Numa
época em que as principais formas de classificação dos distúrbios
mentais (o da Organização Mundial da Saúde, CID, e o da Associação
Americana de Psiquiatria, DSM) estão sendo revisados, é oportuno
questionar se a estrutura geral da classificação está em
conformidade com o que estamos aprendendo sobre os transtornos
mentais pesquisados, desde a última revisão. Não seria possível
agrupar os transtornos em um número menor de categorias, baseados no
nosso conhecimento de etiologia?
A cada
revisão de ambas as classificações, cada vez mais categorias
distintas são acrescentadas, mas as já existentes raramente são
removidas. Assim, um segundo problema seria questionar se devemos
permitir que cada mudança torne a classificação ainda mais
complexa devido à adição de novos transtornos a uma lista que,
para aqueles que não trabalham na área da saúde mental, parece ter
uma complexidade bizantina.
Modelos
classificatórios
Os
defensores do modelo rigoroso de classificação argumentam que os
transtornos mentais podem ser divididos em um conjunto de transtornos
separados que são mutuamente exclusivos, ainda que exaustivos.
Infelizmente, essa exigência aparentemente simples é impossível de
ser alcançada, uma vez que há uma grande sobreposição entre as
várias síndromes (ver, por exemplo, Kessler, 1996, 2005). Existem
três possíveis soluções para esse problema: categorias
hierárquicas, categorias múltiplas e dimensão da desordem.
O
primeiro modelo organiza os transtornos em uma hierarquia, com
distúrbios orgânicos no topo, em seguida, as psicoses graves, e
“neuroses” e transtornos de personalidade na parte inferior. Em
cada nível superior é possível que diagnósticos inferiores
estejam presentes; assim, transtorno bipolar e esquizofrenia
prevalecem sobre distúrbios como depressão e síndrome do pânico,
considerando que sintomas orgânicos prevalecem às psicoses (Wing,
1974; Foulds, 1976). Esse modelo depende de uma clara distinção
entre psicoses e neuroses, e não consegue lidar com o fato de que
alguns sintomas não estão sempre presentes.
Esse
sistema hierárquico começou a ser modificado na versão revisada do
DSM-III (DSM-III-R, 1987) e foi abandonada no DSM-IV (1994), onde a
sabedoria convencional predominante é fazer vários diagnósticos
categóricos. O sistema DSM é organizado em dezesseis capítulos, e
o sistema CID, em dez, com a similaridade de sintomas sendo o
principal critério de cada capítulo. A desvantagem desse modelo é
que não há limite para o número de categorias possíveis: por
vezes, um sintoma adicional aciona um novo conceito. Assim,
flashbacks após um evento traumático distinguem um transtorno de
estresse pós-traumático (PTSD) de depressão ansiosa, apesar do
fato deles compartilharem o mesmo conjunto básico de sintomas.
Categorias separadas também podem ser justificadas por diferentes
etiologias aparentes (depressão puerperal) ou diferentes graus de
cronicidade (distimia). Ambas as classificações oficiais ficam
maiores a cada vez.
A
terceira alternativa considera que os transtornos mentais são
intrinsecamente dimensionais, e argumenta que a tentativa de definir
as categorias fora do espaço dos sintomas é inevitavelmente um
exercício confuso. Existem dois grandes problemas nesta abordagem –
não há acordo sobre o número de dimensões que são necessárias
e, para qualquer dimensão, é necessário definir um ponto em que há
vantagens em oferecer um tratamento – e quando isso tiver sido
feito, um horizonte realmente terá sido aberto em meio ao nevoeiro.
Como a
classificação pode se tornar mais racional?
Nos
últimos quinze anos, um grande progresso foi feito na compreensão
da genética dos transtornos mentais, dos fatores ambientais que
promovem a expressão do gene, em documentar anormalidades da função
cerebral, em epidemiologia e em conseguir uma melhor compreensão do
desenvolvimento do anormal. O objetivo deste artigo é perguntar se
esses avanços não podem impor alguns limites naturais no sistema,
de modo que ao invés de se tornar progressivamente mais complexa,
uma classificação mais simples possa surgir.
