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Reportagem
Heranças e desafios para o novo decênio
Por Carolina Octaviano e Luciana Noronha
10/10/2011

No dia 15 de dezembro do ano passado, foi apresentado pelo governo federal ao Congresso Nacional o projeto de lei que estipula o novo Plano Nacional de Educação (PNE), para vigorar no período entre 2011 e 2020 e que deverá nortear o caminho que a educação nacional deve seguir durante esse tempo. Esse plano lista 10 diretrizes e 20 metas, e quase três mil emendas já foram apresentadas no Congresso, na tentativa de aprimorá-lo. Uma parcela expressiva das 2.915 emendas apresentadas é oriunda da militância educativa no âmbito da sociedade civil. “A prioridade é assumida como uma política de governo, e nós estamos discutindo planos nacionais, ou realmente nada acontece (se não houver essa discussão). Eu faço parte de um grupo que acredita que a gente faz planos nacionais, estaduais e municipais exatamente em defesa ou incentivando a mobilização popular. Se não existir isso, não vai haver retorno”, afirma Lisete Arelaro, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

O PNE atual pode ser considerado mais enxuto e conciso do que o anterior, que foi aprovado em janeiro de 2001 e que traçava metas a serem alcançadas até 2010. À primeira vista, pode-se ter a impressão de que o atual plano tenha avançado em relação àquele, o que, na visão de Demerval Saviani, filósofo e professor da Faculdade de Educação Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é um equívoco. “Numa observação mais atenta, verificamos que esse enxugamento é apenas aparente porque, de fato, as 20 metas se desdobram em 170 estratégias que operam como submetas específicas em relação às 20 metas de caráter geral”, explicita. O plano anterior, para 2001-2010, tinha 295 metas.

De acordo com Saviani, ao se traçar um comparativo entre os dois planos, a redução das metas pode ser considerada um reflexo do plano anterior, que, apesar de operar com mais metas, acabou se concentrando em uma parte delas. “O foco (do atual) está posto em 20 metas centrais, ficando em segundo plano seu desdobramento em estratégias ou metas específicas. Mas essa observação é igualmente apenas aparente, pois no plano anterior nós também tínhamos o foco posto nos grandes setores da educação que, ao fim e ao cabo, correspondem às 20 metas gerais do projeto atual”, explica. Deve-se salientar que as metas do plano da década passada eram distribuídas por onze setores distintos: educação infantil; ensino fundamental; ensino médio; educação superior; educação de jovens e adultos; educação a distância e tecnologia educacional; educação tecnológica e formação profissional; educação especial; educação indígena; magistério de educação básica; e financiamento e gestão.

O projeto do novo plano desdobra-se da seguinte forma: meta 1, voltada para a educação infantil; metas 2 e 5, para o ensino fundamental; meta 3, para o ensino médio; meta 4, para a educação especial; meta 6, para a organização do espaço-tempo da educação básica; meta 7, para a avaliação da educação básica; metas 8, 9 e 10, para a educação de jovens e adultos; meta 11, para a educação profissional; metas 12, 13 e 14, para a educação superior; metas 15, 16, 17 e 18, para o magistério e servidores da educação básica; meta 19, para diretores de escola; e meta 20, para o investimento em educação. “Na verdade, as vinte metas do novo plano giram em torno desses setores, funcionando as estratégias como metas específicas equivalentes àquelas em que se desdobram os onze setores referidos (no plano anterior)”, aponta Saviani. Sobre as reduções de meta, o professor da Unicamp explica que “certo enxugamento, embora relativo, não deixou de existir e consistiu basicamente na exclusão das considerações relativas ao diagnóstico e às diretrizes de cada setor, que integravam o plano anterior, e na redução do número global de metas de 295 para 190”.

Na opinião de Luiz Fernandes Dourado, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) que coordenou o processo do PNE 2001-2010, embora o antigo plano tenha apresentado algumas metas de amplo alcance, indicando grandes desafios para a melhoria da educação nacional, ele acabou se configurando como um plano formal, em que mecanismos concretos de financiamento estavam ausentes, deixando explícito que essa questão não pode ser ignorada no novo PNE. “Outro aspecto a ser realçado refere-se à dinâmica global de planejamento adotado pelo governo, onde não se efetivou a organicidade orçamentária para dar concretude às metas do PNE, na medida em que o Plano não foi levado em conta no processo de elaboração do Plano Plurianual e de suas revisões. Esse cenário é revelador de um dos grandes limites estruturais do PNE”, contextualiza.

“Entendendo a educação como campo de disputa, é necessário sinalizar ainda alguns limites estruturais do PNE, especialmente no financiamento e gestão da educação nacional, traduzidos pelo tensionamento entre a dinâmica política e a organizativa da educação, o plano e os vetos, a proposição e a materialização de algumas políticas”, aponta Dourado. Para o professor da UFG, o redimensionamento dos recursos, por meio da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), e da otimização da relação entre os entes federados, estabelecendo política de vinculação do financiamento para toda a educação básica e a ampliação da escolarização obrigatória no país, por meio da Emenda Constitucional nº 59/2009, que ampliou a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade são heranças importantes para o novo plano.

Já Saviani, da Unicamp, acredita que a ausência de diagnósticos é um dos pontos que torna o novo projeto frágil, porque a caracterização da situação, com seus limites e carências, fornece a base e a justificativa para o enunciado das metas que compõem o plano a ser executado. “Sem o diagnóstico, várias das metas resultam arbitrárias, não se entendendo, por exemplo, por que se pretende ‘elevar a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de analfabetismo funcional’, como o enuncia a meta de número 9. O diagnóstico nos permitiria entender a razão desses números”, exemplifica.

