O princípio da precaução, presente nos documentos da Eco-92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento sediada no Rio de Janeiro, e no Protocolo de Cartagena, tratado ambiental sobre biossegurança em vigor desde 2003, afirma que, na ausência da certeza científica formal sobre a segurança de determinados produtos e processos desenvolvidos em ciência e tecnologia, é requerida a implementação de medidas que possam avaliar e prever seus potenciais riscos. Assim, em tempos de controvérsias científicas infindáveis, relativização das verdades científicas e incertezas constantes, a gestão do risco é instituída em meio ao conflito de interesses de políticos, grandes empresas, técnicos e cientistas.
Vivemos em uma sociedade que se organiza cada vez mais em função de riscos, e tanto para mensurá-los quanto para preveni-los, o foco é sempre o futuro. Tema freqüente nos mais variados debates e em diferentes áreas, já se tornaram clássicas as discussões sobre risco em ciências humanas, como a que acompanha a expressão “sociedade de risco” apresentada pelo sociólogo alemão Ülrich Beck, em 1986, e o debate sobre modernização, presente em várias obras do sociólogo inglês Anthony Giddens, nas quais defende a idéia de que a insegurança e o risco são introduzidos pelo processo de modernização e pela atividade humana. Mas se de um lado, essa forma de compreender a atualidade clama muitas vezes por novas referências que dêem conta dos riscos globais, das mudanças e das crises, por outro lado, a população reclama formas de organização da sociedade civil e do Estado para conter os riscos, muitas vezes com um enfoque especial na produção da ciência e da tecnologia. Rótulos para alimentos e cosméticos, níveis de segurança de certas substâncias, proibição de medicamentos são temas que participam dessa reclamação e que povoam a mídia em todo o mundo.
Alceu Maurício Junior, juiz federal e pesquisador do tema “Estado de Risco”, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), alerta que não há uma resposta pronta para o gerenciamento dos riscos. “A complexidade dos problemas impõe que as soluções sejam construídas especificamente, promovendo-se, na maior medida possível, a informação e a deliberação pública”, diz.
De acordo com o pesquisador da PUC-RJ, que trabalha com conceitos de Ulrich Beck, a contínua produção de efeitos secundários decorrentes de desenvolvimentos tecnológicos resultou em perda de legitimidade da ciência como produtora de verdades. “A ciência se tornou crítica da própria ciência e a tecnologia é percebida como produtora de riscos: não há mais atividades risk-free”, afirma. Maurício Junior cita as formulações de Beck para afirmar que cada vez mais os cidadãos desenvolvem uma crescente percepção do risco e já não confiam nas empresas e institutos de pesquisa privados quanto à segurança dos produtos e serviços que são colocados no mercado. “Os riscos são politizados e aumenta a pressão por sua regulação estatal. Em decorrência disso, o 'Estado de Direito' progressivamente se transforma em um 'Estado de Risco', no qual segurança e solidariedade na distribuição dos riscos tecnológicos tornam-se questões chaves para sua atuação e justificação”, complementa.
Mas, tendo em vista esse quadro, entendido como global, como o risco é regulado, administrado, vigiado ou fiscalizado no Brasil? Diferente de outros países que têm vários grupos e movimentos da sociedade civil que procuram dar visibilidade para as mais diferenciadas possibilidades de risco, o Brasil ainda tem poucas organizações que se dedicam à questão de uma forma ampla. Dentre as que procuram exercer esse papel no país, está o Greenpeace, que subdivide suas atenções entre os riscos relacionados aos transgênicos, à energia nuclear, aos desmatamentos e às queimadas, além de promover campanhas diversas para proteção ambiental. No entanto, outras questões, como a nanotecnologia e assuntos correlatos, ainda não passaram no Brasil do debate acadêmico e intelectual para a formação de movimentos sociais ou organizações tais como o grupo canadense Erosão, Tecnologia e Concentração (ETC Group), que discute e promove ações desde aquelas voltadas para biologia sintética, transgenia e genômica até as ligadas a direitos humanos, diversidade cultural e propriedade intelectual.
