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Século XIX: mapeamento, prospecção e conflitos
Por Alexsander Lemos de Almeida Gebara
09/04/2008

O século XIX pode ser considerado um período marcante na história da África por uma série de fatores, dos quais vale destacar aqui dois deles, o fim do tráfico escravo e a colonização européia.

Ainda no início do século, as relações da África com o resto do mundo começariam a mudar significativamente dada a iniciativa britânica de acabar com o comércio escravo. A princípio, a proibição restringia-se às colônias e navios ingleses, mas a grande hegemonia comercial e naval inglesa constituída nesse período ajudou a ampliar a abrangência da medida para as demais nações européias1. Do lado africano, diversas sociedades que haviam se constituído, ao longo de quase três séculos de intenso tráfico escravo, em estruturas fornecedoras de braços para as economias americanas, passariam por novas reestruturações com o final desse comércio, deixando paulatinamente a exportação de escravos e passando a utilizá-los cada vez mais internamente como força de trabalho.2

Já no último quartel do século, as relações do continente africano com o exterior, que até então permaneceram quase exclusivamente comerciais – com exceção das possessões coloniais portuguesas – sofreram uma nova transformação radical. A África foi militarmente invadida e em pouco mais de 30 anos, entre a década de 1880 e 1910, praticamente toda a extensão continental estava constituída por colônias de países europeus, e portanto, nominalmente controlada, com maior ou menor proximidade, por governos estrangeiros.

A rapidez da conquista colonial não deve, no entanto, levar a conclusões rápidas sobre a presença anterior de europeus no continente. De fato, até meados do século XIX, essa presença era bastante insipiente. Como exemplo pode-se mencionar a presença inglesa na costa da atual Nigéria, a qual, segundo Phillip Ehrensaft, não ultrapassava em média 300 homens.3

Até esse momento, o funcionamento do comércio africano com o Atlântico estruturava-se com a presença de poucos europeus em estabelecimentos costeiros que recebiam a mercadoria – majoritariamente escravos – que chegavam à costa através de uma rede terrestre controlada por africanos. A exceção aqui fica por conta das regiões controladas por portugueses, na costa da África Centro Ocidental (atual região de Angola), nas quais uma proporção maior de europeus, e principalmente de mestiços euro-africanos permanecia residente e negociava cada vez mais no interior.4

Diversas são as razões sugeridas na historiografia para configuração dessa conjuntura. Desde a sugestão de que o controle territorial direto estava fora dos planos dos países europeus até o final do século XIX, passando por indicações de resistência efetiva da elite africana que pretendia manter sua posição de controle nesse comércio, até o fato de que o ambiente africano era mortal para os europeus, especialmente em razão das doenças tropicais que os atingiam com grande intensidade.5

De outra perspectiva, foi também em meados do século XIX que começaram a se consolidar na Europa uma série de disciplinas científicas, tais como a geografia e a antropologia. Em grande parte, as demandas dessas disciplinas estavam conectadas com o interesse cada vez maior da Europa no conhecimento do continente africano.

Na Inglaterra, ideologias liberais por um lado, e filantrópicas por outro, orientavam a repressão ao tráfico escravo e fomentavam a idéia da necessidade de uma nova forma de envolvimento com o continente africano. A ampliação de formas de comércio que excluíam o tráfico escravo, e a “missão civilizadora” entravam na agenda da grande potência européia entre o final do século XVIII e a metade do século seguinte.

Era preciso, para isso, mapear o interior da África, virtualmente desconhecido então, em suas riquezas e potencialidades de maneira a ampliar as relações comerciais, bem como era também necessário constituir uma nova legitimidade para essa nova forma de relação que esboçava-se entre a Europa e a África. Assim, as disciplinas científicas européias que se institucionalizavam seriam ao mesmo tempo formadas em parte pelo interesse no continente africano, e em parte formatariam essas novas formas de envolvimento – no limite a própria invasão colonialista – que estavam por se desenrolar ao longo do século.

Os dados fundamentais para o desenvolvimento dessas disciplinas seriam coletados ou prospectados pelos chamados “viajantes”. É preciso, entretanto, um certo cuidado com essa denominação genérica. Eles vinham dos mais diversos extratos sociais, e tinham as mais diversas funções, eram missionários, militares, comerciantes, naturalistas, entre outros, cujas visões e concepções partiam de pressupostos e interesses diferentes, e cujos textos seriam lidos de acordo com a perspectiva européia em transformação.

