09/11/2009
Meio século como jornalista e revisor, uma vida como corintiano de fazer questão, Raul Drewnick também é cronista e escritor. Teve passagens por várias editorias de O Estado de S. Paulo e pela extinta revista Visão. Publicou crônicas em Veja, no próprio “Estadão” e ainda publica no Jornal da Tarde. Escreveu 18 livros, para jovens e também para adultos. Alguns são adotados como paradidáticos. Seu maior sucesso é o infantojuvenil Um inimigo em cada esquina. Outro, Ricardinho, o Grande, foi publicado em espanhol, no México, e distribuído pela América Latina. Participou com crônica em Lições de gramática para quem gosta de literatura. Seu maior orgulho é estar em Cronistas do Estadão (1991), em companhia de Paulo Francis, Fernando Sabino, Lygia Fagundes Telles, Euclides da Cunha, Rubem Braga, Monteiro Lobato...
Nivaldo Amstalden
A ortografia não afeta apenas quem grafa, mas também quem lê. Exemplos estão no título Pelos pêlos versus Pelos pelos; no adjetivo e no advérbio à-toa versus à toa. Significante e significado consolidados na memória se alteram, não se explicam por si mesmos. Para Raul Drewnick, esses são apenas alguns dos problemas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O entrevistado não esconde que há prós para poucos, inclusive para ele, com o aumento do trabalho, mas, sobretudo, para o meio editorial livreiro: “Novas edições, novas vendas”. Nas manifestações que ele ouviu de autores, a reforma é mais malquista do que bem-vinda. Com alguma revolta e resoluto, o jornalista que chegou a namorar a poesia simplista despacha: “Fiquei particularmente tentado a mandar para todos os diabos quem tirou o hífen da expressão dia-a-dia, a palavra mais querida e mais essencial para quem faz crônicas”.
Como o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa repercutiu em suas atividades e, a seu ver, entre outros autores e no meio editorial livreiro? Foi bem-vindo ou malquisto? Em que medidas?
Raul Drewnick – Ter certa idade (eufemismo para velhice) traz algumas vantagens. Uma delas, no meu caso, é essa de nenhuma reforma ortográfica ter mais o poder de me amedrontar. Passei por muitas (se eu tivesse sido bom aluno de matemática, poderia até enumerá-las) e, quando surge mais uma, eu a encaro com naturalidade. Nada mais daquele temor que tive quando enfrentei a primeira: “Decifra-me ou te devoro”. Esta recente deve ter, como sempre, sido bem recebida pelo meio editorial livreiro, especialmente pelas editoras que publicam livros didáticos. Novas edições, novas vendas. Pelos autores em geral, acredito, pelas manifestações que ouvi, que ela seja mais malquista do que bem-vinda. Eu, que, além de tentar diligentemente ser um escritor, sou revisor e sustentei, por muito tempo, minha família porque havia gente disposta a acreditar no meu talento para colocar vírgulas e crases, não tenho queixas. Meu trabalho aumentou.
Passou por muitas reformas? De 1943, de 1971. Quais outras?
Raul Drewnick – Refiro-me, claro, às reformas de 1943 e 1971. Em 1911 (reforma considerada pioneira visando à normalização e à simplificação da língua portuguesa) o acontecimento mais relevante não ocorreu nessa área do idioma: foi o primeiro aniversário do Corinthians. Mas, além dessas reformas, sempre houve mudanças pequenas, aqui e ali, registradas de tempos em tempos pelos dicionários, embora nem sempre pelo Volp Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. De modo geral, foram acréscimos que valorizaram o hífen como modificador de sentidos: dona de casa, sem hífen, era a proprietária de um imóvel, dona-de-casa era a mulher voltada aos afazeres do lar; fio dental, sem hífen, era aquela linhazinha usada na limpeza bucal, fio-dental era aquilo com que as mulheres ensandeciam os homens na praia; saia justa era uma diabólica arma feminina, saia-justa era uma situação embaraçosa.
As primeiras conceituações dessa nova ortografia datam de 1990. Estamos, oficialmente, na transição 2009-2012. Que haja essa transição de quatro anos é compreensível, mas até ela foram duas décadas. O que explicaria essa demora?
