Artigo |
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A pátria em chuteiras de Nélson Rodrigues |
Por Fernando Bandini
10/08/2006
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Quando Nélson Falcão Rodrigues nasceu, em 1912, o futebol
no Brasil chegava a sua terceira década, começava a
deixar os clubes grã-finos e espalhava-se por várzeas e
agremiações populares. Quando morreu, em 1980, o Brasil
era o “país do futebol” e exibia o melhor currículo das
seleções: das onze copas do mundo até então
disputadas, havia conquistado três títulos mundiais, um
vice, um terceiro e um quarto lugares. Revelara Pelé, o melhor
jogador de todos os tempos, e um punhado de craques admiráveis.
Para louvar tal futebol, tão bonito como “uma paisagem de
calendário”, Nélson criou essa e dezenas de
expressões e personagens que ajudaram a formar a mitologia do
futebol brasileiro. O leitor e o torcedor conheceram o “Sobrenatural de
Almeida”, a “Grã-fina das narinas de cadáver”, o “Idiota
da objetividade”, o “Narciso às avessas”, o “Príncipe
etíope”, o “Sublime crioulo”, a “Lagartixa profissional”, o
‘Possesso’, o “Quadrúpede de vinte e oito patas”...
Nélson reinventou o futebol a seu modo.
O autor de “Vestido de noiva” foi o primeiro dos grandes escritores
brasileiros a pautar o universo futebolístico como um dos
principais e mais freqüentes assuntos de sua
produção literária. Antes dele, poucas
menções. João do Rio citara o esporte que
engatinhava na antiga capital federal. Lima Barreto denunciara o “jogo
de elite”, disputado por moços ricos em clubes fechados que
não permitiam jogadores negros. Alcântara Machado
transformara-o em assunto em conto de Brás, Bexiga e Barra Funda
(“Palmeiras 1 Coríntians 2”). Mário de Andrade citara-o
em Paulicéia desvairada. Mas o futebol ainda estava à
margem da literatura. Nélson trouxe-o para o centro da cena. E
deu-lhe um caráter épico. O futebol em Nélson
Rodrigues é arrebatado, grandioso, exagerado como tudo que o
escritor produziu. A pátria “calça chuteiras” para
acompanhar sua seleção de futebol; “mantos
invisíveis pendem do peito do rei Pelé”; o Fluminense
“nasce quarenta séculos antes do paraíso”, surge o
Fla-Flu e as “multidões despertam”.
Suas crônicas foram recolhidas por Ruy Castro em À sombra
das chuteiras imortais e A pátria em chuteiras. O jornalista
mineiro, que já repusera o dramaturgo em cartaz com sua
extraordinária biografia O anjo pornográfico, organizou
em ordem cronológica a produção do cronista. O
leitor pôde observar como Nélson foi o grande poeta do
melhor momento do futebol brasileiro, entre 1958 e 1970, quando vieram
os três primeiros títulos mundiais, mais Pelé e
Garrincha. O escritor, que mal enxergava o que se passava em campo –
por muito tempo teimou em não usar óculos, apesar de
recomendação médica – via no futebol uma “busca
pela poesia”. Por isso o esporte seria tão amado. Diz o
cronista: “o que nós procuramos nos clássicos e nas
peladas é a poesia”, insuspeita e absoluta: “Há por todo
o Brasil uma sede e uma fome de bola”. O sujeito vai a um
clássico de futebol, ou a “um torneio de peteca ou de cuspe
à distância é na esperança ainda da poesia”.
Vira-latas
Escreveu para Manchete Esportiva, O Globo, Jornal da Tarde
crônicas em que, pela lente do esporte, vislumbrava uma
secreta identidade nacional. E, entre a seriedade e a galhofa, analisou
o brasileiro. Dizia que antes de conquistar o primeiro título
mundial, em 1958, na Suécia, o brasileiro tinha “alma de
vira-lata”, e por isso perdera a finalíssima de 1950, para o
Uruguai, no Maracanã, e fora derrotado pela Hungria em 54, na
Suíça. Mas com Pelé o futebol brasileiro perderia
sua “humildade deprimente” e ganharia em qualidade. Seria “insolente e
vencedor”, como o craque que despontava. A respeito do jogador,
Nélson vaticinou-lhe a grandeza em crônica de 1957, quando
o garoto começava a brilhar no Santos Futebol Clube. Em
março de 1958, três meses antes da Copa, publicou a
crônica “A realeza de Pelé”, na qual profetizou a
conquista do título porque agora, com o Rei que dribla os
adversários como “quem afasta um plebeu ignaro e piolhento”, os
“inimigos tremerão”. A partir do mundial da Suécia,
Pelé passou a ser reconhecido como o maior. E Nélson
volta e meia falava do “sublime crioulo”.
Garrincha também inspirou o cronista a propalar seu ufanismo.
Mas se Pelé representa ousadia e mesmo petulância,
Mané inspira docilidade (mas não servilismo). O pacato
atacante, a quem os “pombos da Cinelândia e os pardais do
boulevard 28 de Setembro chamam de ‘nosso irmão, o
Mané’”, é um predestinado a manter o futebol brasileiro
em evidência e a chacoalhar o país, acordando-o para sua
grandeza. O Brasil seria outro se nós, brasileiros,
fôssemos como o “anjo das pernas tortas” dentro do campo.
Mané Garrincha carrega a seleção para o
bicampeonato no Chile, em 1962, e o cronista escreve:”Deslumbrante
país seria este, maior que a Rússia, maior que os Estados
Unidos, se fôssemos 75 milhões de Garrinchas”.