Em muitas ocasiões, formam-se associações ou grupos em torno de uma questão específica, como tem sido o debate acerca do banimento do amianto, uma fibra mineral que é proibida em vários países pelos seus prejuízos à saúde humana, em especial de trabalhadores envolvidos diretamente com indústrias que lidam com essa substância. A Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea) é um dos grupos que se voltam para os riscos à saúde. Mas o embate, nesse caso, é árduo, como explica José Ribas Vieira, professor do programa de pós-graduação em direito na PUC-RJ e coordenador do grupo de pesquisa Estado de Risco.
De acordo com Vieira, as disputas em torno do amianto envolvem outras organizações, como a Comissão Nacional dos Trabalhadores do Amianto (CNTA), um órgão vinculado à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), que propôs a inconstitucionalidade da lei fluminense nº 3579/01, a qual veda a extração, industrialização, utilização e comercialização de amianto. “Há um aspecto um tanto contraditório aqui”, destaca Vieira. “Essa ação de inconstitucionalidade foi feita por um grupo muito ligado aos empresários do amianto, mas, ao mesmo tempo, traz à tona uma outra discussão, que é a da manutenção do emprego, pois acabar com o uso do amianto branco vai acabar com essa indústria. No caso dessa confederação, com apoio dos empresários, lutou-se contraditoriamente para manter uma legislação que fere o direito à saúde”, avalia.
Já no âmbito do Estado, as ações relativas aos riscos estão dispersas em debates polêmicos que atravessam os três poderes, uma série de agências, comissões e comitês e, no executivo, os mais diferentes ministérios. A gestão de riscos no Brasil, conforme explica Maurício Junior, tem sido desenvolvida de forma descentralizada, com a atuação de cada ministério ou agência reguladora em sua área específica. “Tem aumentado a preocupação em se estabelecer um caráter multidisciplinar aos órgãos mais especificamente ligados à regulação do risco”, esclarece. Ele observa, ainda, que a regulação estatal do risco está ampliado-se para outras áreas, como a consulta pública relativa ao projeto de lei da bioprospecção promovida pela Casa Civil.
Dentre as agências reguladoras da administração pública federal, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) foi criada em 1999 com a finalidade de promover a proteção da saúde da população através do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados.
No entanto, em casos como o dos alimentos transgênicos, a Anvisa não delibera sobre o assunto nem conseguiu criar normas de segurança para o seu consumo, mas criou um documento consultivo sobre o tema. A liberação desse tipo de produto cabe à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), uma instância colegiada multidisciplinar, que presta apoio técnico consultivo e assessoria ao governo para formulação, atualização e implementação da política nacional de biossegurança, relativa aos organismos geneticamente modificados (OGM). É essa instância que também estabelece normas técnicas de segurança e pareceres técnicos conclusivos referentes à proteção da saúde humana, dos organismos vivos e do meio ambiente, para atividades que envolvam a construção, experimentação, cultivo, manipulação, transporte, comercialização, consumo, armazenamento, liberação e descarte de OGM e derivados. No entanto, com relação à rotulagem de produtos transgênicos determinada pelo decreto n° 4680, de 2003, a organização Greenpeace e órgãos de defesa do consumidor reclamam uma fiscalização mais rígida por parte dos órgãos do governo.
Para Maurício Junior, no Brasil, a gestão do risco enfrenta desafios políticos e institucionais provocados por valores conflitantes. “Por um lado, está a pressão pelo desenvolvimento; por outro lado, a segurança da população e do meio-ambiente frente aos riscos produzidos para alcançar o objetivo de crescimento econômico”, argumenta. Como exemplo desse conflito, ele cita o problema da agroindústria. “Recentemente, os jornais noticiaram um embate entre a Anvisa e o Ministério da Agricultura sobre os agrotóxicos, tendo este último fornecido relatórios que permitiram o questionamento judicial da regulamentação do risco desenvolvida por aquela agência”, conta. O juiz refere-se à tentativa da Anvisa de retirar do mercado algumas marcas de agrotóxicos feitos com cihexatina, uma substância proibida em outros 13 países. No entanto, o Ministério da Agricultura adotou o parecer de um consultor contratado pela iniciativa privada e posicionou-se contra o banimento dos agrotóxicos no Brasil.