Uma
alternativa mais simples
A
força-tarefa responsável por recomendar modificações no sistema
do DSM, recentemente, estabeleceu onze critérios etiologicamente
relacionados que devem ser satisfeitos antes de uma nova categoria
ser aceita:
- fatores
genéticos
-
familiaridade
-
adversidades ambientais precoces
-
antecedentes de temperamento
-
biomarcadores
-
processamento cognitivo e emocional
-
diferenças e semelhanças na sintomatologia
-
comorbidade
-
comportamento
-
tratamento
Temos
usado esses critérios para apresentar um modelo simplificado de
classificação, observando grupos maiores de transtornos que são
bastante semelhantes quando analisados através desses onze critérios
(Andrews, 2009a). Assim, foi proposto que os dezesseis capítulos do
DSM e os dez capítulos do CID podem ser mais úteis se forem
pensados um número menor de grandes grupos:
-
transtornos neurocognitivos
-
transtornos do desenvolvimento neurológico
-
psicoses
-
transtornos emocionais
-
transtornos externalizantes
Existe
outro grupo, o de distúrbios de funções corporais (por exemplo:
alimentares, do sono e sexuais), para o qual o conhecimento atual em
pesquisa não é suficiente para fazer recomendações seguras;
também não temos considerado transtornos de personalidade, exceto
para chamar atenção para a importância de certos transtornos de
personalidade na determinação da vulnerabilidade para os dois
últimos grupos.
Alguns
desses grupos, como o dos transtornos neurocognitivos (Sachdev, 2009)
e distúrbios de funções corporais, já são familiares para nós;
outros, como dos transtornos do desenvolvimento neurológico
(Andrews, 2009b) e psicoses (Carpenter, 2009), são razoavelmente
conhecidos. No entanto, os outros dois – distúrbios
externalizantes (Krueger, 2009) e distúrbios emocionais (Goldberg,
2009a) – são substancialmente novos. Estes dois últimos grupos
dão uma maior atenção para os tipos de personalidade que são mais
suscetíveis a esses grandes grupos de transtornos e para os padrões
de comorbidade revelada por estudos epidemiológicos (por exemplo,
Kessler, 1996; Vollebergh, 2001; Andrews, 2008).
Transtornos
externalizantes compreendem dependência de drogas e álcool,
distúrbio de personalidade anti-social e transtorno de conduta, e se
distinguem pelo papel central da personalidade desinibidora neles.
Este tipo de personalidade é também por vezes referido como sendo
baixo em “compulsão”. Biomarcadores compartilhados, comorbidade
e conduta oferecem evidências adicionais para uma aglomeração
válida dos transtornos externalizantes. (Krueger, 2009)
Transtornos
emocionais formam o maior grupo de transtornos mentais e são os mais
comuns, consistindo em estados com maiores níveis de ansiedade,
depressão, medo e sintomas somáticos. Eles incluem transtorno de
ansiedade, depressão unipolar, síndrome do pânico, fobias, estados
obsessivos, distúrbios distímicos, neurastenia, transtorno de
estresse pós-traumático e transtornos somatoformes. Depressão,
ansiedade e sintomas somatoformes ocorrem juntos em contextos médicos
gerais e compartilham muitas características comuns. (Löwe, 2008;
Goldberg, 2009a).
Transtornos
emocionais têm fortes semelhanças em termos de antecedentes
temperamentais (neuroticismo ou sentimento negativo) e comorbidade, e
há muitos sintomas comuns. Os genes para ansiedade generalizada e
transtorno depressivo são os mesmos, e se sobrepõem
substancialmente àqueles para os transtornos do medo. Há também
fortes semelhanças na conduta geral e na resposta ao tratamento. Há
evidências incompletas para transtornos somatoformes e neurastenia,
mas isso não é porque não há provas do contrário – é porque a
pesquisa necessária parece não ter sido feita.
Em ambos
os transtornos, externalizantes e emocionais, existem diferenças
indiscutíveis entre as várias categorias definidas no CID e no DSM.
Watson et al (1995) mostraram que embora existam sintomas
específicos para ansiedade e depressão, os sintomas não
específicos que compartilham respondem por uma maior proporção da
variação total, e esse fator comum é identificado como um
sentimento negativo. Assim, há, sem dúvida, recursos específicos
para o diagnóstico específico, mas o grande fator comum de
sentimento negativo implica que não é razoável que esses
transtornos estejam em capítulos separados das classificações
oficiais. São essas semelhanças de temperamento que unem os
transtornos do medo, por um lado, e os transtornos de ansiedade por
outro.
