O trabalho do editor de um periódico científico envolve muitos desafios. Primeiro, a necessidade de mobilizar e coordenar um grupo de experientes cientistas que deverão ocupar as funções de membros do corpo editorial do jornal ou revista. Segundo, deve também responsabilizar-se por organizar todo o processo de avaliação por pares, pedra angular da dinâmica de produção de conhecimentos novos na ciência, o que envolve, entre outras coisas, o acolhimento das pesquisas espontaneamente submetidas à apreciação do periódico. Terceiro, etapa deveras complexa, o editor deve ainda julgar e decidir a respeito da pertinência ou impertinência da publicação dos artigos, baseado em recomendações e pareceres elaborados pelo conselho editorial ou por outros cientistas convidados especialmente para este fim, que recebem o pomposo nome de avaliadores ad hoc (expressão em latim que significa “para uma finalidade específica”). Nessa etapa, o editor deve redigir cartas aos autores, comunicando-lhes os resultados das decisões, além de justificá-las de maneira, a um só tempo, apropriada e instrutiva, pois é desejável que o processo avaliativo colabore com críticas construtivas para correção ou aprimoramento dos artigos, incluindo aqueles que serão rejeitados. Finalmente, tem-se a editoração propriamente dita, isto é, a revisão e diagramação daqueles artigos que foram aceitos, de acordo com as normas do próprio periódico e também de padrões bibliográficos adotados nacional ou internacionalmente, dependendo da ambição. Se o periódico dispuser de recursos financeiros, o que é raro, o editor deverá também lidar com trâmites burocráticos, como licitações ou prestações de conta, de tal modo que o acesso a tais recursos, geralmente minguados, parece mais um golpe de azar do que de sorte, uma vez que o apoio administrativo para essas funções, quando existe, é exíguo.
Quase nunca, porém, tudo isso acontece exatamente dessa forma. Frequentemente, membros do corpo editorial ou avaliadores ad hoc não comunicarão suas apreciações acerca dos artigos dentro dos prazos previamente estabelecidos. Alguns desses cientistas sequer se darão ao trabalho de responder se estão ou não disponíveis a fazê-lo. Certas vezes, respondidas as solicitações e apreciados os artigos que lhe foram confiados, seus pareceres não serão suficientemente instrutivos a uma tomada de decisão editorial. Elevadas capacidades acadêmicas nem sempre implicam grande disposição para avaliação ou outros mecanismos de colaboração científica. Mesmo quando superado tudo isso, oxalá, haverá o trabalho de editoração, revisão, divulgação e publicação propriamente dita, além das eventuais gestões administrativas que se fizerem necessárias. Não raro, todas essas etapas poderão ser feitas por uma única pessoa: um versátil e dedicado editor. Por essas e outras razões, o que deveria ser uma gloriosa honraria acadêmica, facilmente se torna um punitivo tormento. Poucas serão as funções, no sistema científico brasileiro, mais inglórias do que a de editor de periódico.
Por certo, existem aqueles periódicos que gozam de uma estrutura mais profissionalizada, onde dificuldades tão primárias não fazem parte do cotidiano. São exceções, todavia. A grande maioria estará mesmo sujeita a todo tipo de descalabro. Sequer a elevada reputação acadêmica de um periódico científico será suficiente para livrá-lo desse tipo de intempérie. Quase inacreditavelmente, há importantes periódicos brasileiros sujeitos a essas mesmas dificuldades. Basta ir a qualquer reunião de editores para rapidamente inteirar-se de episódios que seriam cômicos, não fossem trágicos, por representarem o voluntarismo, institucionalmente irresponsável, com que as nossas universidades e centros de pesquisa geralmente relacionam-se com seus periódicos, que a rigor não são seus, mas sim dos editores, que usualmente assumem toda a responsabilidade e acabam se portando, não por acaso, como pais ou proprietários. Nota-se mesmo uma espécie de patrimonialismo no universo da editoração científica brasileira.
Paradoxalmente, apesar de toda a falta de apoio e estrutura, o número e o nível de exigências aos periódicos têm crescido. Fundamentalmente, tais exigências estarão radicadas, direta ou indiretamente, em números e quantidades, reproduzindo, no âmbito específico da editoração científica, uma cultura mais ampla que agora preside todo o funcionamento do universo acadêmico, relacionada a uma mentalidade gerencial e administrativa que só reconhece como legítimo o que pode ser medido e contabilizado em números. Mesmo os parâmetros supostamente qualitativos estarão, de alguma forma, relacionados a critérios ou padrões quantitativos. É o império absolutista dos números.
Segundo indicadores adotados por várias instâncias avaliativas nacionais ou internacionais, o primeiro critério fundamental a ser observado para creditar um periódico científico como excelente é o número de artigos publicados. Segundo os critérios para admissão adotados pelo Scielo, por exemplo, um portal brasileiro de revistas científicas, um periódico da área de ciências humanas deve publicar ao menos 25 artigos por ano, embora o recomendado seja 35. De acordo com esses critérios, portanto, um periódico que publique anualmente menos que isso, não pode nunca ser tomado como ótimo ou excelente. Conforme os próprios critérios se apressam em esclarecer, porém, esses números se referem tão somente a indicadores, que como o nome sugere, podem indicar, mas não garantir, um parâmetro genérico e impreciso para avaliar-se a relevância ou qualidade de uma publicação científica. No entanto, ao ser tomado em sua literalidade, como acontece atualmente, tais indicadores assumem uma dimensão obviamente arbitrária. Afinal, porque 25 e não 24? Não sem razão, e com alguma esperança, poder-se-ia supor que a maioria dos acadêmicos não está ainda disposta a atribuir reputação científica a um periódico a partir do número de artigos publicados em suas páginas.
