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Reportagem
De Gen Pés descalços ao Godzilla: como a bomba atômica inspirou a ficção japonesa
Por Tiago Alcântara
10/09/2015

Kenji Nakazawa tinha 6 anos quando sua vida mudou para sempre. No dia 6 de agosto de 1945, o menino nascido e criado em Hiroshima perdeu sua família inteira, com exceção de sua mãe, na explosão causada pela bomba atômica Little Boy. Na época, a cidade tinha uma população de cerca de 350 mil pessoas. Cinco anos depois, o Departamento de Energia dos Estados Unidos estimou que foram mais de 200 mil vítimas – se somadas as mortes decorrentes do impacto e por motivos indiretos, como o câncer que acometeu milhares dos sobreviventes da explosão.

Alguns anos após a morte de sua mãe, Nakazawa resolveu utilizar seu talento como roteirista e desenhista de mangás – os quadrinhos japoneses – para contar o que viveu na história Ore Wa Mita ("Eu a vi", em tradução livre), de 1972. No ano seguinte, o mangaká transformaria esse conto de sobrevivência na base para a ficção Gen – Pés descalços (Hadashi no Gen, 1973).

O doutor em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), Almir Almas, comenta que o mangá de Nakazawa e, posteriormente, a animação de 1983, são as principais obras sobre a bomba atômica, pois focam nos sobreviventes e não apenas nos números ou em uma visão maniqueísta do conflito.

"Hadashi no Gen é um filme representativo dessa questão. É uma história com dramaturgia a respeito da visão de um menino sobre a bomba atômica e seu efeito. Se você entender aquilo como um conflito de 'bem e mal', foi você que entendeu com seu olhar ocidental. O olhar oriental não vê a coisa como bem e mal", comenta Almas, que também é pesquisador nas áreas de televisão digital, cinema, arte eletrônica e cultura japonesa.

Uma visão realista da guerra

Além de suas contribuições como diretor, animador e roteirista, Hayao Miyazaki também teve papel decisivo, apesar de secundário, em uma das obras que relembram os impactos da guerra no Japão. O túmulo dos vagalumes (Hotaru no Haka, 1988) não seria produzido sem o incentivo dado por ele ao relutante diretor e cofundador do Studio Ghibli, Isao Takahata.

De acordo com o próprio Takahata, havia muita dúvida em torno de uma animação com um mote tão trágico. Baseada no romance semi-autobiográfico de Akiyuki Nosaka, O túmulo dos vagalumes conta os esforços de dois irmãos (Seita e Setsuko) tentando sobreviver durante os últimos meses da Segunda Guerra Mundial. A técnica da animação tornou possível mostrar, de forma estilizada, um roteiro realista e cheio de profundidade, aponta o crítico e historiador cinematográfico Roger Ebert.

Em seu livro Arte da animação técnica e estética através da história, o mestre em multimídia pelo Instituto das Artes da Unicamp, artista plástico e animador Alberto Lucena Júnior descreve a arte como um espelho da sociedade e explica que o período de guerras trouxe uma situação de desconforto no ambiente artístico. “Grande parte devido ao descompasso com as demais esferas da ação do homem, que tiveram um desenvolvimento extraordinário após a Segunda Guerra Mundial. Nesse período, a arte sofreu um processo de involução tamanho (abdicando de todo seu legado histórico)”, comenta. Não é de se estranhar, portanto, que as animações mais representativas sobre o período tenham surgido nos anos 1980, quase quatro décadas após a bomba.

Assim como Nakazawa e seu Gen, o diretor de Túmulo também usou sua própria vivência de criança para recriar cenas de bombardeio e o desespero causado pelas bombas incendiárias lançadas sobre a região de Kobe. Como Nakazawa havia feito cinco anos antes, Takahata também descreve os momentos como a mais “horrível experiência de sua vida”. Fome, medo e pesar estão presentes por toda a obra, mas são intercalados com momentos de beleza e contemplação. 

“O que eu vejo no Studio Ghibli é um viés de dramaturgia muito bem costurado, e isso é próprio do Japão. Uma dramaturgia que remete não apenas ao cinema, mas ao teatro Noh, Kabuki e ao Kyogen. Isso torna a história um pouco diferente, porque ela não é rasa, os personagens não são rasos. A técnica animê está em função de uma dramaturgia”, explica Almas.

"Monstros bomba atômica" e distopias futuristas

Almas explica que o impacto deixado em Hiroshima e Nagasaki também ressoou sobre a ficção japonesa, fazendo com que surgissem personagens que são “frutos da bomba atômica”, como Godzilla. Considerado o “pai da animação japonesa”, Osamu Tesuka também tratou o tema em suas obras, além de discutir questões como o mau uso da tecnologia.

