Afirmar que a agricultura brasileira
já atingiu seu desenvolvimento através dos indicadores de desempenho econômico
é considerar o meio rural apenas como um espaço de produção. Ao lado da grande expansão
da produção agrícola registrou-se grande desfavorecimento de enorme quantidade
de camponeses, índios e outras comunidades etnicamente diferenciadas em termos
econômicos e culturais, além de enorme dívida ambiental.
Parece
haver consenso entre diversos setores da nossa sociedade de que a agricultura brasileira
já atingiu seu auge: alta produção e produtividade, grande participação nas
pautas de exportação, enorme incremento tecnológico, processos de industrialização
etc. Enfim, a grande expansão da economia capitalista no campo. Olhar para esses
resultados de forma linear significa assumir uma concepção interpretativa que
associa mecanicamente o desempenho econômico de um determinado setor à ideia de
eficiência. Significa ignorar toda a diversidade do “mundo rural brasileiro”,
desconsiderando a existência de uma ruralidade multifacetária que torna o mundo
rural um espaço ímpar de desenvolvimento. Afirmar que a agricultura brasileira
já atingiu seu desenvolvimento através dos indicadores acima apontados, ou
seja, de indicadores de desempenho econômico e setorial é considerar o meio
rural brasileiro apenas como um espaço de produção agrícola (Mattei,
2014/2015).
Além
disso, não se pode ignorar as mazelas advindas do intenso processo de
desenvolvimento das forças produtivas capitalistas que, par e passo a essa alta
eficiência em termos de produção e produtividade, deixou fora regiões, produtos
e agricultores, o que lhe atribuiu o título de “modernização conservadora” da
agricultura. Ao lado da grande expansão da produção agrícola, resultante da
intensificação das relações entre agricultura e indústria, do incremento no uso
de insumos e agrotóxicos, da mecanização e da inserção no mercado capitalista
globalizado, advindos da chamada “revolução verde”, registrou-se um grande
desfavorecimento de uma enorme quantidade de agricultores familiares
(camponeses, índios e outras comunidade etnicamente diferenciadas) em termos
econômicos e culturais.
Deve-se
acrescentar a esses fatos uma enorme dívida ambiental, visto que os processos
produtivos homogeneizadores, por meio dos monocultivos, quebram as cadeias
agroecossistêmicas. E, em nome de eficiência produtiva, deixam de lado um
problema crucial das sociedades contemporâneas: o desequilíbrio ambiental, com
mudanças climáticas, compactação e deterioração dos solos, contaminação dos
mananciais e problemas na saúde humana resultantes do alto uso de agrotóxicos.
É
nesse contexto que diversos autores colocam a origem da agroecologia. Sevilla
Guzman (2011) mostra o potencial do campesinato e das comunidades indígenas na
luta por superar o capitalismo a partir da agroecologia. Faz uma crítica
contundente às teorias do determinismo econômico, que indicavam a necessidade
da industrialização da agricultura e anunciavam o desaparecimento do
campesinato, colocando-o como uma classe residual. Em contraposição a essa
concepção, o autor trabalha com o campesinato como categoria social que guarda
relações e dimensões de resistência ao desenvolvimento capitalista.
A
agroecologia passa a ser entendida como um processo histórico no campo,
integrando teoria e prática e, com isso, construindo diferentes dimensões que
poderão contribuir com a transformação da sociedade. A agroecologia, ainda
segundo o autor, passaria pela história de resistência dos setores oprimidos do
campo e da cidade, revelando um papel de inventividade e resistência. Trata-se
de uma postura ativa na história da luta contra a opressão. Foi com base nesse
referencial que Mazalla (2015) desenvolveu uma importante reflexão sobre agroecologia
em uma perspectiva de transformação social, afirmando que é nessa experiência
histórica de resistência e busca pela libertação das relações de dominação a
que os agricultores mais pobres, o campesinato e os indígenas foram submetidos
que se pode registrar o surgimento de um manejo específico de recursos
naturais, além de um conjunto de técnicas ecológicas ressignificadas.
Assim,
um dos principais estímulos ao surgimento da agroecologia seria a tentativa de
oferecer uma contraposição ao processo de modernização da agricultura. A
dinâmica da produção diversificada, combinando autoconsumo com a venda de
excedentes, foi substituída pela lógica da produtividade intensiva.
