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Artigo
Criatividade, cultura e inovação: uma profusão de “modelos” e o desafio da reorientação do desenvolvimento
Por Rosana Icassatti Corazza, Rodrigo C. Sabbatini, Leandro Valiati
10/07/2013

Ao longo de boa parte dos últimos vinte anos, observou-se no cenário internacional uma exuberante onda de iniciativas que, como traço comum, tomam a criatividade como fulcro para um novo modelo de desenvolvimento econômico, social e cultural. Essas iniciativas envolvem políticas públicas nos níveis nacional e local, uma multiplicidade de ações de organismos multilaterais e a emergência de abordagens, nem sempre convergentes, de teorização em diversos campos disciplinares – como na economia, na geografia, na sociologia, nos estudos culturais, no urbanismo e na gestão. Essas iniciativas têm como foco principal a compreensão – e o estímulo – das relações entre criatividade e desenvolvimento. No Brasil, podemos nos congratular por termos em Celso Furtado uma reflexão original sobre essas relações e talvez devêssemos nos questionar sobre o que temos aprendido com ele (Furtado, 1996, 2008).

São muito conhecidas as iniciativas do Reino Unido no estímulo aos chamados setores criativos como foco da atenção das políticas públicas. Da industrialização original à desindustrialização avançada dos tempos recentes, quando a manufatura progressivamente migra para a “periferia” numa nova configuração da divisão internacional do trabalho, o Reino Unido tornou-se uma espécie de epicentro do fenômeno que coloca a criatividade no cerne do debate sobre as possibilidades de desenvolvimento. Para além da experiência britânica, é justo reconhecer toda uma diversidade de países, com os mais distintos backgrounds em termos de níveis de desenvolvimento (mensurados por quaisquer índices), que de maneira mais ou menos importante vêm implementando iniciativas nesse sentido: Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Colômbia, Tailândia e China, para mencionar talvez os mais conhecidos. Conceberam, assim como ocorre hoje no Brasil, e implementaram, suas iniciativas particulares a fim de estimular os setores ditos criativos (Valiati, 2007; Sabbatini et al, 2009; Flew, 2012; Corazza, 2013).

Neste ponto cabe justamente interpor a indagação sobre quais seriam esses setores. A definição mais antiga que pauta as iniciativas britânicas é enunciada no conceito de indústrias criativas, de 1997, veiculado nos documentos da Creative Industries Task Force (CITF), especialmente instituída por Tony Blair, então recém-eleito primeiro ministro do New Labor para compor as atividades centrais de seu novo Departamento da Cultura, Mídia e Esportes (DCMS, na sigla em inglês). A CITF empreendeu um mapeamento dos setores ou segmentos criativos com vistas a propiciar um quadro de referência para a mensuração e acompanhamento das atividades econômicas. Assim, o DCMS propõe as seguintes atividades como setores da “indústria criativa”: publicidade, arquitetura, artes e antiguidades, artesanato, design, design de moda, filme, software para lazer interativo, música, televisão e rádio, artes performáticas, mercado editorial e software (DCMS, 1998, 2001).

Há, todavia, uma multiplicidade de definições desse objeto. Esforços têm sido amplamente envidados por parte das organizações multilaterais, como a Unesco, a UNCTAD, a OCDE, a WIPO e a Eurostat, no sentido de propiciar uma racionalização das estatísticas macro-setoriais dos domínios da cultura e da criatividade (Bertasso e Vaz, 2011). Olhar para essas iniciativas permite que se tenha uma ideia das dificuldades conceituais no domínio das contribuições da cultura e criatividade para o desenvolvimento.