Raul Drewnick – Irei para o inferno, certamente, mas acho que, nesta época de comunicação rapidíssima, com a possibilidade de e-mails, videoconferências e tudo mais, se esses modernos recursos não foram utilizados, alguma má-língua (o Acordo respeitou este hífen, aleluia!) pode sugerir que as demoras nessa área se devem à necessidade de os “donos da língua” se reunirem várias vezes, e jantarem, e pernoitarem em bons hotéis e mostrarem como estão empenhados em defender nossa língua e em aprimorá-la.
Fernando Pessoa e, de certa forma, padre Antônio Vieira expuseram a universalidade e a internacionalidade da língua portuguesa. Entre os principais objetivos do Acordo estão, novamente, a unificação e a simplificação. Esses atributos colaboram com o caráter universal da literatura em língua portuguesa? Em que prazo?
Raul Drewnick – Pelo que li e ouvi, a justificativa que causou maior impacto e teve mais influência na instituição do novo Acordo está em que cada documento internacional em língua portuguesa necessita atualmente de tantas versões quantas são as diferentes maneiras de grafar as palavras daquilo que seria, no fundo, o mesmo idioma. Quanto à literatura, não haverá nenhum avanço com o Acordo. Se a dificuldade de criação estivesse só em erres a mais ou em esses a menos, poderíamos esperar algo. Mas...
Embora uma reforma anunciada, houve impactos imediatos na práxis das editoras? Quais? Revisões, custos com pessoal especializado, materiais e outros intangíveis? O senhor teve ou sabe de atrasos no lançamento de obras ainda inéditas ou de reedições para adequação à reforma?
Raul Drewnick – A editora para a qual faço trabalhos (a Cosac Naify) imediatamente pôs à disposição dos editores e de todos aqueles que lidam com seus textos tudo que pudesse ser necessário ao cumprimento do Acordo. Houve reuniões, palestras, distribuição de informações sobre as novas normas. Creio que outras editoras tenham feito o mesmo trabalho. Não tenho conhecimento de atrasos em lançamentos.
Pela sua experiência, a nova ortografia, até sua completa assimilação, causa desconforto aos escritores, em especial àqueles com maior fluência criativa? Em outras palavras, a preocupação com a forma prejudicaria o conteúdo?
Raul Drewnick – Não acredito que os escritores venham a ter problemas, a não ser a vontade, que essas reformas geralmente provocam, de buscar os mais expressivos palavrões para saudá-las. Eu, que escrevo crônicas para o Jornal da Tarde e fui cronista de outras publicações, como o “Estadão” e a Veja, fiquei particularmente tentado a mandar para todos os diabos quem tirou o hífen da expressão dia-a-dia (a palavra mais querida e mais essencial para quem faz crônicas). Dá vontade de xingar, quando se nota que avanços conquistados durante décadas foram varridos com uma vassourada só. Por exemplo, o à-toa (adjetivo) e o à toa (advérbio). Antes do Acordo, se eu escrevesse que fui à-toa, logo o leitor entenderia que fui um sujeito reles, desprezível. E se eu escrevesse que fui à toa, significava que andei meio sem rumo. Hoje, pela nova ortografia, tiraram o hífen, ficou só uma forma para o adjetivo e para o advérbio, para os dois significados: à toa. Quem vai lá saber se sou um sujeito reles ou se sou simplesmente uma pessoa que gosta de vagar por aí?
Houve, então, quebra de unidade semântica?
Raul Drewnick – Houve um retrocesso nessa questão. Quando se formava uma nova unidade semântica, costumava-se utilizar o hífen, para assinalar a diferença. Pé de moleque, sem hífen, não era, salvo casos de aberração, coisa que se pudesse achar uma delícia. Já pé-de-moleque... Hoje o Volp registra só uma forma, para os dois casos. Precisarei recorrer a outro doce...
Seus livros já foram exportados ou editados para países lusófonos? Haveria melhores perspectivas para escritores e editoras do Brasil, como potência que é entre os países de língua portuguesa, na exportação de títulos?
Raul Drewnick – Não tenho títulos formalmente exportados em português. Tenho um livro, Ricardinho, o Grande, lançado pela Ática e publicado em espanhol pela Larousse do México com o título Ricardo el Grande (sem vírgula para eles, mas infelizmente perdeu o diminutivo do protagonista, que era um contraponto). Ele foi distribuído pela América Latina e, como não tenho notícia de reforma nenhuma na língua de Cervantes, acho que ninguém nesses países estranhou o Ricardo original em espanhol. Não creio que a reforma venha, por si só, ampliar o mercado para livros publicados no Brasil.