O medo de um desastre nuclear também influenciou no surgimento de ficções científicas orientais que discutiam as consequências de um novo conflito e os impactos no meio ambiente. Esse é o caso dos quadrinhos e longa animado Nausicaä do Vale do vento (Kaze no Tani no Naushika, mangá de 1982 e animê de 1984) criado por Hayao Miyazaki, também famoso por ser o principal diretor do Studio Ghibli, premiado com o Oscar de Melhor Animação em 2003, com o longa A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001).

Em Nausicaä no Vale do Vento, Miyazaki mostra como a natureza absorveu os venenos que o homem criou, adaptando-se a eles. A protagonista da história é uma jovem princesa (Nausicaä) que tenta impedir o reino vizinho de Tolmekia de fazer uso de uma arma antiga para erradicar os insetos mutantes que vivem nas selvas – outro exemplo de insetos gigantes como o resultado dos conflitos atômicos. Durante toda a animação é possível perceber considerações antibelicistas e a preocupação com os danos causados ao meio ambiente.

Doutoranda em literatura pela PUC-Rio, mestre em comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora de literatura midiática japonesa, com tese focada no trabalho de Miyazaki, Janete Oliveira explica que a guerra e a bomba atômica são fundamentais para a obra do animador e diretor japonês.

De acordo com a pesquisadora, durante o início de sua carreira, Hayao Miyazaki usou cenários europeus em suas animações, por conta do envolvimento de sua família com a guerra. "O pai tinha uma fábrica de aviões e trabalhou diretamente com a guerra. Miyazaki sempre se sentiu muito culpado por tudo que o Japão causou aos outros países, e isso se refletiu na primeira fase da sua obra", explica Janete.

Outro mangá que influenciaria obras de ficção científica por todo o mundo e que foi lançado em 1982 é Akira, de Katsuhiro Otomo. Apesar de se passar após uma fictícia Terceira Guerra Mundial, o mangá e sua versão animada, de 1988, refletem o temor de um futuro sombrio e urbano, causado por guerras nucleares. Segundo Otomo, o futuro mostrado na obra "reflete minhas visões sobre vida e morte, e o mundo que nos cerca".

Assim como no Ocidente, autores orientais imaginaram uma catástrofe ainda maior caso a escalada de tensão nuclear atingisse seu estopim durante a chamada Guerra Fria. De acordo com a doutora em ciências da comunicação pela ECA/USP e pesquisadora de histórias em quadrinhos e cultura pop japonesa, Sonia Luyten, Akira é o principal representante dessa tensão global na produção japonesa de quadrinhos e animações.

"Nos mangás, primeiro, e depois nos animês, esse tema da destruição é bastante comum. Porém, é recorrente na medida em que isso afeta tanto e vira um tema da ficção científica. Então, Akira, por exemplo, aborda o tema de uma hecatombe e é muito forte nisso. É a ficção científica de como seria se acontecesse esse desastre", comenta Sonia.

A superação pela arte

O pesquisador de cultura japonesa Almir Almas acredita que filmes como Gen pés descalços e Túmulo dos vagalumes podem ser considerados documentos históricos, embora sejam obras de ficção, por conta de suas cenas dramáticas e retratos do que realmente aconteceu no Japão.

Para Sonia Luyten, que também é autora do livro Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses (Estação Liberdade, 1991), os quadrinhos japoneses têm um papel essencial de mostrar os horrores da guerra. Ela ressalta também que o país ainda lida de forma conflitante com seus atos de violência durante o conflito. "O Japão jamais pediu desculpas para a China e aos outros países asiáticos pelos campos de concentração e pelas pesquisas que fizeram com os prisioneiros, assim como os nazistas", comenta a pesquisadora, que atuou como professora convidada de estudos estrangeiros nas Universidade de Osaka e Tóquio durante seis anos. 

O último filme de Hayao Miyazaki, Vidas ao vento (Kaze Tachinu, 2013), pode ser considerado uma forma de debater a guerra e mostrar um caminho de cura para as novas gerações de japoneses, segundo a escritora. No longa animado, Miyazaki conta como o designer de aviões Jiro Horikoshi teve sua principal invenção, o caça Mitsubishi A6M Zero, utilizada para bombardear os inimigos do Japão na Segunda Guerra Mundial. Na biografia romanceada, Miyazaki retrata Horikoshi como sonhador, um gênio que desejava utilizar seus talentos para realizar o sonho de voar.

Num momento no qual os governantes nipônicos consideram mudanças na constituição pacifista do Japão, mesmo sob protesto, talvez seja a hora de tirar o pó das histórias em quadrinhos e animações para aprender um pouco com o que eles têm a ensinar sobre guerra, ambição e as tragédias que costumam se seguir à combinação de ambas.