O ponto de partida adotado pela iniciativa da Unesco para a concepção de seu Framework for Cultural Statistics é a definição de cultura como a forma pela qual as sociedades, grupos ou comunidades definem sua identidade. Nessa concepção, “... cultura deveria ser vista como um conjunto de características distintivas espirituais, materiais, intelectuais e emocionais de uma sociedade ou grupo social, e que abrange, além da arte e da literatura, estilos de vida, modos de vida conjunta, sistemas de valores, tradições e crenças” (Unesco, 2009, p.8). Esse organismo da ONU propõe que sejam considerados três “domínios” que compreenderiam a produção e disseminação de bens e serviços culturais. Em primeiro lugar, os domínios culturais propriamente ditos, que representariam um conjunto comum de atividades econômicas e sociais tradicionalmente aceitas como culturais. Esses domínios constituiriam o núcleo de um sistema estatístico da cultura e compreenderiam: herança cultural e natural, performance e celebração, artes visuais e artesanato, livros e imprensa, audiovisual e mídia interativa e design e serviços criativos (correspondendo esses últimos, essencialmente, à publicidade). Em segundo lugar, os domínios relacionados abrangeriam as atividades econômicas e sociais parcialmente culturais, mais afeitas à recreação e ao lazer do que propriamente à cultura. Aí estão incluídos turismo e esporte e recreação. Finalmente, os domínios transversais, que permeariam os dois anteriores, incluiriam as atividades definidas como herança cultural intangível, ou seja, as tradições orais, as expressões culturais, os rituais, as línguas e as práticas sociais.

O modelo da Unesco tem interesse especial por constituir a primeira tentativa no cenário mundial de focalizar o crescimento das indústrias culturais no âmbito das políticas públicas. A experiência desse organismo já tem três décadas, com o desenvolvimento de esforços para a identificação, mensuração e análise das contribuições econômicas da cultura. Entretanto, o surgimento recente do enfoque criativo tem ampliado, a partir da experiência britânica já mencionada, o número de modelos disponíveis ao analista e ao gestor. É nesse sentido que se colocam as iniciativas apresentadas brevemente a seguir, cujos detalhes podem ser conhecidos em Bertasso e Vaz (2011).

O primeiro é o modelo de textos simbólicos, constituído no seio da tradição dos estudos crítico-culturais europeus, que concentra a atenção na cultura popular. Este modelo retrata os processos pelos quais a cultura de uma sociedade se constitui e é transmitida via produção industrial, disseminação e consumo de mensagens ou textos simbólicos. Estes são transmitidos por meio de uma multiplicidade midiática que inclui, embora não se restrinja, filmes, radiodifusão e imprensa em geral (Hesmondhalgh, 2002). O modelo propõe a classificação das indústrias culturais em três agrupamentos: o núcleo das indústrias culturais, incluindo publicidade, filme, internet, música, publicação, TV e rádio, videogames e jogos para computador; as indústrias culturais periféricas, que reúnem as artes criativas; e as indústrias culturais de fronteira, que abrangem eletrônicos de consumo, moda, software e esporte.

O segundo modelo é o dos círculos concêntricos, que propõe que é o valor cultural dos bens culturais que conferiria a característica mais distintiva a essas indústrias, de modo que quanto mais pronunciado o conteúdo cultural de um bem ou serviço particular, maior a justificativa para incluir a indústria que o produz nesse modelo (Throsby, 2001). Nesta abordagem, as ideias criativas teriam origem em um núcleo das artes criativas, que incluiria literatura, música, artes cênicas e artes visuais, e se difundiriam para o exterior por meio de uma série de camadas ou círculos concêntricos, com a razão entre os conteúdos cultural e comercial declinando à medida que se move para fora do núcleo. Esses círculos seriam, de dentro para fora: os outros núcleos das indústrias culturais, que contêm filmes, museus e bibliotecas; as indústrias culturais mais amplas, que reúnem serviços de preservação da herança cultural, publicação, gravação de som, TV e rádio, videogames e jogos de computador; e, finalmente, as indústrias relacionadas, que incluem publicidade, arquitetura, design e moda.