Segundo Dourado, da UFG, o PNE 2001-2010 envolveu o embate entre a sociedade civil brasileira e a proposta defendida pelo executivo federal, e é preciso que haja isso na proposição atual. “(O plano) tem se efetivado por meio da realização de audiências públicas, seminários, debates, entre outros. Nesse processo, merece ser ressaltada a efetiva participação e articulação entre as entidades da sociedade civil organizada, particularmente, dos setores acadêmicos e sindicais ligados à área de educação”, observa. Ele acredita que as diversas discussões sobre o plano, a participação das entidades da área e o grande número de emendas enviadas são indicadores de que a sociedade quer participar e intervir.

“O momento histórico (da aprovação do plano anterior) obviamente era outro e, como tal, tinha uma mobilização disponível, das entidades e dos professores, e portanto, nós chegamos ao processo de elaboração de um plano que eu diria, dado o tamanho do nosso país, relativamente participativo. O que aconteceu agora, do ponto de vista de mobilização estadual e municipal, foi maior, não há dúvida. No entanto, nós estamos vivendo um descompasso entre aquilo que foi discutido no Brasil e aquilo que foi escolhido pelo governo como um plano a ser apresentado”, complementa Arealo, da USP.

Tanto o PNE 2001-2010, quanto o PNE 2011-2020 apresentam metas, estratégias e diretrizes voltadas para a busca da superação das desigualdades entre as várias regiões brasileiras, além de sinalizações referentes à garantia da articulação de políticas nacionais e as especificidades locais. Contudo, apesar dessas indicações, as assimetrias regionais não encontram espaço nas políticas, nos programas e nas ações, do ponto de vista de Dourado, da UFG, “dado os limites da relação, ainda patrimonial, entre os entes federados e a centralidade conferida às políticas nacionais, nem sempre consonantes às demandas e especificidades regionais e locais”.

Dourado recorda como foi o processo de avaliação do último PNE, do qual ele participou ativamente e teve um papel de destaque, e avalia que essa experiência adquirida anteriormente pelo outro plano pode servir como exemplo prático para a efetivação do novo. “Esse processo avaliativo concluiu, entre outras coisas, que o PNE foi negligenciado como referência para as políticas educacionais e que não se efetivou no âmbito de estados e municípios, por meio de planos estaduais e municipais consequentes”, aponta. Ele conta que, em nível federal, o Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação (PNDE), executado pelo Ministério da Educação (MEC), serviu como base para o planejamento e a gestão das políticas.

7% do PIB aplicado à educação e escolas com período integral

A meta de número 20 do atual plano estipula que deve-se ampliar progressivamente o investimento público em educação até atingir, no mínimo, o patamar de 7% do produto interno bruto (PIB) brasileiro. Sem dúvida, esse é um dos pontos mais polêmicos do novo PNE. “O plano insiste – e isso foi uma surpresa negativa – em 7% do PIB. (Sobre esse percentual), já havia consenso no próprio (governo do) PSDB, em 2001, o que também foi vetado, inclusive”, lembra Arealo, da USP. Atualmente, há um forte movimento nacional em defesa da ampliação do investimento para 10% do PIB.

Outra questão apontada por ela é a da ampliação das escolas com período integral, estipulada na meta de número 6. Arealo lembra ser necessário um grande volume de recursos para concretizá-la de maneira satisfatória, proporcionando um ensino de qualidade. “Se você fizer as contas, só pra você cumprir essa meta, de que 50% das escolas tenham período integral, supondo que você vai fazer um projeto educativo interessante, e que seja instigante para o jovem, custa caro”, avalia. Ela conclui que não é possível ampliar o tempo das aulas, o número de professores e as coisas interessantes de uma escola, quando há 33 milhões de alunos matriculados no país. “Só pra cumprir essa meta, você já gastou todo o dinheiro. As contas não batem”, completa.

Um indicador para a educação básica

Criado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) em 2007, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) reúne dois conceitos em um indicador: o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações. O índice é calculado com base nos dados sobre aprovação (ou censo escolar) e as médias de desempenho nas avaliações do Inep (o Saeb e a Prova Brasil). “Trata-se, portanto, de um índice que não se articulou diretamente ao PNE anterior, mas que expressa a concepção de avaliação educacional adotada, com forte ênfase em testes estandardizados. Trata-se de um indicador que, enquanto política governamental, vem sendo largamente utilizado como referência para avaliação da qualidade da educação básica”, explica Dourado, da UFG.

Para Arealo, a utilização do Ideb, como está prevista na meta de número 7 do plano autal, não possui aplicação condizente com a realidade, e pode ser considerada um atraso em termos educacionais. “O que eu considero uma das coisas mais extravagantes desse plano é essa meta 7. É um retrocesso gravíssimo introduzir o Ideb, que é uma opção de determinado governo, como sendo ‘o’ critério pra você avaliar a qualidade. Ele é ‘um’ critério, não pode entrar no plano como ‘o’ critério”, critica.

O professor da UFG sinaliza que a proposta de projeto de lei nº 8.035/2010 confere ao Ideb uma grande centralidade no conjunto geral das metas para o PNE 2011-2020. Ele diz que isso, aliado à discussão sobre os limites interpostos ao referido índice e à necessidade de agregar outras variáveis, tem ocasionado críticas, por conta da utilização do Ideb como meta transversal na proposta do governo para o plano. “Nessa direção, entende-se que o PNE, entendido como política de Estado, deveria sinalizar de maneira mais orgânica a concepção de avaliação e desenvolvimento institucional e não se restringir a um indicador, tendo em vista a complexidade das questões inerentes à qualidade da educação e suas dimensões internas e externas. Sem desconsiderar a importância e os limites do referido índice, defende-se no novo plano a busca de maior organicidade da avaliação da educação básica”, opina Dourado.