As viagens britânicas ao interior praticamente começaram com Mungo Park, que penetrou no interior africano, na região do Rio Níger entre 1796-1797, financiado pela recém fundada African Association com intuito explícito de ajudar a fomentar o comércio direto com a região do interior africano. A viagem de Mungo Park forneceu dados sobre as potencialidades comerciais da região interiorana da África próximas do Rio Níger, incentivando assim uma série de outras tentativas.

A princípio financiadas por capital privado, tais como as viagens de mapeamento do curso do Níger empreendidas pelos irmãos Lander na década de 1830 – que mostraram pela primeira vez a navegabilidade do rio por barcos à vapor europeus –, essas iniciativas foram seguidas pela expedição oficial do governo britânico ao Níger, proposta por Thomas Fowell Buxton, com intuito de estabelecer um assentamento definitivo, incentivar a agricultura e o comércio, cujo objetivo principal era acabar com a escravidão e o tráfico escravo no local. Os resultados da expedição, entretanto, foram frustrantes para a Inglaterra, em grande parte devido à enorme mortalidade entre a tripulação.

O caminho entretanto, estava aberto na África Ocidental. Nas décadas seguintes, com o domínio cada vez maior da profilaxia de doenças tropicais à base de doses de quinino, a Inglaterra interferiria cada vez mais na política local, com ênfase para as ações navais costeiras, minando definitivamente o tráfico escravo. Deposições de chefes locais, ingerências na relação comercial através da ação do esquadrão naval e missões de oficiais e cônsules ingleses aos estados exportadores de escravos tais como Daomé e Achante, por exemplo, enfraqueceriam paulatinamente a condição de resistência das elites costeiras africanas.

Outro caminho a ser aberto seria aquele que buscaria as nascentes do rio Nilo. Partindo da costa oriental africana e rumando para o interior, a chamada região dos lagos, expedições seqüenciais, financiadas pela Royal Geographical Society a partir da década de 1850 encabeçadas por homens como Richard Francis Burton, John Hanning Speke, e outros, ampliariam o conhecimento geográfico e etnológico britânico e lançariam as bases para as intervenções futuras.

Além dessas expedições comerciais e científicas houve outras, com um caráter missionário mais pronunciado. Entre esses viajantes, pode-se mencionar aquele que se tornou talvez um dos maiores heróis missionários britânicos do século XIX, Dr. Livingstone. Protagonista de diversas viagens para o interior da África, David Livingstone esteve no interior do continente por vários anos nas décadas de 1860 e 1870. Tendo deixado de mandar notícias à Inglaterra, expedições em sua busca foram organizadas, mas quem o encontrou finalmente foi Henry M. Stanley. Jornalista e explorador de origem norte-americana, Stanley encontrou Livingstone vivendo às margens do lago Tanganika em 1871.

Stanley por sua vez, iniciava então uma carreira de explorador que incluiria a participação em missões diversas no interior da África, culminando com aquela encomendada pelo rei Leopoldo da Bélgica, que visava conseguir – através de tratados com chefes locais – a autorização para a instalação de um Estado interior africano sob tutela européia para garantir o livre comércio com a região, trata-se do Estado Livre do Congo. Essa iniciativa é considerada hoje como um dos gatilhos que dispararam a corrida colonialista para o interior da África no final do século.6

Oficiais da marinha, cientistas, missionários e aventureiros, deixaram inúmeros registros sobre a África no século XIX. Esses registros, como se pode entrever, contêm as mais diferentes representações sobre o continente. Em comum, entretanto, o fato de que essas informações forneceriam dados fundamentais para as invasões coloniais no final do século. Além disso, e em menor medida, também as incitariam, uma vez que constituíam o material básico para a afirmação científica da antropologia inglesa e européia, e cristalizariam definitivamente a imagem de inferioridade e atraso da África, e assim, a legitimidade da tutela européia.

Alexsander Lemos de Almeida Gebara é professor de história da África na Universidade Federal Fluminense

1 De várias formas, veja-se como exemplo os tratados, como os realizados com a Espanha, Portugal e Brasil que colocavam limites cada vez maiores no tráfico, ainda na primeira metade do século.
2 Ver Lovejoy, Paul. A escravidão na África, uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
3 Ehrensaft, Phillip. “The political economy of informal empire in pre colonial Nigeria, 1807-1884” Canadian Journal of African Studies, n 3 (1972), 451-490.
4 Ver Ferreira, Roquinaldo. “‘Ilhas Crioulas': o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica”. Revista de História 155, 2 O. semestre de 2006, pp. 17-41.
5 Curtin, Phillip. The image of África. British ideas and action, 1780 1850. London, MacMillan &co., 1965.
6 Ver por exemplo, Hernandes, Leila. A África na sala de aula. São Paulo: Selo Negro, 2005.