Diante da competição acirrada que caracteriza o mercado editorial, as editoras universitárias distinguem-se pela preocupação em publicar assuntos relativos a todas as áreas do conhecimento e temas que muitas vezes não encontram espaço nas editoras privadas. É uma atuação que coloca em segundo plano o mercado e o lucro, em prol da formação, da disseminação do saber e da cultura, e da divulgação do que é produzido pelas instituições de ensino superior. Apesar de árdua, a tarefa não constrange essas editoras, que já publicaram, aproximadamente, 22 mil títulos, segundo dados referentes às editoras associadas à Associação Brasileira de Editoras Universitárias (Abeu).
Esse quadro é bastante diverso daquele que Maria do Carmo Guedes e Maria Eliza Mazzilli Pereira sinalizaram no artigo “Editoras universitárias: uma contribuição à indústria ou à artesania cultural?”. Ao analisarem o Catálogo das Editoras Universitárias (1987), as autoras constataram que o questionamento da razão para uma editora universitária existir era candente. “As editoras universitárias estatais eram, entre outras coisas, acusadas de concorrência desleal, pois eram subsidiadas com dinheiro público e, além disso, publicavam material que parecia, às comerciais, próprios a elas e a ninguém mais”, explica Guedes.
De fato, no atual cenário nacional, essas editoras permanecem ocupando um lugar diferenciado quando comparadas com as editoras privadas (leia artigo nesta edição sobre o tema), mas essa diferença é constituída de características que lhes são inerentes, como por exemplo, o seu papel na sociedade. Por outro lado, tendo em vista a mudança na qualidade de suas publicações e a quantidade que publicam, essas editoras não mais precisam explicar sua razão de existir, seja em São Paulo, ou outro estado do país. Hoje, elas respondem por 8% dos livros publicados no Brasil, mas a venda de livros ainda é responsável por uma parcela muito pequena da manutenção dessas editoras que não tem fins lucrativos. Sua sobrevivência, mesmo considerando que o que as mantém são, principalmente, os convênios e subsídios equacionados em sua relação com as instituições de ensino superior e com ministérios do governo, como o Ministério da Educação (MEC), deve ser qualificada não como concorrência desleal, mas como capacidade de resistir.
Durante o seminário internacional Las Editoriales Universitarias hacia el Siglo XXI - América Latina y el Caribe, em 2004, na cidade de Buenos Aires, José Castilho Marques Neto, da Editora da Universidade Estadual Paulista (Unesp), destacou que as editoras universitárias não escapam a certa tensão e a alguns dilemas que caracterizam o jogo entre a atividade editorial – a produção de uma esfera pública de livros – e o comércio de livros. “O livro universitário mantém vínculos fortes e tradicionais com a produção de bens científicos e culturais, usualmente avessos às exigências do mercado. Essas exigências, atualmente hipervalorizadas pela política ultra-liberal do mundo globalizado, apontam que o livro, enquanto meio, está submetido a uma mudança de seus valores culturais, isto é, está perdendo partes de sua identidade cultural e se transformando, ainda mais claramente, em mercadoria que deve firmar-se frente a outras mercadorias no mercado de conteúdos”, apresentou Castilho no evento.
Ele ainda argumentou, na época, que esse quadro era agravado pela situação das próprias universidades que também estavam, desde a ocasião, em um processo de submissão às lógicas de mercado. “Essas lógicas determinam que as universidades devem investir recursos, prioritariamente, em atividades que obtenham retornos financeiros ou institucionais a curto prazo”.
Para Leilah Bufrem, do Departamento de Ciência e Gestão da Informação, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), as editoras universitárias são instituições cujas práticas são geradoras de um tipo de raridade e de valor cultural que lhes são próprios. Bufrem, que também é autora do livro Editoras universitárias no Brasil: uma crítica para a reformulação da prática (Edusp, 2001), analisou essas editoras, a partir do referencial do sociólogo Pierre Bourdieu. Para ela, a prática editorial universitária como subcampo da editoração, entra na dinâmica e na concorrência pelo poder simbólico nesse ambiente cultural específico que é a universidade, a partir de seu capital cultural no mundo social. “Retomando a noção de campo intelectual de Bourdieu – sistema de relações que inclui obras, instituições e um conjunto de agentes intelectuais, onde cada um ocupa posição particular (autores, editores, críticos) – as editoras universitárias podem entrar na lógica da competição, atuando no sentido de consagrar instâncias e produtores de bens culturais, autores, grupos e academias”, defende. No entanto, a pesquisadora pondera que essas editoras rompem com o que seria um sistema puramente reprodutivo ao publicarem autores desconhecidos nas suas áreas de atuação, ao perceberem a prioridade de seu papel cultural sobre o lucro e ao estimularem as criações intelectuais, fomentando obras não só de cunho didático, científico e tecnológico, mas também de caráter regional e com temas de interesse muito específico.
Apesar das dificuldades, tensões, dilemas e especificidades, as editoras universitárias têm crescido no Brasil e têm conseguido inserir-se no mercado editorial. Maria do Carmo Guedes aponta que não há comparação com o que se tinha em 1986 quando, pela primeira vez, as editoras expuseram juntas na Bienal do Livro em São Paulo. “Na época, fizemos feio em muitos quesitos, incluindo o mais visível – o aspecto gráfico”. Hoje, ela destaca que algumas das editoras universitárias têm lugar garantido entre as melhores editoras do país, e, grande parte, não fica atrás das boas editoras brasileiras. Esse bom desempenho, acredita, é resultado de sua profissionalização (no que se refere à produção editorial e gráfica), melhora na distribuição e a valorização de uma privilegiada condição: “a de fazer parte da universidade, o que propicia acesso fácil a excelentes leitores, condição indispensável a uma editora que se quer excelente”.