Deficiências
dessas propostas
Essas
mudanças só podem ser pensadas como um primeiro passo para a
reorganização da estrutura global da nossa classificação. A
cobertura das propostas está incompleta, pois os dados de pesquisa
que podem sustentar um sistema mais completo ainda não existem.
Assim, “neurastenia” é um diagnóstico comum em muitas partes do
mundo, mas, provavelmente porque o sistema DSM não o reconhece mais,
pouco se sabe sobre sua familiaridade, sobre toda importância do
ambiente adverso precoce ou sobre seu substrato neural. Da mesma
forma, pouco parece ser conhecido dos transtornos somatoformes.
Também é possível que pesquisas futuras venham a adicionar uma
maior complexidade das relações entre a estrutura de personalidade
e a suscetibilidade a síndromes específicas de transtorno mental.
Há
problemas em privar a psiquiatria infantil de um sistema totalmente
completo de diagnóstico designando transtorno de conduta entre
transtornos externalizantes e transtornos de ansiedade entre
transtornos emocionais. Os distúrbios de infância podem de fato se
manifestar de forma diferente em idades diferentes: por exemplo, a
ansiedade pré-puberdade pode ser seguida por um episódio de
depressão na adolescência, quando o adolescente se confronta com os
maiores problemas em conseguir popularidade, em desempenho escolar e
em opção sexual. Nem sempre há uma relação linear entre os
problemas da infância e os transtornos do adulto; mas existem casos
em que problemas de conduta nos 7-9 anos de idade podem estar
associados com risco aumentado de transtorno de personalidade
antissocial e crime no início da idade adulta (21-25 anos), e também
com relações sexuais e afetivas adversas (incluindo a violência
doméstica), a paternidade precoce, e o aumento dos riscos de uso de
substâncias, de transtornos de humor e ansiedade e de atos suicidas
(Fergusson, 2005). No estudo de Dunedin, por exemplo, problemas de
conduta em idades de 11-15 anos foram associados com risco aumentado
para todos os transtornos psiquiátricos na idade de 26 anos,
incluindo problemas de internalização, esquizofrenia e manias, além
da exposição a fenômenos externos tais como abuso de substâncias
(Kim-Cohen, 2003).
A
redefinição de transtorno bipolar entre os transtornos psicóticos
causa problemas para os especialistas em transtornos de humor, e há
certamente argumentos para considerar que a distinção Kraepelinista
entre a esquizofrenia e o transtorno bipolar deve ser reconhecida
tendo o transtorno bipolar como um grupo separado (discuto isso com
mais detalhes em Goldberg, 2009b).
Vantagens
dessas propostas
Existem
vantagens reais para compensar essas deficiências. As atuais
propostas levam mais em conta o papel que as variáveis de
personalidade desempenham na determinação da vulnerabilidade a
determinados transtornos mentais. A prática de olhar para os
transtornos de personalidade como ainda outro tipo de transtorno
categórico a ser adicionado à “salada” de diagnóstico
obscurece esse ponto importante. Se considerarmos o futuro desejável
de classificações dos transtornos mentais, há vantagens
indubitáveis no agrupamento de transtornos não apenas em termos de
semelhança de sintomas, mas tendo em conta os avanços no
conhecimento científico da evolução da etiologia de grupos de
transtornos, que vão além dos grupos mais restritos reconhecidos no
momento.
A falta
de atenção em um paciente deprimido que é morbidamente ansioso
pode resultar em não prescrever os melhores psicotrópicos, não
oferecendo a melhor maneira de terapia cognitivo-comportamental, ou
seja, não dando tratamento para os sintomas que estão incomodando o
paciente, que são ignorados pelo corpo clínico, pois eles não
fazem parte da categoria a ser diagnosticada. Não perceber que um
paciente deprimido tem sintomas somáticos pode causar negligências
clínicas, ao não dar ao paciente qualquer explicação sobre os
sintomas que às vezes são os mais alarmantes de todos. A única
desvantagem em se chamar de “depressão ansiosa” ou “depressão
com sintomas somáticos” ao invés de apenas “depressão” é
que o médico deve avaliar esses sintomas – mas isso seria algo que
os médicos conscientes deveriam fazer de qualquer maneira. A
classificação atual do DSM coloca depressão, transtornos de
ansiedade e somotoformes em três capítulos diferentes, enquanto que
a CID, em dois, sendo necessário o diagnóstico de “comorbidade”
múltipla. A razão para isso não é clara, e essas regras de
diagnóstico são frequentemente ignoradas. Para os especialistas de
hospital e de clínica geral, uma classificação revista iria
simplificar um sistema que é confuso, e incentivar os médicos a
avaliar os sintomas depressivos e ansiosos quando são confrontados
com um paciente com outros sintomas psicológicos ou com sintomas
somáticos inexplicáveis.