Intensificar a produção, utilizar ao máximo os recursos naturais (solo, água
etc.) até seus limites, constitui-se no êxito da produção capitalizada no
campo. Biase e Donato (2015 p.4) afirmam que “as diferentes técnicas de manejo
do solo e da diversidade de sementes ficaram impotentes diante da combinação:
sementes geneticamente selecionadas, híbridas e transgênicas, maquinários,
fertilizantes químicos e agrotóxicos”.
Em
outras palavras, esse pacote da “revolução verde” inviabilizou a permanência de
uma diversidade de técnicas e de produtos agrícolas. No entanto não conseguiu,
apesar de seu poder homogeneizante, inserir agricultores familiares, camponeses
ou aqueles etnicamente diferenciados, na lógica capitalista de produção. Na
verdade, assistiu-se a um processo de permanência e resistência desses
segmentos da agricultura, apesar de tê-los submetido a um processo de
pauperização, afetando sobremaneira “a relativa autonomia que possuíam”.
Em
síntese, essas agriculturas primam pela diversidade de seus agroecossistemas,
em contraposição à artificialização e simplificação, características peculiares
nos sistemas industriais de cultivo. O estabelecimento dessas contradições
entre as chamadas agriculturas “tradicionais” e “modernas” é responsável pelo
desenvolvimento da agroecologia, tornando-se uma alternativa para a
sustentabilidade. Isso significa que a agroecologia, concebida como um novo
paradigma, tem seu objetivo fundamental na busca de um equilíbrio dinâmico que
promova a sustentabilidade. Isso pode se dar através da adoção da prática de
uma agricultura não agressiva aos recursos naturais e à natureza, ajustada às
demandas sociais, econômicas e culturais, solidamente vinculadas aos princípios
da solidariedade através da ética participativa de seus sujeitos (Fidelis,
2015).
Assim,
“a agroecologia busca reconstruir uma agricultura sustentável capaz tanto de
minimizar os efeitos devastadores da crise ambiental em que vivemos quanto de
possibilitar a reorganização desses povos em torno de suas próprias práticas
agrícolas, econômicas e socioculturais, em busca de autonomia, segurança
alimentar e dignidade” (Biase e Donato, s/d).
As diferentes abordagens da agroecologia
Pairam
ainda sobre a agroecologia algumas confusões conceituais, embora não se possa
negar a complementariedade de suas abordagens. Partindo do debate de sua
epistemologia, Borsatto (2011) defende sua consolidação enquanto um campo
acadêmico e aponta sua perspectiva militante sem negar que pode ser considerada
uma prática, um movimento e uma ciência (Wezel, 2009).
A
agroecologia se encontra na junção da ecologia e da agronomia em seus
fundamentos teóricos e práticos. Na relação entre as duas ciências e nas
experiências vivenciadas com populações rurais desfavorecidas, Gliessman (2001)
vislumbra a possibilidade de uma agricultura menos agressiva ao meio ambiente.
A valorização do “saber local” pelos cientistas naturais abriu caminho para a agroecologia
em paralelo ao conhecimento científico. O foco principal da abordagem de
Gliessman é a dimensão ecológica através das referências teóricas da ecologia
de ecossistemas, tanto em seus aspectos ecológicos como socioeconômicos e
culturais.
Altieri
(2001), um dos grandes divulgadores da agroecologia na América Latina, a concebe
como uma contra-estratégia de autonomia e desenvolvimento econômico sustentável
para os(as) agricultores(as) pobres frente ao modelo hegemônico de produção
agrícola. A agroecologia é para esse autor uma ciência que promove o
desenvolvimento sustentável. Assim, concebe a agroecologia como uma “disciplina
científica que enfoca o estudo da agricultura sob uma perspectiva ecológica e
com um marco teórico cuja finalidade é analisar os processos agrícolas de forma
abrangente. O enfoque agroecológico considera os ecossistemas agrícolas como
unidades fundamentais de estudo; e nesses sistemas, os ciclos minerais, as
transformações de energia, os processos biológicos e as relações
socioeconômicas são investigadas e analisadas como um todo” (Altieri e Nicholls,
1989 p.26).
