Quando chegou ao Brasil, em 1935, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss era apenas mais um dos muitos jovens professores estrangeiros que vieram ao país para integrar o quadro de docentes da então recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Participar da chamada “missão francesa” era, aos olhos do jovem aventureiro, uma ótima oportunidade acadêmica, na medida em que na França, ele era apenas um professor de primeiro grau.
Entretanto, o breve período em que esteve aqui, mais do que uma mera passagem, iniciou uma estreita e fecunda relação com o Brasil que, com o passar dos anos, foi se estreitando de tal maneira que acabou por influenciar os rumos de sua carreira, marcou sua vida pessoal e acadêmica e teve um papel fundamental nas ciências sociais no país, especialmente nos campos da antropologia e da etnologia. Isso fez com que o jovem professor viesse a se tornar uma das maiores referências teóricas em diversas modalidades do pensamento. Em Tristes Trópicos, de 1955, Lévi-Strauss tece observações etnográficas que atestam como seu contato com povos indígenas brasileiros foi decisivo na gestação de sua teoria estruturalista.
Em entrevista concedida a Beatriz Perrone-Moisés, publicada na Revista de Antropologia, em 1999, o pai do estruturalismo revela que, mesmo após tantos anos, os laços criados naquela época permanecem. “Para mim, o Brasil, São Paulo, são completamente indissociáveis de meus anos de juventude, e eu já não saberia separar as coisas”, diz.
Formado em filosofia pela Universidade de Paris, Sorbonne, Lévi-Strauss fora contratado para ocupar a cadeira de sociologia da seção de ciências sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. “A USP queria que ele reproduzisse as idéias de Durkheim [Émile Durkheim, sociólogo francês], que estavam em voga na época”, conta a antropóloga Julie Cavignac, do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). O seu interesse, no entanto, já estava voltado para a etnologia, que naquela época estava se constituindo como disciplina na França, e mais especificamente pela etnologia anglo-americana. “Eu era especialmente sensível à diferença entre o teórico e pessoas que falavam de coisas que tinham ido ver em campo. Como eu mesmo tinha um grande gosto pela aventura, sentia-me mais próximo deles”, relata Lévi-Strauss na mesma entrevista.
Entre 1935 e 1939, Lévi-Strauss visitou diversos estados brasileiros, dentre eles, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Mato Grosso, Goiás, e Amazonas, mas o que especialmente lhe interessava nesses lugares eram seus povos: Nambiquaras, Bororos, Kadiwéus. “Tinha ido ao Brasil porque queria me tornar etnólogo”, confessou.
Contatos intelectuais
Como Lévi-Strauss não tinha formação na área de etnologia, as missões ao campo feitas durante a sua estada no Brasil foram essenciais para o seu reconhecimento como etnólogo. “É fundamental a participação de Mário de Andrade nisso. Ele, pelo Departamento de Cultura, banca a primeira ida de Lévi-Strauss ao campo e parte da segunda”, conta Luisa Valentini, mestranda do Departamento de Antropologia da USP. O principal vínculo de Lévi-Strauss com o meio intelectual paulista foi pela Sociedade de Etnografia e Folclore do Departamento de Cultura de São Paulo, e foi seu diretor, o escritor Mário de Andrade, quem atraiu Lévi-Strauss e Dina Dreyfus, sua esposa na época, para os projetos culturais e científicos implementados em sua gestão.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em 2004, Lévi-Strauss menciona que, entre os contatos mais importantes que teve com intelectuais no Brasil, “o primeiro que nomearia foi o com Mário de Andrade”. Além de Mário, outros nomes como Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes, Caio Prado Jr. e Paulo Duarte, com quem manteve amizade nos anos de exílio nos Estados Unidos, também são mencionados. No entanto, a participação de Lévi-Strauss na instituição resumiu-se a conferências e textos, cabendo a Dina o trabalho de pesquisa, organização e assessoria etnológica. “Dina preparava metodologicamente os funcionários do Departamento de Cultura para irem a campo fazer pesquisas que, muitas vezes, seguiam o programa de estudos do Mário”, diz Valentini.
Na USP, apesar de ocupar a cadeira de sociologia, os temas dos cursos que Lévi-Strauss oferecia a seus alunos abrangiam uma ampla gama de assuntos, de sociologia primitiva à antropologia urbana, passando por linguística, etnolinguística e antropologia. Segundo Valentini, um dos principais legados de Lévi-Strauss para as ciências sociais da USP na época foi o ensino de metodologia de pesquisa. “Ele ensina [a seus alunos] ir para campo e ir para arquivos buscar informações, a fazer levantamento, recolha de dados”, afirma a pesquisadora. O próprio Lévi-Strauss reconhece a sua participação na formação da antropologia brasileira. “Não digo que não existisse uma antropologia brasileira, mas era muito antiquada, tradicional, ainda muito marcada pelo espírito do século XIX, ao passo que a que estava para nascer mostrou muito rapidamente que estava na ponta da pesquisa antropológica”, conta na entrevista da Revista de Antropologia.
