''Há muito álcool sendo consumido aqui hoje''. Com essa piadinha de duplo sentido, o presidente George W. Bush abriu um jantar anual de jornalistas no dia 28 de março em Washington. Três dias depois, foi a vez de Luiz Inácio Lula da Silva fazer gracejos sobre as negociações Brasil-Estados Unidos a respeito do etanol. Após o encontro na residência de campo do colega estadunidense, no dia 31, o brasileiro disparou entre risos a seguinte declaração: "Se alguém perguntar para mim, ‘o que você está levando para o Brasil?’, certamente eu direi ‘nada’”. As jocosidades ajudaram a preencher a ausência de resultados concretos das conversas entre os dois governos.
Ponto alto da visita, o passeio dos presidentes a bordo do Golfcart One (Carrinho de Golfe Um, chiste em referência ao Força Aérea Um, o avião oficial do mandatário norte-americano) foi a metáfora perfeita das relações entre os dois países na questão do etanol. Como o veículo de golfe, as conversações foram lentas, de dimensões reduzidas e estão sob o comando dos Estados Unidos. O “nada” de Lula pode ser traduzido por dois documentos assinados por ambos chefes de Estado expressando muitas intenções e quase nenhuma ação concreta: o Memorando firmado na visita de Bush ao Brasil no dia 9 de março e a Declaração Conjunta dos presidentes durante a estada de Lula em Camp David, no dia 31.
As fontes oficiais do governo concordam com Lula ao considerar que os resultados das negociações foram pífios. “Ao não conter obrigações, o memorando não tem grandes implicações”, admite Maurício Borges, gerente de Assuntos Internacionais da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), órgão criado pelo Governo Federal em 2004. Segundo a assessoria do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o presidente da ABDI, Alessandro Teixeira, foi designado pelo governo o seu porta-voz oficial na questão do etanol.
Resultados mais concretos deverão vir dos efeitos colaterais das conversas entre a Casa Branca e o Palácio do Planalto, segundo aposta Borges. “A visita de Bush trouxe os holofotes mundiais sobre o Brasil, o que pode abrir oportunidades de negócios com muitos outros países” acredita o gerente da ABDI. “Já somos conhecidos mundialmente por nosso know-how em desenvolvimento e produção de biocombustíveis”, completa. Sobre o fracasso de Lula ao tentar derrubar a sobretaxa de US$0,54 imputada ao álcool brasileiro no mercado norte-americano, Borges é ainda mais otimista. “Foi bom isso ter acontecido. Não conseguiríamos suprir a demanda de álcool dos Estados Unidos se a taxa fosse derrubada agora”, revela.
Demanda de álcool cresce dentro e fora do país
Ao admitir que a pressão pela extinção da tarifa era apenas encenação no joguete negocial, o governo expõe outra questão crucial a ser enfrentada dentro de pouco tempo: o Brasil conseguirá suprir a demanda interna e externa de álcool sem provocar grandes impactos sociais e ecológicos?
A sobretaxa norte-americana não impediu que a exportação de etanol para os Estados Unidos desse um salto de 578% no ano passado em relação a 2005, atingindo 1,7 bilhão de litros, segundo dados da União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica). Além dos EUA, uma parceria assinada em março entre a Petrobras e a japonesa Mitsui prevê a criação de um sistema produtivo para a exportação de álcool para o Japão. Um estudo do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe) da Unicamp, realizado em parceria com o Ministério da Ciência e Tecnologia, revelou que para abastecer 5% do mercado mundial de álcool combustível, o Brasil precisará aumentar a sua produção em seis vezes, atingindo 100 bilhões de litros.
A sede por etanol também é crescente no mercado interno. De acordo com a Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), no mês de fevereiro, 83,4% dos veículos que saíram das montadoras eram bicombustíveis (movidos tanto a álcool quanto gasolina) e em 2013, a frota híbrida deverá ser 500% maior que as 2,6 milhões de unidades atuais. Os veículos brasileiros a gasolina que estiverem rodando também vão contribuir no consumo do álcool. Eles deverão queimar 20% ou mais de etanol em seus motores. O teor do combustível da cana na gasolina é determinado pelo governo federal que leva em conta principalmente o preço dos dois combustíveis. Será viável para o Brasil suprir todos esses mercados?
Essa questão virou munição para os opositores da Casa Branca. O presidente Hugo Chávez da Venezuela, oitavo maior produtor mundial de petróleo, atacou logo após a visita de Bush ao Brasil. Chávez alegou que as plantações para a produção de energia tomarão o lugar das lavouras de alimentos, condenando bilhões de pessoas à fome. A mesma linha foi repetida pelo líder cubano, Fidel Castro, que abordou o tema em sua primeira manifestação após oito meses de silêncio e afastamento do governo por problemas de saúde. Castro escreveu um editorial publicado no jornal oficial Granma no dia 29 de março, véspera da viagem de Lula aos Estados Unidos.
