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Traduzir poesia: porfia entre ilhas vocabulares
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Resenhas
Traduzir poesia: porfia entre ilhas vocabulares
Poesia traduzida, de Carlos Drummond de Andrade, é um exemplo de tradução elevada à máxima potência.
Por Leonor Assad
10/07/2012

As palavras não são apenas símbolos de coisas, são também coisas elas próprias, com a forma, a cor, a densidade, o peso, a essência peculiar a cada qual... Louvemos, por isso mesmo, os tradutores. Dentro da condição terrestre e das ilhas vocabulares, eles fazem o que podem.

Hugo de Figueiredo1

Correio da Manhã, 26 de julho de 1952.

Traduzir é reescrever um texto em língua diferente daquela em foi escrito. Mas o que parece tarefa simples é, na verdade, uma arte, pois se aproxima do trabalho do artista que reproduz um objeto numa tela, ou do trabalho de um ator que interpreta um texto. Talvez nem todos saibam pintar, mas, qualquer um que saiba ler, pode dizer em voz alta um texto de Graciliano Ramos; muitos podem até colocar uma entonação aqui e ali para enfatizar esse ou aquele trecho. Mas somente o ator, e principalmente, o bom ator, terá o poder de nos fazer compreender, em São Bernardo, a emoção contida na fala de Paulo Honório, após o suicídio da esposa Madalena:

Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? (São Bernardo, p.181).

A tradução é uma interpretação, muito mais do que a transcrição de palavras. E, quando se trata de traduzir poesia, essa interpretação envolve também sentido, ritmo, semelhanças sonoras, até mesmo o aspecto visual das palavras no papel, que habitualmente usados para se chegar a um efeito global, como aponta Paulo Henriques Britto, em seu artigo “Som, ritmo, sentido – A arte de traduzir poesia”, publicado na revista Ciência Hoje. A tradução de poesia é a tradução literária elevada à máxima potência, destaca Britto.

E Poesia traduzida, de Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 1902 – Rio de Janeiro, 1987), é um exemplo de tradução elevada à máxima potência. O livro em si, lançado em 2011 pela Cosac Naify, é um primor para os que gostam de obras impressas em bom papel, que guardam um delicado cheiro amadeirado em suas folhas amareladas. São 448 páginas bem ilustradas, com projeto gráfico de Gabriela Castro. Este, já na capa, nos brinda com a bela obra Personaje com libro, do escultor catalão Julio González (Barcelona, 1876 – Paris, 1942). Dentro, a primeira imagem é de Drummond, aos 41 anos, que, com seu olhar envidraçado, parece nos dizer: Queres mesmo ler o que esse aprendiz de tradutor fez com belos poemas alheios?”.

Com efeito, Drummond, que publicou a maioria de suas traduções de poesias em jornais e revistas, muitas vezes se esquivou de seu papel de tradutor. Considerava-se tradutor bissexto, ou despretensioso tradutor, ou ainda aprendiz de tradutor. Modéstia do mineiro Drummond, que além de poemas, traduziu nove livros e outros tantos textos geralmente inseridos em suas colunas nos jornais. E quem nos revela isso, de forma quase didática, é Júlio Castañon Guimarães na introdução rica em detalhes. São 29 páginas que nos mostram uma nova faceta de Drummond, só agora exposta claramente: sua capacidade de verter para o português versos escritos em espanhol, francês, e inglês.


Foto de Drummond em 1951, de autoria de Manuel Graña Etcheverry.
Crédito: Reprodução
Poesia traduzida

É na introdução que ficamos sabendo que Carlos Drummond, em 1951, tinha intenção de publicar suas traduções de poesias, num livro que se intitularia Poesia errante. Sessenta anos se passaram... Notas e ilustrações, organizados por Augusto Massi e Castañon e apresentados ao final do volume, elucidam as circunstâncias de publicação de cada poema, incluindo explicações do próprio Drummond que originalmente acompanharam alguns dos textos. Em Poesia traduzida, Massi e Castañon apresentam-nos os resultados de uma busca meticulosa no arquivo de Drummond, hoje depositado na Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ). Também recorreram a especialistas como Fernando Py e Edgard de Almeida Loural, que organizou o acervo sobre Drummond que hoje se encontra na PUC-RJ.

Nunca fui amante de traduções: por falta de habilitação e de paciência... Às vezes imaginamos que estamos traduzindo e estamos simplesmente falsificando: culpa da cerração no mar de línguas, senão da própria irredutibilidade do texto literário.2

Carlos Drummond de Andrade

Revista Acadêmica, novembro de 1946.

