário.

Escorel Filho, Lauro. Libertários 1976; Cooper, Adrian. Chapeleiros 1983. São Paulo: IMS, 2014 DVD – documentários curtas-metragens.

Frederico, Flavio; Pamplona, Mariana. Em busca de Iara. 2013 – filme documentário.

Grisotti, Stela; Böhm, Rudi. Vale a pena sonhar. 2003 – filme documentário.

Guarnieri, Gianfrancesco. Um grito parado no ar. 1973. In: O melhor teatro - Gianfrancesco Guarnieri. São Paulo: Global, 1986.

Leandro, Anita. Retratos de identificação. 2014 – filme documentário.

Marcos, Plínio. Dois perdidos numa noite suja.1966. São Paulo: Círculo do Livro. 

Medeiros, Maria de. Repare bem. Orig.: Les yeux de Bacuri. 2012 – filme documentário.


Para encerrar esta breve notícia, cabe dizer que, tanto os textos estudados, como os estudos usados como referência para os debates nos três cursos realizados até agora, não representam senão uma parcela muito pequena da já extensa produção, nas várias áreas das humanidades, que tematiza o período da ditadura militar brasileira. Para dar uma ideia aproximada do que estamos falando, como esforço de constituição de uma biblioteca física das obras a respeito do assunto, contamos já com um acervo de cerca de 500 títulos, o que é ainda um número longe do exaustivo, até pela onda recente de produções vindo à luz, mas que pode sugerir a fecundidade do assunto e a variedade de seu repertório.


Francisco Foot Hardman é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.

Alcir Pécora é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.