O terceiro modelo é o dos direitos autorais, proposto pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (World Intellectual Property Organization – WIPO). Este modelo é baseado em indústrias envolvidas direta ou indiretamente na criação, manufatura, produção, difusão e distribuição de trabalhos com direitos autorais. O foco, assim, está na propriedade intelectual como a personificação da criatividade empregada na produção dos bens e serviços incluídos na classificação. Uma distinção é feita entre indústrias que efetivamente geram a propriedade intelectual e aquelas necessárias para transferir os bens e serviços ao consumidor. Há ainda um grupo de indústrias de direitos autorais parciais, que compreende as indústrias em que a propriedade intelectual constitui uma parte secundária de sua operação. Este modelo agrupa os setores criativos em três categorias: o núcleo das indústrias de direitos autorais, reunindo publicidade, associações de colecionadores, filme e vídeo, música, artes cênicas, publicação, software, TV e rádio e arte gráfica e visual; as indústrias de direitos autorais interdependentes, que compreendem material de gravação em branco, eletrônicos de consumo, instrumentos musicais, papel, e fotocopiadoras e equipamento fotográfico; e as indústrias de direitos autorais parciais, que incluem arquitetura, vestuário e calçados, design, moda, utilidades domésticas e brinquedos.

Os estudos da inovação, em suas abordagens multidisciplinares envolvendo sociologia, economia, geografia, estudos culturais e gestão, começam a se voltar para a temática do desenvolvimento a partir das dimensões cultural e da criatividade. É verdade que, pelo menos desde o Manual de Oslo (OCDE, 2005), percebe-se alguma integração das dimensões “criativas”, como são os casos do design, da publicidade e do marketing. Uma referência nesse sentido é o livro organizado por Pratt e Jeffcutt (2009), publicado pela Routlege, em uma série sobre concorrência global editada por John Cantwell, professor honorário da Science Policy Research Unit (SPRU), da Universidade de Sussex (UK) e por David Mowery, da Haas School of Business (Berkeley, USA), autores reconhecidos no campo dos estudos da inovação.

Se essa profusão de modelos de interpretação a respeito das contribuições econômicas da cultura e da criatividade é reveladora do amplo reconhecimento dessas dimensões da atividade humana para o desenvolvimento, também expõe muitas contradições que, em nossa perspectiva, ainda demandam reflexões. Indicamos, abaixo, apenas alguns dos pontos que vêm sendo debatidos pela literatura especializada pari passu com a implementação do enfoque criativo na arena das políticas públicas.

Um primeiro ponto de reflexão é que persistem duas visões distintas sobre as indústrias criativas: de um lado, aquela que privilegia o núcleo criativo e, de outro, aquela que privilegia os nexos industriais (Flew, 2012). O segundo diz respeito ao fato de que, diante do franco entusiasmo com o tema, tanto nos fóruns acadêmicos como nas arenas de policies, os autores observam que criatividade e inovação são frequentemente apresentadas como “magic bullets: one shot sollutions to problems” (Pratt e Jeffcutt, 2009). O terceiro ponto trata da questão da distribuição de direitos, destacando como a norma frequentemente apresentada como proteção ao artista pode, não raro, ser instrumento eficaz de transferência de direitos para uma grande corporação (Hesmondhalgh, 2009). O quarto ponto tem a ver com a autoimagem ou a identidade de algumas das indústrias criativas e de seus trabalhadores. Nota-se que as ideias de prazer e autorrealização vinculadas à execução do trabalho criativo muitas vezes se associam, e parecem justificar perversamente, a baixa remuneração e a aceitação de condições precárias de trabalho (Pratt e Jeffcutt, 2009). Um quinto ponto para reflexão se refere às tensões institucionais relacionadas à incorporação dos setores criativos na pauta (e no orçamento) das políticas culturais. Talvez a mais óbvia dessas tensões se refira ao financiamento. A inclusão dos setores criativos na pasta da cultura pode, com respaldo pelo menos do modelo britânico, encontrar a justificativa das estratégias gêmeas de valorização da dimensão cultural e criativa do desenvolvimento e de atração de recursos orçamentários para esta pasta. A tensão se revelaria numa eventual concorrência interna por recursos entre esses setores criativos e os segmentos e atividades tradicionais e essenciais da pasta, como as manifestações locais, o patrimônio histórico e artístico, folclore e cultura popular, dentre outros (Sabbatini et al, 2011).