Outro parâmetro importantíssimo, mas que só poderá ser aferido depois de vencido o critério do número de artigos publicados, quase sempre tomado como pré-requisito fundamental, é o número de citações que um periódico é capaz de gerar. Nesse caso, a quantidade de vezes que os artigos publicados forem citados por outros artigos serviria como indicador da relevância, não apenas do artigo em si, mas do periódico como um todo. Mais uma vez, estamos diante de um indicador, cujo princípio que o fundamenta é o de que um periódico realmente relevante publicará trabalhos que serão citados por outros. Teoricamente faz sentido. Na prática, porém, é totalmente discutível. Além do fato óbvio de que pesquisas podem ser citadas como maus exemplos, em razão de seus equívocos ou resultados questionáveis, há uma infinidade de formas de um trabalho científico destacar-se. Nem todas serão medidas pelas métricas desses sistemas, capazes de contabilizar apenas citações produzidas no âmbito de suas próprias bases de dados. Assim, se centenas de teses de doutorado ausentes dessas bases de dados que promovem tais contabilidades citarem certo trabalho, tais referências simplesmente não serão consideradas. Do mesmo modo, um trabalho adotado por currículos universitários como bibliografia obrigatória na formação de futuros cientistas também não pode ser considerado, uma vez que essas métricas bibliográficas não os contabilizam igualmente.
Todavia, a crença de que os indicadores quantitativos são inteiramente confiáveis ou verossímeis é cada vez mais generalizada, gerando, assim, um círculo vicioso que se retroalimenta infinitamente. Uma vez que se disseminam as convicções sobre a pertinência desses critérios numéricos, adotados, antes de tudo, no âmbito da editoração científica, pesquisadores sentem-se cada vez mais encorajados ou impelidos a publicar seus trabalhos em periódicos que estejam em conformidade com esses parâmetros. E uma vez que muitos cientistas, se não todos, de fato procuram publicar ali seus trabalhos, atendendo, assim, aos parâmetros pelos quais suas carreiras e reputações serão julgadas, apenas reforça-se a percepção de que tudo isso realmente é inequívoco e inescapável. No entanto, há ainda boas e muitas razões para duvidar-se disso tudo.
Bases de dados geralmente apontadas como mais importantes são controladas por grandes corporações empresariais. Elas exploram comercialmente o trabalho desenvolvido quase sempre de forma voluntária por cientistas, universidades, centros de pesquisas, editores, conselhos editoriais e revisores ad hoc. Em troca, essas empresas oferecem o direito delas próprias lucrarem bastante com toda a cadeia produtiva da ciência, sem nenhuma contrapartida, exceto a possibilidade dos cientistas ou centros de pesquisa gastarem muitos dólares para comprar artigos ou assinar revistas produzidos por eles mesmos. É um grande negócio – mas apenas para as empresas que o exploram. Em 2011, o governo brasileiro gastou R$ 133 milhões com assinaturas de periódicos científicos, segundo dados divulgados em reportagem de Sabine Righetti, no jornal Folha de S. Paulo (10 de fevereiro de 2012). Depois de pagar para a realização de pesquisas, os cofres públicos precisam ainda pagar novamente para acessar os seus resultados. Curioso é que o próprio governo brasileiro estabelece diretrizes que estimulam os cientistas a publicarem suas pesquisas em revistas que cobram pelo acesso ao material publicado. Mais inteligentes, milhares de pesquisadores ao redor do mundo decidiram boicotar a Elsevier, uma das maiores e principais empresas do negócio da editoração científica, justamente por causa de práticas que pareceram abusivas aos olhos desses cientistas.
A situação é tanto mais grave, na medida em que diversas instâncias científicas ou universitárias subordinam-se agora a esse império absolutista dos números, desde a concessão de recursos financeiros para execução de projetos de pesquisa, até a contratação de professores universitários ou avaliações para progressões nas carreiras acadêmicas. Mais que isso, quaisquer avaliações no universo da ciência ou da vida universitária que não disponham de indicadores numéricos correm o risco de sequer serem tomadas como sérias, dado seu caráter subjetivo e supostamente parcial, como se uma prova objetiva e de múltipla escolha inevitavelmente avaliasse um aluno melhor do que uma prova dissertativa.
Renunciando à autonomia intelectual de que poderiam gozar plenamente, instituições científicas já nem sequer se dão ao trabalho de realmente avaliar seus pares, limitando-se a medir ou apenas creditar medições feitas por outros. Pois quem seria capaz, nos dias que correm, de ponderar sobre o mérito ou relevância do trabalho de um cientista com muitas publicações em periódicos que recebem muitas citações em bases de dados tidas por excelentes, segundo critérios e consensos forjados, em larga medida, pelas próprias empresas que controlam tais periódicos e bases de dados? Para isso, seria preciso ler os seus muitos artigos e formular um juízo a respeito do volumoso material. Parece trabalhoso demais. De outra forma, prefere-se contar os artigos e a quantidade de vezes que foram citados, supondo haver correspondência entre esses indicadores e os seus reais méritos ou relevâncias científicas. Mais fácil, com certeza, embora intelectualmente menos digno.
A editoração científica, já totalmente subordinada ao império absolutista dos números, exerce papel chave em todos esses processos, implicando-os para muito além do restrito universo para os quais foram inicialmente criados. Por tudo, a dinâmica ligada aos processos de editoração científica deveria ser tratada com menos negligência.
Cleber Dias é doutor em educação física pela Universidade Estadual de Campinas, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e editor executivo da Revista Brasileira de História do Esporte (Recorde). E-mail: cleberdiasufmg@gmail.com
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