Reacionário
Essa patriotada toda custou-lhe o desprezo de parte da crítica e
o isolamento. Quando a ditadura instalou-se em 1964 e com o tempo
deixou claro que viera para ficar, Nélson continuou a louvar a
seleção e deu carona para o regime militar. Provocador,
intitulou-se reacionário, espicaçou a “esquerda festiva”,
os “padres de passeata” e as “freiras de minissaia” e virou
símbolo, ainda que incômodo, do conservadorismo de direita.
Com a conquista do tricampeonato, em 1970, no México, e o
crescimento econômico, o regime tratou de misturar os caldos, e
passou a trombetear a grandeza do país, campeão no
futebol e pujante no seu desenvolvimento insuflado pelo “milagre
econômico”.
Essa propaganda oficial deixou sombrio o cenário para quem se
dispusesse a reconhecer a excelência do futebol praticado no
Brasil. Exaltar o jogo ou o escrete brasileiro era o mesmo que apoiar a
ditadura. No mínimo, evidenciava alienação
política. Nélson Rodrigues estava longe de ser um
alienado. Manteve-se elogiando, provocando indignações e
colhendo antipatias. Nada de novo para quem já fora chamado de
“pornográfico e indecente”, um “imoral” a “chafurdar nessa lama”
da abjeção humana e social. O futebol era mais um – mas
não o único – tema com o qual pudesse provocar
ódios e gritarias “dignos de um Rigoletto”.
Ao longo da década de 1970, o cronista continuou a escrever como
o torcedor apaixonado que desenha frases e imagens inusitadas para
louvar o futebol.
Vitórias
Sempre apontando o Brasil como o favorito e o melhor, Nélson
Rodrigues não dava o braço a torcer quando a
seleção perdia. Implicava com jornalistas que não
reconheciam os méritos do selecionado nacional. Ele não
queria saber da propalada imparcialidade que o jornalismo deveria
exibir. Dizia que o “ser humano é capaz de tudo, até
mesmo de uma boa ação, mas não é capaz da
imparcialidade”. Os colegas que se diziam “objetivos”, analisavam “os
fatos”, como a eliminação na primeira etapa da Copa de 66
e a derrota para a Holanda na segunda fase na de 1974, e escreviam que
o Brasil já não era o melhor, Nélson atacava com
suas tiradas mordazes e bem-humoradas. Tachava-os de
“quadrúpedes de vinte e oito patas”, que acabariam por “trotar
num Sete de Setembro, como um dragão de Pedro Américo”. O
Brasil perdeu feio em 1966, na Inglaterra? Pois se os jornalistas
brasileiros reconhecessem o fiasco, estariam dando “coices triunfais”,
pois a Copa fora uma bandalheira, uma armação para os
ingleses triunfarem. Volta à cena a nossa “alma de vira-latas”,
nosso complexo de subdesenvolvidos. Dizia que o brasileiro viaja e
volta com sotaque do colonizador: “Pergunto aos paralelepípedos
de Boca do Mato: tínhamos alguma coisa a aprender com os
ingleses? Sim. Tínhamos. Por exemplo – aprendemos como ganhar no
apito”.
O mundo reconheceu o revolucionário “carrossel holandês”
de 1974? Pior para todos. Nélson repetia que os holandeses
mostraram apenas a “saúde da vaca premiada”, e que a “grande
contribuição” holandesa na Copa tinha sido o conhecido
“chuveirinho”. Aparecia na contramão para provocar e, com estilo
único, manter seu espaço na crônica brasileira.
Multidão dos estádios
Se os colegas eram obtusos ou cegos, com quem estaria a verdade? Quem
veria o “óbvio ululante” da primazia do futebol verde-e-amarelo?
As arquibancadas. O imenso contingente de torcedores anônimos, a
aplaudir e a vaiar. Nélson é o cronista de uma
época em que o Maracanã recebia freqüentemente mais
de 100 mil torcedores para um clássico estadual ou um amistoso
da seleção. Outros grandes estádios do país
também atingiam ou beiravam essa marca, hoje raríssima no
futebol brasileiro e mundial.Chega a afirmar que a idéia de
multidão nasceu no Brasil com a construção do
Estádio Mário Filho (nome oficial do Maracanã,
homenagem ao irmão de Nélson, o também jornalista
Mário Rodrigues Filho). Na sua opinião, esse é o
primeiro espaço público a receber tanta gente ao mesmo
tempo. “Nem o enterro do Barão de Rio Branco reuniu mais que o
Mário Filho para o Fla-Flu do último domingo”.
Tantas vezes ressabiado com a opinião pública, autor da
famosa máxima de que “toda unanimidade é burra”,
Nélson, no entanto, enxergava nas multidões dos
estádios profetas que se antecipavam aos cronistas e radialistas
para apontar os craques e gênios dos gramados: ”os mitos
são gerados no ventre numeroso, úmido e cálido das
torcidas”. Ele esmerou-se em tingir com tintas fortes esses mitos, e
imortalizou-os nas páginas de jornal.
Com Nélson Rodrigues, o futebol brasileiro ficou ainda mais
bonito. E bem mais divertido.
Fernando Pellegrini Bandini, licenciado em Letras pela Unicamp,
é professor de literatura no ensino médio e coordenador
do programa de incentivo à leitura JJ na educação,
do Jornal de Jundiaí Regional.
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