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Artigo
O que há em comum entre a leitura de uma postagem no facebook e a de um romance?
Por Rodrigo Cunha
10/12/2013

Certa vez, uma professora do ensino fundamental compartilhou no facebook uma tirinha de humor do Calvin, personagem criado por Bill Watterson, em que ele diz para seu amigo, o tigre Haroldo, que a matemática não seria uma ciência e sim uma religião. Seu argumento: “Ao somar dois números, por magia eles tornam-se num novo número! Ninguém pode dizer como é. Acredita-se ou não.” No universo do ensino fundamental, a tendência a achar graça em uma tira como essa é maior entre aqueles que, sejam professores ou alunos, têm uma inegável predileção pelos textos e ódio aos números. Como se fossem coisas excludentes.

Um tempo depois, perto da Páscoa, eu compartilhei com aquela professora um quadrinho intitulado “Não vale o quanto pesa”, em que apareciam, no alto, alguns chocolates e bombons com seus respectivos pesos e preços, e abaixo, os ovos com a mesma “grife” do chocolate ou do bombom, seguidos de curtos textos comparativos. Apenas para citar um exemplo, no caso do Sonho de Valsa, o texto dizia o seguinte: “O peso do ovo equivale ao de 17 bombons, e o preço ao de 51 bombons”. Fiz à professora uma alusão ao quadrinho de humor que ela havia compartilhado e a convidei a pensar se não seria uma boa ideia usar aquele quadro comparativo como exercício com seus alunos, aproveitando a matemática para falar em consumo consciente. Em resposta, ela se ateve apenas à crítica ao consumismo, dizendo que já estava decidida a não comprar ovo naquela Páscoa. Sobre a matemática ou a alusão à tira que a tratava como uma coisa transcendental, nenhum comentário.

No campo da literatura, são inúmeros os exemplos de escolas do Brasil todo que já realizaram, pelo menos algum dia, uma espécie de “julgamento de Capitu”, a protagonista do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. De um lado, ficam os “advogados” de acusação, argumentando e apresentando “provas” de que ela traiu o Bentinho, o outro protagonista. Do outro lado, os “advogados” de defesa, empreendendo esforços equivalentes para “inocentá-la”. Os primeiros se atêm, na leitura do romance, a detalhes como a semelhança entre Ezequiel, filho de Bentinho e Capitu, e Escobar, seu amigo e suposto pivô da traição, esquecendo-se, providencialmente, que a história é contada por Bentinho, do ponto de vista dele. Já os defensores de Capitu se atêm justamente a isso, à narrativa parcial e distorcida daquele que se sentiu traído. Uma terceira leitura possível diria que o mais importante da história não é se houve ou não a traição, mas o quanto Machado foi feliz ao combinar a dissimulação de Capitu com a parcialidade da narrativa de Bentinho. É o poder dissimulador de Capitu e o fato de a história ser contada por Bentinho que, juntos, geram a dúvida.

Dar mais atenção a um determinado detalhe em detrimento de outro – o que pode equivaler à total abstração, por uns, de algo que é crucial para outros –, tanto no caso de uma postagem no facebook quanto de um romance, faz parte daquilo que eu chamo de “leitura menonocchiana”, termo cunhado em minha tese de doutorado, do qual voltei a falar em artigo na revista Leitura: teoria e prática e em trabalho apresentado no Congresso de Leitura do Brasil, e que volta a aparecer no capítulo que escrevi para o livro Em(n)torno de Bakhtin: questões e análises, organizado por Raquel Fiad e Luciano Vidon, que acaba de sair pela Pedro & João Editores. Se nesses trabalhos acadêmicos a tal “leitura menocchiana” aparece já no título, neste veículo, que atinge tanto especialistas quanto leigos, optei por não fazer o mesmo, para não espantar leitores. Ou para dizer de outra forma, para atraí-los até aqui.

Essa expressão, “leitura menocchiana”, foi inspirada em Menocchio, protagonista de O queijo e os vermes, escrito pelo historiador italiano Carlo Ginzburg. Embora seja um estudo acadêmico, a estrutura do texto é semelhante a das narrativas de histórias de detetive, como as clássicas aventuras de Sherlock Holmes escritas por Conan Doyle. Curiosamente, a temática gira em torno de um processo criminal, mas o que o detetive Ginzburg se propõe a investigar não é propriamente se Menocchio cometeu ou não um crime e, caso tivesse cometido, quais seriam os seus motivos. Ao se debruçar sobre dois extensos processos protagonizados por esse notável moedor de grãos do período medieval que acabou na fogueira do Tribunal da Santa Inquisição, Ginzburg procura indícios (pistas) de leituras que Menocchio teria feito, a partir das quais teria formulado suas ideias incomuns acerca da origem do universo.