Para
Altieri (2001) somente um conhecimento aprofundado da ecologia humana dos
sistemas agrícolas pode resultar em medidas coerentes com uma agricultura
realmente sustentável. O autor fundamenta suas reflexões no estudo das
“etnociências”. É através delas que se dá o acesso aos conhecimentos
tradicionais sobre o manejo da agricultura. É através desse conhecimento que se
obtêm informações importantes que podem ser utilizadas no desenvolvimento de
estratégias agrícolas apropriadas às necessidades de grupos específicos de
agricultores e de agroecossistemas regionais.
Partindo-se
da concepção teórica de Sevilla Guzmán, é possível compreender a agroecologia
como uma ciência do campo da complexidade, ou um novo paradigma científico
fundamentado na interdisciplinaridade, num enfoque holístico e em uma abordagem
sistêmica (Caporal, 2009).
Altieri
e Toledo (2011) afirmam que as iniciativas agroecológicas buscam superar os sistemas
de produção agroindustrial de biocombustíveis e cultivos de exportação,
estabelecendo as bases da agricultura local para produção de alimentos por
camponeses e agricultores familiares a partir dos recursos naturais locais.
A
agroecologia não pode ser concebida como um tipo de agricultura, como um
sistema de produção e muito menos como uma tecnologia agrícola. Mais do que um
modelo de agricultura de base ecológica, a agroecologia aborda a organização
social, o comportamento econômico e uma postura política que venha contribuir
com as transformações sociais necessárias para gerar padrões de produção e de
consumo mais sustentáveis e equitativos (Mazalla, 2014).
Um alerta
Apesar
de toda essa construção teórico-científica sobre a agroecologia, antes de
finalizar essas reflexões, torna-se de fundamental importância deixar um alerta
sobre a falta de centralidade que vem se registrando nos debates acadêmicos
mais recentes.
Tem-se
assistido a uma deterioração dos princípios agroecológicos, algumas vezes tomados
como pacotes tecnológicos verdes que, ao invés de fortalecer os processos a
partir dos conhecimentos locais, acabam por trilhar os mesmos caminhos da
agronomia tradicional.
Nesse
sentido, há que se ter muito cuidado na abordagem e na prática da agroecologia,
retomando a centralidade de suas concepções, seu caráter transformador, a
organização camponesa das bases produtivas e culturais da vida no campo e em
sua relação com a natureza. Assim, é importante não perder de vista sua
complexidade, ao resgatar elementos da realidade de forma pluridisciplinar, mas
também seu caráter simplificador consubstanciado nas relações do homem com a natureza. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Altieri M.; Toledo, V. M. “La revolución agroecológica en Latinoamérica”, Sociedad
Científica Latinoamericana de Agroecología (Socla), 2011. Altieri, M. Agroecologia: As bases
científicas da agricultura alternativa. Tradução de Patrícia Vaz. Rio de
Janeiro, PTA/FASE, 1989. Biase L.; Donato R. “Na
encruzilhada dos saberes e práticas: inserções antropológicas sobre
estranhamento e alteridade no interior da agroecologia”. Revista Brasileira de Agroecologia v 7(2):
3-18 (2012).
Borsatto, R.S. “A agroecologia e sua
apropriação pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
assentados da reforma agrária”. 2011. 298f. Tese de doutorado em engenharia agrícola.
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2011. Fidelis, L. M. “Família, trabalho e terra: sementes da autonomia em comunidades
do Vale do Ribeira paranaense”. Unicamp, 2015, 236p. Gliessman, S.R. “Agroecologia: procesos ecológicos en agricultura sostenible”.
Turrialba: CATIE, 2002. Mazalla Neto. W. “Agroecologia e movimentos sociais: entre o debate teórico e sua
construção pelos agricultores camponeses”. 2014. 228f. Tese de doutorado em engenharia
agrícola, Unicamp, 2014. Sevilla Guzmán,
E. “Sobre los orígenes da la
agroecología en el pensamiento marxista y libertario”. La Paz, Bolivia: Agruco/Plural Editores/CDE/NCCR, 2011.
Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco
é professora titular da Faculdade de Engenharia Agrícola da Universidade
Estadual de Campinas (Feagri/Unicamp), bolsista de produtividade em pesquisa
pelo CNPq e bolsista Capes (PVNS) na UFSCar, campus de Araras. E-mail:
sonia@feagri.unicamp.br.
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