Para Julie Cavignac, da UFRN, no entanto, Lévi-Strauss contribuiu muito para a antropologia que aqui se formava, mas a sua contribuição, a princípio, foi restrita a determinado círculo de relações. “A obra de Lévi-Strauss vai ser importantíssima para a antropologia brasileira, mas ela vai ultrapassar, de início, o interesse dos antropólogos brasileiros. Eu tenho a impressão de que o Brasil não viu Lévi-Strauss, ele passou desapercebido na época, a não ser pelos poucos especialistas com quem se relacionou. Ele não estava interessado em encontrar os intelectuais, em travar uma vida intelectual; ele estava querendo fazer pesquisa de campo mesmo”, revela. Muito mais do que pela antropologia brasileira, a obra de Lévi-Strauss vai ser celebrada por especialistas que pertençam à tradição americana.
Em artigo publicado na revista Mana, a antropóloga Fernanda Peixoto conta que, nos depoimentos dos ex-alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Lévi-Strauss não aparece como professor destacado, digno de referência especial. Mas alguns relatos, como o do professor Antonio Candido à rádio USP, destacam a importância da missão francesa como um todo para a mudança na forma de se preparar uma aula e de fazer uma pesquisa no Brasil, e até no nosso olhar sobre o próprio país. Nas recordações de Décio de Almeida Prado, em Saudades de Lévi-Strauss, de 1997, destaca-se a preocupação do professor com a observação direta e com a pesquisa de campo, para as quais orientava os alunos. “Se alguma coisa aprendíamos era raciocinar. Não nos perdíamos nem mesmo nas sequências longas, porque elas se apresentavam bem articuladas, víamos as imbricações”, relata.
Experiências, obras e impressões
As missões a campo coordenadas por Lévi-Strauss e que proporcionaram os seus primeiros contatos com as tribos indígenas brasileiras não eram, no entanto, exatamente fáceis. Em uma famosa declaração que aparece em Tristes Trópicos, obra lançada em 1955, em que relata suas experiências no Brasil, Lévi-Strauss dá o tom de algumas lembranças: “Odeio as viagens e os exploradores”, declara. Para Julie Cavignac, da UFRN, no entanto, tal frase não reflete um real descontentamento, mas na verdade busca levantar outras questões além das lembranças. “Eu não diria que [Tristes Trópicos] é um livro de memórias, mas sim de reflexão. Porque é um livro bastante ácido; é uma crítica não ao Brasil, mas ao mundo ocidental. É um olhar pessimista; porque no fundo, Lévi-Strauss é um grande pessimista”, comenta.
A obra, escrita quinze anos após a sua partida do Brasil, com o relato de seus contatos com civilizações indígenas brasileiras – e que serviu de base para todo um trabalho posterior –, é um clássico literário que extrapolou o meio acadêmico. Mesmo contando com uma densa quantidade de informações, Lévi-Strauss apresenta, nessa obra, um texto escrito em linguagem acessível ao leitor médio, ou seja, sem o jargão acadêmico, o que fez do livro um grande sucesso.
Em duas outras obras lançadas bem mais tarde, Saudades do Brasil (1994) e Saudades de São Paulo (1996), as memórias da passagem de Lévi-Strauss por aqui são resgatadas na forma de coleções fotográficas. Nessas obras, o antropólogo escreve depoimentos que revisitam as imagens, tiradas entre 1935 e 1939, e descreve a sua relação com o país e a cidade. “Em 1935, a vila de São Paulo, ainda uma cidade pioneira, transformava-se a vista de todos em metrópole industrial e financeira. Transformando-se de dia em dia, oferecia um espetáculo fascinante ao geógrafo, ao sociólogo e ao etnólogo”, relata em Saudades de São Paulo.
“Ambas as obras são bastante pessoais, livros sobre experiências, feitos posteriormente. Mas refletem momentos diferentes [em relação a quando escreve Tristes Trópicos]”, pondera Valentini, da USP. Para a antropóloga, as leituras menos amargas apresentadas em Saudades do Brasil e Saudades de São Paulo são reflexos de um Lévi-Strauss mais velho e já consagrado pela obra que construiu.
Para Lévi-Strauss, essas saudades são mais uma forma de reflexão do que um estado de espírito. “Se, no título de um livro recente, apliquei ao Brasil (e a São Paulo) o termo ‘saudade', não foi por lamento de não mais estar lá. De nada me serviria lamentar o que após tantos anos não reencontraria. Eu evocava, antes, aquele aperto no coração que sentimos quando, ao relembrar ou rever certos lugares, somos penetrados pela evidência de que não há nada no mundo de permanente nem de estável em que possamos nos apoiar”, escreve em Saudades de São Paulo. Certamente, não só aqueles lugares não poderiam ser reencontrados como tal após todo esse tempo, mas principalmente a própria antropologia.
|