Bufrem observa que desde a publicação da primeira edição do livro Editoras universitárias no Brasil, em 2001, até hoje, a quantidade de editoras universitárias no país praticamente dobrou. “Hoje, só a Associação Brasileira de Editoras Universitárias tem mais de cem associadas. Isso quer dizer que sua produção também tem se expandido proporcionalmente. Somente a Edusp, em vinte anos, publicou mil títulos. Suas livrarias se expandiram pelos campi e o Programa Interuniversitário para a Distribuição do Livro dissemina as obras das editoras pelas instituições e livrarias em todo o país”.
Em entrevista ao site Cultura e Mercado, José Castilho, da Editora da Unesp, menciona outros fatores desse crescimento, que vão desde a modificação interna das próprias editoras universitárias brasileiras, até a percepção por parte das universidades da importância dessas editoras para a sua imagem e para a divulgação do trabalho que fazem para a sociedade. Nesse processo, as editoras universitárias foram beneficiadas com aumento de verbas, a formação de um quadro profissional competente na sua direção, e outros elementos que viabilizaram a melhora na qualidade dos livros publicados.
Apesar da evolução do quadro das editoras universitárias, ainda existem questões importantes a serem observadas. Dentre as que devem ser resolvidas ou permanentemente cuidadas, Leilah Bufrem destaca a necessidade de uma política editorial universitária atualizada baseada em novos critérios para a constituição do conselho. “A idéia de se instituir conselhos somente com representantes de áreas não me parece suficiente para que haja atualização, mas a complementação do trabalho do conselho com o do inquire editor, uma espécie de monitor de zonas que apontem para a vanguarda. Mas a independência do conselho é fundamental para garantir a abertura ao novo”, sugere.
É importante destacar ainda dois outros diferenciais das editoras universitárias com relação às privadas: o público leitor e a forma de seleção do que será publicado. Para Bufrem, o público é bem mais restrito. “Em geral, não abrange apreciadores de literatura de auto-ajuda, de livros para crianças, de manuais introdutórios, de obras de ficção, de romances policiais, entre algumas outras opções não acadêmicas”. A pesquisadora da UFSC lembra que a editora universitária, como produtora no campo da cultura erudita, de bens destinados a um público de produtores de bens culturais, que, eventualmente, também produz para produtores de bens culturais, tem apenas uma parcela daquele público, bem mais amplo, que compra e lê as obras de editoras comerciais. “Enquanto esse público restrito tende a estabelecer os próprios critérios de avaliação do que adquire no mercado, a editora universitária também lança seu produto como a obedecer à lei da concorrência pelo reconhecimento cultural”, afirma.
Já a forma de seleção do que deve ser publicado por essas editoras, deve ser feita por meio de critérios próximos daqueles adotados por revistas científicas. Julgar a originalidade, o ineditismo e efetuar a revisão por pares ou emitir pareceres é em geral uma atribuição do conselho editorial formado por professores universitários e intelectuais. Bufrem observa nesse procedimento um dos papéis da editora universitária, que é o de estimular a produção intelectual de docentes, pesquisadores e estudantes. “Ao definir critérios para essa prática em campo cultural específico, a editora revela um grau de autonomia que a distingue como geradora de um tipo de raridade e de valor culturais no campo da editoração. E com essa autonomia, ela vem rompendo o ciclo reprodutor institucional, para produzir também literatura de ponta e de vanguarda.”, diz ela.
Pesquisas e referências sobre as editoras universitárias
É quase um consenso a observação de que no Brasil ainda existem poucas pesquisas e ou publicações que tratem das editoras universitárias. Apesar disso, Leilah Bufrem destaca que a produção na área tem crescido bastante e que esse quadro está se modificando. “Acredito que, atualmente, com os veículos, os especialistas e o que vem sendo por eles produzido, há um quadro de referências que se pode afirmar como consistente e dinâmico. Esse cenário enseja a possibilidade de expandir as práticas e, conseqüentemente, gerar por meio dessa estrutura de comunicação núcleos editoriais, periódicos científicos, fortalecer os já existentes e incentivar áreas de ponta ainda não consolidadas”, diz ela.
Ela destaca como pioneiro o título Sobre livros, de Vianney Mesquita, na década de 1980. Dentre os livros no Brasil, Ela cita as obras Edusp: um projeto editorial, de 2001, de Plínio Martins Filho e Marcello Rollemberg, O livro no Brasil: sua história, de Laurence Hallewell (1982), que apresenta um capítulo sobre as editoras universitárias, e Livro universitário: lixo ou luxo?, de Flávia Goulart (1990). A pesquisadora da UFSC destaca como obras recentes O livro e a editora universitária pública (2008) e Mil títulos em vinte anos (2008), que comemora os 20 anos de um projeto autônomo da Edusp, ambos de autoria de Plínio Martins Filho. A produção em j ornais ou periódicos de áreas correlatas, também é escassa, mas Bufrem lembra o histórico artigo de José Alexandre Barbosa Lima Sobrinho, Edições universitárias, publicado no Jornal do Brasil, em 1971, e o artigo Editoras universitárias: uma contribuição à indústria ou à artesania cultural? de Maria do Carmo Guedes e Maria Eliza Mazzilli Pereira, publicado em 2000, e o estudo exploratório realizado por José Castilho Marques Neto, Editoras universitárias brasileiras, em 2003.
Enquanto a expressiva produção, especialmente histórica, fica por conta dos anais dos Seminários Nacionais das Editoras Universitárias e a revista Verbo, veículo da Associação Brasileira das Editoras Universitárias (Abeu). |
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