Uma das conclusões do historiador é que, por mais que Menocchio e suas ideias fossem fora do comum, transitavam dentro dos limites da cultura de seu tempo e de seu meio social. O réu da Inquisição teria, portanto, articulado sentidos que circulavam em seu tempo e em seu meio, tanto naquilo que lia da palavra escrita quanto naquilo que lia do mundo ao seu redor. E nesse ponto, cabe associar isso ao que disse o educador Paulo Freire em A importância do ato de ler: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”, ou seja, a leitura da palavra escrita pressupõe “uma outra leitura, prévia e concomitante àquela, a leitura da realidade”. Como parte desse jogo envolvendo a leitura da palavra e a leitura do mundo, Ginzburg destaca uma circularidade entre cultura popular e cultura erudita no período medieval, já apontada anteriormente por Mikhail Bakhtin em seu estudo sobre a poesia de Rabelais. Segundo o historiador italiano, essa influência mútua do popular e do erudito seria um processo generalizado e universal, do qual o singular Menocchio era uma figura representativa.

E o que tudo isso tem a ver com o que eu disse antes sobre a leitura de um romance ou de uma postagem no facebook? O que Menocchio fez, basicamente, foi combinar fragmentos do que leu em obras como Fioretto dela Bibbia, por vezes se apegando a determinados trechos e abstraindo outros, com fragmentos de sentidos que circulavam em seu tempo e em seu meio. Essa leitura fragmentada – a que todos nós estamos sujeitos – e a recombinação de sentidos na junção dos fragmentos é um processo que Michel de Certeau chamou, em A invenção do cotidiano, de bricolagem. Segundo Certeau, o leitor “combina seus fragmentos e cria algo não-sabido no espaço organizado por sua capacidade de permitir uma pluralidade indefinida de significações”. Esse processo de bricolagem tem a ver com a concepção de leitura como transformação, defendida pelo educador Ezequiel Silva. De acordo com ele, “ao ler, o sujeito-leitor sempre mobiliza outros textos presentes na sua história de vida e, após a interlocução, produz um outro texto que é a expressão do sentido que ele conseguiu arquitetar”.

A ideia de “uma pluralidade indefinida de significações”, apontada por Certeau, ou de que sempre haverá, no processo da leitura, uma transformação ou a produção de outro texto, como defende Silva, não é, em absoluto, dizer que “vale tudo” em termos de leitura. Ginzburg constatou, na sua tentativa de traçar o percurso de leituras de Menocchio, momentos em que havia claramente uma distorção de sentido do texto lido. Como diria o linguista Sírio Possenti, o fato de poder haver várias leituras corretas não quer dizer que não há leitura errada. Claro que há. Ginzburg observa, no entanto, que as deformações de sentido feitas por Menocchio importavam menos a ele do que a torrente de perguntas que o moedor de grãos colocava diante daquilo que lia, as quais iam muito além da leitura da palavra.

Trocando em miúdos, tudo isso significa o seguinte: toda leitura, seja ela correta ou com algum grau (pequeno ou grande) de distorção, é um processo de bricolagem, de recombinação de fragmentos do que lemos na palavra escrita e no mundo; e toda leitura da palavra passa, previamente, pela nossa leitura do mundo. E é essa leitura do mundo, formada na história singular de vida de cada um de nós, que faz com que uns achem graça em uma determinada tira de humor e outros não. É essa leitura do mundo que lança uma lupa no olhar de uns para um determinado trecho de uma postagem no facebook em detrimento de outro. É essa leitura do mundo que faz com que, na leitura de um romance como Dom Casmurro, alguns acusem Capitu de ter traído Bentinho, outros a inocentem e existam, ainda, aqueles que preferem permanecer na dúvida.

Pensar que nossa leitura de um romance como Dom Casmurro passa previamente pela leitura e recombinação de fragmentos da vida em convívio familiar ou com amigos, daquilo que vemos na TV ou no cinema, das músicas que ouvimos ou das cenas que presenciamos no cotidiano não é, de forma alguma, desvalorizar a leitura da palavra. É, sobretudo, valorizar a imensurável pluralidade que há na leitura do mundo.

Rodrigo Cunha é editor da revista ComCiência e doutor em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas.

Referências

Certeau, Michel. “Usos da língua”. Em: A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
Cunha, Rodrigo Bastos. “Indícios de leitura, visões de mundo e construções de sentido”. Campinas (SP): IEL/Unicamp (tese de doutorado), 2009.
Freire, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 44ª edição. São Paulo: Cortez, 2003.
Ginzburg, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. 1ª edição Companhia de Bolso. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Possenti, Sírio. “A leitura errada existe”. Em: Barzotto, V. H. Estado de leitura. Campinas (SP): Mercado de Letras, 1999.
Silva, Ezequiel Theodoro. “Uma reflexão sobre o ato de ler”. São Paulo: PUC-SP (tese de doutorado), 1979.