A Microsoft anunciou que já tem o corretor ortográfico do Word 2007 adaptado à reforma. A função do revisor estaria ameaçada a longo prazo? Revisões de livros ainda são feitas em papel?
Raul Drewnick – Cuidado com os corretores ortográficos de processadores de texto, pois muitas vezes apresentam soluções absurdas. O revisor já praticamente não tem lugar em jornais. Em revistas, a situação é um pouco melhor. Nas editoras (estou falando das melhores), haverá sempre lugar para o revisor, e seu trabalho não se limita a essas insignificâncias ligadas a um hífen que cai ou a um acento que é suprimido. O revisor checa nomes próprios; verifica fluência, coerência, coesão, repetição de palavras. O bom revisor hoje é quase um subeditor. Em relação ao papel, posso dizer que ele continua importante nas editoras. Para avaliação de originais, ainda é o meio mais usado.
Se puder antecipar, o senhor está escrevendo um novo livro? Está revisando algum no momento?
Raul Drewnick – Estou sempre escrevendo: crônicas, contos, livros para jovens. Tenho gavetas grandes em casa. Deve sair no próximo mês um livro infantil meu, pela Editora Lazuli, O gato detetive. Acabei de ler, para a Cosac, um livro preciosíssimo, Clarice, uma biografia, de Benjamin Moser. Nele, o furacão Clarice Lispector aparece com toda sua beleza.
Embora o concretismo estivesse em evidência, o senhor namorou o movimento simplista da poesia. Foi no final dos anos 1960? Em que consistia e quanto tempo durou? Pode dar um exemplo de poema simplista, uma estrofe, um verso?
Raul Drewnick – O simplismo durou praticamente de 1958 a 1960, se tanto... Foi um movimento nascido em São Paulo, na Biblioteca Mário de Andrade, assim como o desagregacionismo. Os dois movimentos na verdade não tinham suporte estético nenhum, mas, para atrair a mídia, se apresentavam como irreconciliáveis inimigos. A mídia gostou disso por algum tempo. O simplismo, se bem me lembro, buscava, como o nome dizia, formas menos complicadas de exprimir a poesia. Nessa época, estudei um pouco o haicai (forma poética japonesa). Escrevi alguns. Aqui vai um:
PAISAGEM
Silenciosamente
Flutua o cisne: outra lua
No lago dormente.
O novo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (ABL), em sua 5ª edição, foi lançado em março. Cinco meses depois foi “revisto e ampliado”. A ortografia nota 10 é uma utopia para um léxico de quase 400 mil palavras, que não para de crescer?
Raul Drewnick - Todas as reformas foram e continuarão sendo assim. Sai a edição tão esperada e, já no dia seguinte, começam a se ouvir discordâncias entre especialistas, que acabam resultando em novas edições. No caso de dicionários e vocabulários, acho que deveria haver, por parte de quem os edita, a disposição de dar ao leitor que vai comprar a segunda edição a possibilidade de, devolvendo a primeira, ter um desconto expressivo. Posso parecer terrorista, mas talvez fosse o caso até de os órgãos de defesa do consumidor entrarem nisso, se, pouquíssimos meses depois de publicada, uma edição for substancialmente alterada. Quanto à propalada riqueza do idioma, se você pegar qualquer dicionário, ficará espantado ao ver que quase todas as palavras registradas se referem a pássaros e árvores, cada qual com uma dezena de grafias (pintassilgo-da-mata, pintassilgo-da-mata-virgem, pintassilgo-da-terra, pintassilgo-da-venezuela, ipê-mamono, ipê-escuro, ipê-mirim, ipê-piranga, ipê-preto, ipê-rosa, ipê-roxo, ipê-do-raio-que-nos-parta). Baixar a bola, então, é preciso.
Conhece algum caso de alteração comandada pela reforma que interfere no conteúdo de um título de livro ou no design de sua capa?
Raul Drewnick – Um livro de poemas de Alice Ruiz, editado em 1984, tem o título Pelos pêlos (preposição e substantivo). Esse título hoje, a meu ver, ficaria enigmaticamente Pelos pelos; no entanto, a posição final, se gosta ou não, é do autor.
Consultada, Alice Ruiz, informou que achou interessante, na reedição do livro, criar a ambiguidade. Alice acaba de receber o prêmio Jabuti 2009, primeiro lugar na categoria poesia com o livro Dois em um (2008).
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