A
alternativa dimensional
Modelos
multidimensionais estão em torno da psiquiatria há muitos anos. Na
área dos transtornos mentais comuns, escalas como Symptom Checklist
(SCL-90; Derogatis, 1976) fornecem um perfil de pontuação em várias
escalas de pensamento relevantes para esses distúrbios. Os
equivalentes modernos também estão disponíveis, como o diagnóstico
psiquiátrico Screening Questionnaire (Zimmerman, 2001). Ambos são
auto-relato de inventários, que visam dar aos médicos uma série de
pontos que podem ajudá-los a avaliar o paciente diante deles. A
última escala tende a usar itens de cima a baixo derivados dos
principais sintomas dos critérios de diagnóstico do DSM, e
destina-se a indicadores tradicionais de interesse para os testes de
seleção, tais como a sensibilidade e o valor preditivo negativo.
No entanto, esses são exemplos de testes feitos apenas no papel que,
essencialmente, tentam apresentar um sistema de categorias
dimensional. Aqueles considerados para introduzir medidas
dimensionais do DSM têm objetivos mais ambiciosos. Na sua forma mais
simples, eles desejam produzir simples escalas dimensionais
multipontos, para amplamente distribuir sintomas como ansiedade,
distúrbios de sono, abuso de substâncias, pensamentos suicidas, e
ter esses sintomas classificados para cada paciente atendido.
Uma alternativa mais ambiciosa é incentivar os médicos a ter em
conta a natureza essencialmente dimensional dos diagnósticos
categóricos, para que casos de um transtorno particular possa ser
considerado como estando em uma dimensão que vá desde ausência dos
sintomas do transtorno até sintomas subliminares, em graus leve,
moderado ou severo de um diagnóstico categórico. A
distinção entre esses graus de gravidade é baseada,
principalmente, na contagem do sintoma. O CID-10 chega
perto de fazer isso já no caso do episódio depressivo, mas o
DSM tem uma abordagem “ou tudo ou nada”, “ou você está
deprimido ou não está”. Mesmo com problemas
relativamente simples, tais como a depressão, ele não leva em conta
a importância dos sintomas de ansiedade que normalmente acompanham
os sintomas depressivos, de modo que uma determinação
separada precisa ser feita desses sintomas, da mesma forma – e
se poderia facilmente continuar e incluir outros complexos sintomas
comuns, tais como preocupação excessiva com as funções corporais,
sintomas de pânico e obsessivo.
Com outros transtornos
mais complexos como a esquizofrenia, várias dimensões podem
precisar ser postuladas para levar em conta a gama de
experiências psicóticas possíveis, como alucinações,
delírios, desorganização, sintomas negativos, dificuldades
cognitivas, depressão e mania. Essas dimensões seriam, além dos
sintomas comuns, o que têm de ser avaliado
para todos os transtornos. Se tais
dimensões forem realmente fazer parte de uma futura classificação,
o trabalho diário de um médico seria enormemente beneficiado por
uma vantagem indiscutível.
Há claramente uma distinção a ser feita entre
admitir o que seriam simples categorias “tudo-ou-nada” e
conceitos dimensionais e tentativas de captar a complexidade dos
transtornos mentais com uma rede enorme, multidimensional.
Na prática, naturalmente, diferentes médicos
necessitam de diferentes conjuntos de dimensões, a fim de dar
sentido ao seu trabalho diário. O conjunto exigido por um
especialista no hospital ou um médico de clínica geral
não é o mesmo que precisa um psiquiatra de adultos, e nem são os
mesmos que precisa um psiquiatra infantil. Isso não é sugerir que
existe uma quantidade muito grande de dimensões possíveis – só
que para qualquer dado clínico, o problema é finito.
David Goldberg é professor emérito e membro do King’s College
of London. Este artigo foi originalmente publicado no Advances in
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