O presidente brasileiro tentou esfriar a discussão através de um artigo publicado pelo jornal norte-americano Washington Post no dia 30 de março. No texto, o brasileiro afirmou que tanto as lavouras de alimentos brasileiras como a floresta amazônica estarão a salvo da sanha dos plantadores de cana. Como principal argumento, Lula diz que somente 1% das terras aráveis do Brasil são ocupadas pela cana para a produção de álcool, o que representa três milhões de hectares. Entre as zonas livres para a expansão da produção, segundo o presidente, estariam as pastagens que ocupam 200 milhões de hectares no Brasil.
Repasse de tecnologia
Além da posição de maior fornecedor de álcool ao mercado internacional, o governo brasileiro ainda vislumbra a liderança na exportação de maquinários para o setor. Maurício Borges afirma que a expansão mundial da cultura da cana-de-açúcar fará crescer a indústria brasileira de máquinas e equipamentos agrícolas. “A transformação do etanol em commodity (bem negociável no mercado internacional) vai permitir que outros países também produzam álcool. O Brasil não vai suprir sozinho o mercado mundial, mas poderá ser fornecedor de máquinas e tecnologia para os demais produtores,” prevê.
É justamente no repasse de tecnologia de produção que reside uma das mais fortes críticas às relações Brasil-Estados Unidos. Thomas Almeida, pesquisador do Conselho de Assuntos Hemisféricos (COHA), centro de análise sediado em Washington, lançou um sinal de alerta para as intenções dos Estados Unidos no setor. O governo Bush vai iniciar um programa de investimentos de US$36 milhões para plantações de cana-de-açúcar em quatro estados americanos e de US$650 milhões a serem utilizados para a produção de combustível a partir da celulose e da cana-de-açúcar nos países membros do Tratado de Livre Comércio da América Central (CAFTA-DR).
O pesquisador lembra que os países caribenhos e da América Central gozam de tarifas de importação menores que as impostas ao Brasil no mercado norte-americano. “Sendo assim, o que o Brasil vai ganhar exportando tecnologia na produção de cana-de-açúcar e desse modo abrindo mão de seu lucrativo mercado de exportação de etanol?” Pergunta Almeida. “Parece não haver incentivo algum para o Brasil colaborar com esse plano de Washington”, conclui. É importante notar que são os acordos de cooperação técnica, e não as relações comerciais, que figuram na declaração conjunta elaborada no encontro em Camp David. O que faz imaginar que, no dia 31, foi mesmo Bush quem deu as cartas no encontro.
A engenheira agrônoma Heloísa Lee Burnquist, professora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da USP, não vê ameaça numa futura produção dos países caribenhos. “Eles dificilmente ganhariam do Brasil em escala,” afirma, “além disso, é interessante para o país não ser o único produtor de álcool” analisa a pesquisadora. Segundo ela, uma produção internacional daria mais flexibilidade ao Brasil. Se o preço do álcool caísse muito, por exemplo, o país teria a opção de produzir açúcar e importar etanol.
Para Heloísa, o Brasil dificilmente seria alcançado por outro país em sua posição de maior produtor mundial de álcool. Porém, segundo a pesquisadora, a grande produção também pode ser o calcanhar-de-aquiles brasileiro. “Se produzirmos muito, corremos o risco de uma nova tecnologia suplantar e substituir o etanol lá fora e perderemos investimentos,” explica, “por outro lado, se não produzirmos o suficiente, faltará etanol. É preciso acertar na medida.”
Com uma postura pragmática, o cientista social Sérgio Gil Marques dos Santos acredita que o sucesso do Brasil no novo mercado de biocombustíveis vai depender da capacidade negocial do país. Pesquisador da Universidade de São Paulo e professor em três instituições de ensino superior, Santos afirma que é hora de uma negociação madura, séria e responsável com os Estados Unidos. “Nossa tecnologia tem que ser difundida, sim, e é na mesa de negociação que decidimos o que vamos levar em troca,” acredita o cientista.
Negociar bem as vantagens que possui pode ser a chave para o país. Com duas décadas de experiência na frente, clima favorável, tecnologia desenvolvida e mercado já consolidado, o Brasil é sem dúvida a maior potência da atualidade em combustíveis de origem vegetal. Mas se quiser trabalhar de igual para igual com um gigante sedento por energia terá que assumir sua estatura ou terminará como mais um quintal energético da Casa Branca ou ainda um mero fornecedor de tecnologia em troca de passeios bucólicos em carrinhos de golfe.
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