Contrabando e risco
Esse universo, já bastante complexo, tem ainda um outro agravante quando se trata de regular o risco. Uma das portas de entrada de novas tecnologias no país tem sido o contrabando, como ocorreu com os transgênicos vindos da Argentina e já em uso antes de qualquer regulamentação. Maurício Junior destaca que o contrabando de tecnologias não regulamentadas se insere no problema crônico de estrutura para aplicação da lei no Brasil. “Essa questão, por sua vez, traz à baila outro problema, vinculado à globalização dos riscos. Países com legislação mais fraca ou, principalmente, com fiscalização ineficiente, são utilizados como campo de experiências para tecnologias ainda não aprovadas nos países de origem. São as novas desigualdades globais verificadas na sociedade de risco”, denuncia.
Regulação do risco e os reflexos no direito
De acordo com Vieira, da PUC-RJ, a sociedade de risco cria uma nova teoria do direito, um direito reflexivo, não hierárquico, também conhecido como direito de rede, em que todos os direitos estão no mesmo nível horizontal e o que deve prevalecer é o interesse da sociedade. O juiz Maurício Junior, por sua vez, destaca as mudanças no Estado. “A complexidade das sociedades contemporâneas não permitem que o Estado assuma o controle preponderante da distribuição e produção dos bens, mas a incerteza e os riscos tecnológicos lhe impõem a regulação do desenvolvimento tecnológico e do mercado. Temos, então, um "Estado de Risco", em que a justificação do Estado não é mais a distribuição de bem-estar social, mas a dos riscos inerentes à sociedade contemporânea”, explica.
Com relação ao judiciário, tanto Vieira, como Maurício Junior, detectam uma sobrecarga do judiciário na sociedade de risco, ou uma “judicialização das políticas públicas”. “Os riscos tecnológicos eram vistos simplesmente como uma questão de fato que o expert – o perito indicado pelo juiz – procurava esclarecer. Os novos problemas alcançam um nível de complexidade que não permite simplesmente a aplicação dessa fórmula. As questões colocadas frente ao Supremo Tribunal Federal (STF) são um bom exemplo. Não há consenso científico sobre a pesquisa com células-tronco, sobre o nível de toxidade do amianto crisotila, ou se os alimentos transgênicos são uma ameaça à população ou uma saída ao uso de agrotóxicos. Em um ambiente de incerteza científica, o judiciário se vê na desconfortável posição de decidir sobre questões altamente controvertidas, que extrapolam o campo da simples extração do sentido dos textos normativos”, observa o juiz.
Vieira acrescenta que está sendo transferido ao judiciário a “megapolítica”: “Cabe ao judiciário resolver as grandes questões: embriões, anencefalia, Serra Raposa do Sol. O judiciário vai ser obrigado a 'regular', a resolver”. Segundo Maurício Junior, no STF e outros órgãos do judiciário, esses problemas procuram ser minimizados através de uma maior abertura para a participação de interessados em geral. Vieira, por sua vez, observa que é exatamente nas causas ligadas à sociedade de risco (células-tronco, amianto, importação de pneus usados etc.) que o STF tem aceitado a inclusão e manifestação de representantes da sociedade civil e da comunidade científica.
Ainda assim, o juiz federal considera que a mobilização da sociedade civil para as questões do risco está pouco estruturada, em especial pela falta de informação. De acordo com ele, as entidades privadas são demasiadamente fechadas sobre os riscos de suas atividades, geralmente sob a alegação de segredos industriais cobertos por interesses privados. Esse argumento, todavia, não se sustenta à luz do caráter coletivo dos riscos decorrentes dessas operações. E, segundo o juiz, o setor público, por sua vez, não tem a transparência necessária nem incentiva a participação do público. “Para ilustrar esse ponto, a consulta pública sobre o projeto de lei da bioprospecção, teve divulgação irrelevante, considerada a importância do tema. E, embora o chamado para sugestões tenha sido divulgado no sítio eletrônico da Presidência da República, não é possível consultar o conteúdo ou a origem dessas propostas”, critica. O juiz sublinha que diversos instrumentos internacionais, entre os quais a Convenção sobre Diversidade Biológica, determinam que os Estados promovam ampla divulgação e participação nas questões ligadas ao risco. Cabe à sociedade organizada de nosso país, que sediou a Eco-92 e aderiu em 2003 ao Protocolo de Cartagena, cobrar isso do Estado.
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