Um bom livro, alguém já disse, pode nos contaminar como vírus, para o qual, a rigor, não há muito remédio. A palavra vírus vem do latim e significa fluído venenoso ou toxina. Não é a toa que hoje ela seja usada para os vírus biológicos e, metaforicamente, para qualquer coisa que se multiplique rapidamente provocando uma verdadeira invasão, como ideias, programas de computador e, claro, um belo poema. E quando se pode ler sua forma original e a tradução dada por um poeta da envergadura de Drummond, o prazer é multiplicado.

Em Poesia traduzida são 64 poemas, de autores de variadas nacionalidades, apresentados no original e na tradução de Drummond. Estão organizados em ordem alfabética do sobrenome: Vicente Aleixandre, Guillaume Apollinaire, José Antonio Balbontín, Fernando de Córdoba y Bocanegra, Bertolt Brecht, Aimé Césaire, Paul Claudel, Marie-Laure David, Paul Éluard, Ralph Waldo Emerson, Leon-Paul Fargue, Léon Felipe, Carmen Bernos de Gasztold, Arnoul Gréban, Jean Michel, Nicolás Guillén, Heinrich Heine, Isabel, Juan Ramón Jiménez, Erich Kästner, Valery Larbaud, Federico García Lorca, Edwin Markham, Phyllis Macginley, Jane Merchant, Edna St. Vincent Millay, Paul Morand, Ogden Nash, Fredrik Nygard, Sigbjorn Obstfelder, Félix Paredes, Dorothy Parker, Coventry Patmore, Horacio Peña, Jacques Prévert, Arturo Torres-Rioseco, Felipe C. Ruanova, Pedro Salinas, Carl Sandburg, George Santayana, Henry Spiess, Jules Supervielle, Julian Tuwin, André Verdet e Charles Vildrac.

Em alguns poemas, o tradutor Drummond é quase literal, como em “O fusilado” (Le fusillé), de Jacques Prévert (Neuilly-sur-Seine, 1900 – Omonville-la-Petite, 1977): As flores, os jardins, os repuxos, os rios (Les fleurs les jardins les jets d'eau les sourires) / e a doçura da vida. (Et la douceur de vivre) /(...) / Jaz um homem no chão, criança adormecida (Um homme est là par terre comme um enfant dormant). Em outros, o poeta Drummond se permite algumas transposições que tornam a versão em português mais sutil. É o caso da tradução indireta feita para o poema do dinamarquês Fredrik Nygard (1845 – 1897), a partir de versão em francês de Ivan Goll: Uma vaquinha (Une petite poule) / uma galinhazinha (Une petite meule) / um moinhozinho (Une petite vache) / um homenzinho (Un petit homme) / e sua casinha (Une petite demeure) / com seus quatro choupos: (Avec quatre peupliers:) / tua vista abarca (Tu as là) / toda a Dinamarca! (Tout le pays danois!).

Mas é quando Drummond ousa transgredir que seu talento nos presenteia com pérolas poéticas. É o caso das traduções de sete poetas, feitas inicialmente para Seleções do Reader's Digest, em novembro de 2006, e republicados com modificações no Jornal do Brasil, em 5 de abril de 1983. Com o título geral de “Quartetos sábios”, incluíam poemas de Ralph Waldo Emmerson (1803-1882), Dorothy Parker (1893-1967) e George Santayana (1863 – 1952), os quais, independentemente da quantidade de versos que continham, foram reduzidos a quadras. New Pharisee, de Jane Merchant (1919-1972) – If I forgive / An injury / Because resenting / Would poison me - / / I may feel noble, / I may feel splendid / But it isn't exactly / What Chist intended. – transformou-se em “Perdão” (Se perdôo a quem me injuria / (Pois rancor me mataria) / Julgo-me excelente. Mas isto / Não é bem o que queria Cristo). Na versão de Seleções, Drummomd ainda nos brinda com a seguinte nota:

Para variar, o cronista vosso servidor oferece hoje sobremesa variada: quartetos. Foram traduzidos do inglês sem preocupação literária. Mais precisamente: para distrair os leitores. Não terão muita poesia, mas encerram o que poderia chamar de espírito filosófico prático, à margem das abstrações da filosofia. E ensinam alguma coisa.3

Enfim, Poesia traduzida é um livro para se ler e se saborear, da entrada à sobremesa, como gourmand de literatura, pois é, de fato, tradução literária elevada à máxima potência.

Poesia traduzida
Carlos Drummond de Andrade
Ano: 2011
Editora: Cosac Naify
Nº de páginas: 448

Notas

1 Pseudônimo de Carlos Drummond de Andrade. Fonte: Introdução, de Júlio Castañon Guimarães, p.12. In: Poesia traduzida, de Carlos Drummond de Andrade.
2
Introdução, de Júlio Castañon Guimarães, p.13. In: Poesia traduzida, de Carlos Drummond de Andrade.
3
Notas, p.398. I n : Poesia traduzida, de Carlos Drummond de Andrade.