Finalmente, diante dessa intensa propagação de iniciativas que tangem às relações entre cultura, criatividade e inovação, nossa percepção é a de um campo multidisciplinar em constituição, ainda com dificuldades de diálogos, desafios conceituais, interpretativos e analíticos urgentes e ruídos de comunicação. Ao lado disso, parece-nos que se entreabre uma perspectiva sedutora – e talvez promissora – para amalgamar ideias e projetos para a reorientação do desenvolvimento numa civilização que já se quis pós-industrial.

Rosana Icassatti Corazza é professora e pesquisadora nas Faculdades de Campinas (Facamp) e pesquisadora colaboradora do Instituto de Geociências da Unicamp. Contato: rosanacorazza@gmail.com

Rodrigo C. Sabbatini é professor e coordenador do curso de economia e do Centro de Pesquisas Econômicas da Facamp e pesquisador colaborador do Instituto de Economia da Unicamp. Contato: sabbatini@facamp.com.br

Leandro Valiati é professor do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador colaborador interinstitucional do Núcleo de Economia da Cultura da Universidade de Valencia, Espanha. Contato: leandro.valiati@gmail.com

Referências bibliográficas

Bertasso, B. F.; Vaz, D. V. “Economia da cultura e criativa: uma revisão de conceitos e metodologias para a elaboração de um sistema estatístico”. In: R. C. Sabbatini et al (orgs.) Perspectivas da economia da cultura: um modelo de análise indicadores e metas gerais. Relatório de pesquisa no âmbito do convênio Ministério da Cultura – Minc/Fecamp, 2011.
Corazza, R. I. “Criatividade, inovação e economia da cultura: abordagens multidisciplinares e ferramentas analíticas”. Revista Brasileira de Inovação, 12 (1), p.207-231, 2013.
DCMS – Department of Culture, Media and Sports. A new cultural framework. London: DCMS, 1998.
DCMS. Creative industries mapping document. London: DCMS, 2001.
Flew, T. The creative industry: culture and policy. London: Sage, 2012.
Furtado, C. Criatividade e dependência na civilização industrial. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
Furtado, C. O mito do desenvolvimento econômico. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Hesmondhalgh, D.
The cultural industries. London: Sage, 2002. Hesmondhalgh, D. “The digitalisation of music”. In: A. C. Pratt; P. Jeffcutt (orgs.) Creativity, innovation and the cultural economy. Routledge Studies in Global Competition. New York: Routledge, 2009.
OCDE – Organisation for Economic Co-operation and Development. Oslo Manual: Guidelines for Collecting and Interpreting Innovation. Paris: OCDE, 2005.
Pratt, A. C.; Jeffcutt, P. (orgs.). Creativity, innovation and the cultural economy. Routledge Studies in Global Competition. New York: Routledge, 2009.
Sabbatini, R.; Corazza, R. I.; Valiati, L.; Ruas, J. A.; Bertasso, B.; Vaz, D. V.; Florissi, S. Perspectivas da economia da cultura: um modelo de análise – indicadores e metas gerais. Relatório de pesquisa no âmbito do convênio Ministério da Cultura – Minc/Fecamp, 2011. Disponível em: http://www.redeeconomiadacultura.com.br/wp-content/uploads/2012/01/IMG-NTM-19jan2012-1.pdf. Acesso em 15 de maio de 2013.
Throsby, D. Economics and culture. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2001.
Unctad – United Nations Conference on Trade and Development. Creative Economy Report, Geneva, Switzerland: Unctad, 2010.
Unesco – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. The 2009 Unesco Framework for Cultural Statistics. Montreal, Quebec: Unesco, 2009
Valiati, L. (Org.) Organização da cultura : bem-estar econômico e evolução cultural. Porto Alegre: URFGS, 2007.