09/04/2010
“Durante as celebrações da festa de Todos os Santos, no dia 1 de novembro de 1755, pelas 9h30 da manhã, a terra rasgou-se e rugiu. Um maremoto tragou parte da cidade. Desaparecia em sete minutos – no curtíssimo espaço de tempo de apenas sete minutos –, parte considerável da história que aí tivera lugar nos últimos cinquenta anos, reinado de D. João V, o ‘rei velho'”. É assim que Mary Del Priore inicia a narrativa desse evento – que devastou a capital do império português em 1755 – em O mal sobre a Terra: uma história do terremoto de Lisboa.
Mas um terremoto como personagem principal de uma narrativa historiográfica? Sim, e por que não!? Afinal, nas palavras da autora, “o jogo de pistas em que o historiador parte em busca de traços e signos os mais tênues do passado o conduz a fazer do texto uma categoria do romance policial: o passado é um enigma, a história uma investigação, e seu detalhamento é descrito como a resolução de um mistério”. Como fato histórico, o terremoto foi um fragmento percebido de uma realidade que, de acordo com Arlette Farge (1997), não tem outra unidade senão o nome que lhe damos – fragmento. Sua irrupção no tempo foi imediatamente apropriada pelos que o viveram, viram, memorizaram. Fabricante e fabricado, foi uma fatia de tempo e de ação feita em pedaços que Del Priori tenta reconstituir em seus múltiplos significados levando em conta as vidas e vozes dos que a ele assistiram, descreveram, sobreviveram.
Historiadora e cientista social – autora de diversos livros e ganhadora de importantes prêmios, como Sérgio Buarque de Holanda, Casa Grande e Senzala e Jabuti, entre outros –, Mary Del Priore nos guia por uma incrível viagem rumo aos significados e sentidos simbólicos que o terremoto causou naqueles que o assistiram. Mas o que teria significado realmente essa grande tormenta?
Medo, morte, calamidade, furor da terra, castigo divino. Para a historiadora, esses significados podem ser o ponto de partida para a compreensão de alguns aspectos da sociedade portuguesa, sociedade esta, de acordo com Priori, difícil de capturar, na medida em que dissociada entre mudança e permanência. Permanência, segundo a autora, porque Portugal ancorava-se na estabilidade das estruturas, no predomínio esmagador do mundo agrário e na dominação da aristocracia senhorial, leiga e eclesiástica. A ela pertenciam a terra e o domínio do aparelho de Estado. A monarquia absoluta e a política econômica mercantilista, politicamente enraizadas no mundo agrário, seguiam apegadas com tenacidade às suas maneiras de pensar e a seus valores. E mudança, porque no reinado de D. José, e sob o governo do Marquês de Pombal, os grupos que mantinham uma soma perigosa de poder e prestígio eram perseguidos e dizimados, e o clero passava a sofrer desprestígio. O meado do século prenuncia, assim, a mudança que virá com D. José, o monarca, e seu onipotente ministro, o Marquês de Pombal, quando duas visões distintas de mundo se defrontam.
Estudos sobre a situação econômica portuguesa revelaram que a pequena metrópole de extensos domínios ultramarinos não acompanhara, na época de acumulação originária do capitalismo, o crescimento das grandes potências colonizadoras europeias. Sua particularidade era exatamente essa conjuntura defasada que, se por um lado, continuava conectada às realidades europeias, desnudava, por outro, uma diferença no ritmo das transformações econômico-sociais da própria península. Os incentivos à acumulação e ao investimento eram tão poucos, segundo Francisco Calazans Falcon (1982), que não havia ambiente para uma burguesia industrial empreendedora. Um Estado parasitário, aferrado ao mundo agrário, o racionalismo moderno rejeitado, o atraso em relação às teorias mercantilistas em curso em outros países.
É nesse contexto que surge o terremoto que ficou conhecido como o grande drama da Lisboa pombalina, e para o qual Mary Del Priore nos guia, para ver de perto como essas estruturas interferiam no nível das ideias, do comportamento e da política. O terremoto foi, de acordo com a autora, uma espécie de espelho que refletiu uma sociedade dilacerada entre dois tempos, e revelou, para além de suas consequências imediatas, o não-factual: a emergência de fenômenos sociais surgidos das profundezas, que sem ele continuariam dissimulados nas pregas das mentalidades coletivas. O medo da morte, o sebastianismo como signo de pavor das mudanças, o ódio de certas facções da aristocracia pela burocracia emergente, a insegurança diante dos novos tempos que, junto com o iluminismo, chegavam a toda a Europa. A significação do sismo se desdobrou na reação popular à destruição da cidade, mas também na luta entre os representantes – aristocratas, gente do povo, eclesiásticos – de diferentes formas de ser, viver e pensar.
Embora o terremoto esteja em toda a centralidade da narrativa do livro, o real destaque cabe aqui à cidade de Lisboa, que longe de ser apenas o palco ou cenário para o desastre, é, nesse texto, seu personagem por excelência, dele derivando sua divisão básica em três momentos muito bem caracterizados: o da Lisboa de antes do terremoto, o da cidade durante o abalo sísmico e aquele que se seguiu à grande tragédia. O livro possui quatro capítulos nos quais a autora narra todo o contexto no qual se insere o terremoto: o antes, o durante, e o depois.
No capítulo I, “Antes do terremoto: a cidade e as terras”, temos Jacome Ratton, personagem cronista-observador a partir do qual a autora traça um painel variado e preciso da vida cotidiana da cidade, suas cadências, e os acidentes que se sucedem – guerra, fome, carestia, miséria –, sem esquecer o lugar do riso e das versões que permeiam o mundo das ideias e do imaginário. No capítulo II, “Durante o terremoto: o furor da Terra”, a autora reconstroi os momentos dramáticos da tormenta: o abalo e os desabamentos, os incêndios, a invasão das águas, os sentimentos e reações humanos como roubo, desordem, confusão, e a ação das autoridades, a começar por D. José I e Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal – privilegiando sempre os testemunhos dos que viram ou ouviram.
No capítulo III, “Depois do terremoto: Lisboa, 'toda cheia de mágoa e tristeza'”, a capital portuguesa é apresentada ao leitor dominada pelas sombras dos mortos e dos vivos ameaçados pela peste e pela fome, e toda a tentativa de mobilização do império para a reedificação. E, por fim, no capítulo IV, “A incerta memória do terremoto”, nos é apresentado, em alusão às distintas memórias e interpretações coletadas pela autora durante a pesquisa, um balanço historiográfico do evento.
Numa tentativa de colocar o passado sob a lupa do investigador, a fim de observar melhor a trama social de seu objeto de investigação – o terremoto que a assolou a Lisboa pombalina – e sua organização, com a convicção de que vidas minúsculas participam à sua maneira da história, dela nos dando uma leitura diferente, mais complexa e surpreendente, a historiadora amplia e diversifica a observação da vida cotidiana a fim de apreender melhor a vida lisboeta durante esses momentos decisivos, situando sua abordagem no campo da história cultural.
Ela reconstitui, assim, trajetos individuais, restos de experiências que iluminam as lógicas sociais e simbólicas de grupos ou de comunidades mais amplas. Se é incerta a memória do terremoto, como declara o título do capítulo IV, bastante rica e dinâmica é a interpretação que aqui se constroi a propósito das complexas relações entre a cidade e o grande abalo sísmico.
O mal sobre a Terra: uma história do terremoto de Lisboa
Mary del Priori
Top books, 2003, 325 paginas.
Para saber mais:
Farge, A. Des lieux pour l'histoire. Paris: Seuil, 1997.
Falcon, F.C. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Ática, 1982.
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