No dia 15 de dezembro do ano
passado, foi apresentado pelo governo federal ao Congresso Nacional o projeto
de lei que estipula o novo Plano Nacional de Educação (PNE), para vigorar no
período entre 2011 e 2020 e que deverá nortear o caminho que a educação
nacional deve seguir durante esse tempo. Esse plano lista 10 diretrizes e 20
metas, e quase três mil emendas já foram apresentadas no Congresso, na
tentativa de aprimorá-lo. Uma parcela expressiva das
2.915 emendas apresentadas é oriunda da militância educativa no âmbito da
sociedade civil. “A prioridade é assumida como uma política de governo,
e nós estamos discutindo planos nacionais, ou realmente nada acontece (se não
houver essa discussão). Eu faço parte de um grupo que acredita que a gente faz
planos nacionais, estaduais e municipais exatamente em defesa ou incentivando a
mobilização popular. Se não existir isso, não vai haver retorno”, afirma Lisete
Arelaro, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(USP).
O PNE atual pode ser considerado mais enxuto e conciso do
que o anterior, que foi aprovado em janeiro de 2001 e que traçava metas a serem
alcançadas até 2010. À primeira vista, pode-se ter a impressão de que o atual
plano tenha avançado em relação àquele, o que, na visão de Demerval Saviani,
filósofo e professor da Faculdade de Educação Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp), é um equívoco. “Numa observação mais atenta, verificamos que esse enxugamento
é apenas aparente porque, de fato, as 20 metas se desdobram em 170 estratégias
que operam como submetas específicas em relação às 20 metas de caráter geral”,
explicita. O plano anterior, para 2001-2010, tinha 295 metas.
De acordo com Saviani, ao se traçar um comparativo entre
os dois planos, a redução das metas pode ser considerada um reflexo do plano
anterior, que, apesar de operar com mais metas, acabou se concentrando em uma
parte delas. “O foco (do atual) está posto em 20 metas centrais, ficando em
segundo plano seu desdobramento em estratégias ou metas específicas. Mas essa
observação é igualmente apenas aparente, pois no plano anterior nós também
tínhamos o foco posto nos grandes setores da educação que, ao fim e ao cabo,
correspondem às 20 metas gerais do projeto atual”, explica. Deve-se salientar
que as metas do plano da década passada eram distribuídas por onze setores
distintos: educação infantil; ensino fundamental; ensino médio; educação
superior; educação de jovens e adultos; educação a distância e tecnologia
educacional; educação tecnológica e formação profissional; educação especial;
educação indígena; magistério de educação básica; e financiamento e gestão.
O projeto do novo plano
desdobra-se da seguinte forma: meta 1, voltada para a educação infantil; metas
2 e 5, para o ensino fundamental; meta 3, para o ensino médio; meta 4, para a educação
especial; meta 6, para a organização do espaço-tempo da educação básica; meta
7, para a avaliação da educação básica; metas 8, 9 e 10, para a educação de
jovens e adultos; meta 11, para a educação profissional; metas 12, 13 e 14, para
a educação superior; metas 15, 16, 17 e 18, para o magistério e servidores da
educação básica; meta 19, para diretores de escola; e meta 20, para o investimento
em educação. “Na verdade, as vinte metas
do novo plano giram em torno desses setores, funcionando as estratégias como
metas específicas equivalentes àquelas em que se desdobram os onze setores
referidos (no plano anterior)”, aponta Saviani. Sobre as reduções de meta, o
professor da Unicamp explica que “certo enxugamento, embora relativo, não
deixou de existir e consistiu basicamente na exclusão das considerações
relativas ao diagnóstico e às diretrizes de cada setor, que integravam o plano
anterior, e na redução do número global de metas de 295 para 190”.
Na opinião de Luiz Fernandes
Dourado, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) que coordenou o
processo do PNE 2001-2010, embora o antigo plano tenha apresentado algumas
metas de amplo alcance, indicando grandes desafios para a melhoria da educação
nacional, ele acabou se configurando como um plano formal, em que mecanismos
concretos de financiamento estavam ausentes, deixando explícito que essa
questão não pode ser ignorada no novo PNE. “Outro aspecto a ser realçado
refere-se à dinâmica global de planejamento adotado pelo governo, onde não se
efetivou a organicidade orçamentária para dar concretude às metas do PNE, na
medida em que o Plano não foi levado em conta no processo de elaboração do
Plano Plurianual e de suas revisões. Esse cenário é revelador de um dos grandes
limites estruturais do PNE”, contextualiza.
“Entendendo a educação como campo
de disputa, é necessário sinalizar ainda alguns limites estruturais do PNE,
especialmente no financiamento e gestão da educação nacional, traduzidos pelo
tensionamento entre a dinâmica política e a organizativa da educação, o plano e
os vetos, a proposição e a materialização de algumas políticas”, aponta
Dourado. Para o professor da UFG,
o redimensionamento dos recursos, por meio da criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), e da
otimização da relação entre os entes federados, estabelecendo política de vinculação
do financiamento para toda a educação básica e a ampliação da escolarização
obrigatória no país, por meio da Emenda Constitucional nº 59/2009, que ampliou
a educação básica
obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade são heranças
importantes para o novo plano.
Já Saviani, da Unicamp, acredita
que a ausência de diagnósticos é um dos pontos que torna o novo projeto frágil,
porque a caracterização da situação, com seus limites e carências, fornece a
base e a justificativa para o enunciado das metas que compõem o plano a ser
executado. “Sem o diagnóstico, várias das metas resultam arbitrárias, não se
entendendo, por exemplo, por que se pretende ‘elevar
a taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais para 93,5% até 2015 e
erradicar, até 2020, o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% a taxa de
analfabetismo funcional’, como o enuncia a meta de número 9. O diagnóstico nos
permitiria entender a razão desses números”, exemplifica.
Segundo
Dourado, da UFG, o PNE 2001-2010 envolveu o embate entre a sociedade civil
brasileira e a proposta defendida pelo executivo federal, e é preciso que haja
isso na proposição atual. “(O plano) tem se efetivado por meio da realização
de audiências públicas, seminários, debates, entre outros. Nesse processo,
merece ser ressaltada a efetiva participação e articulação entre as entidades
da sociedade civil organizada, particularmente, dos setores acadêmicos e
sindicais ligados à área de educação”, observa. Ele acredita que as diversas discussões sobre o plano, a
participação das entidades da área e o grande número de emendas enviadas são
indicadores de que a sociedade quer participar e intervir.
“O momento
histórico (da aprovação do plano anterior) obviamente era outro e, como tal,
tinha uma mobilização disponível, das entidades e dos professores, e portanto,
nós chegamos ao processo de elaboração de um plano que eu diria, dado o tamanho
do nosso país, relativamente participativo. O que aconteceu agora, do ponto de
vista de mobilização estadual e municipal, foi maior, não há dúvida. No
entanto, nós estamos vivendo um descompasso entre aquilo que foi discutido no
Brasil e aquilo que foi escolhido pelo governo como um plano a ser
apresentado”, complementa Arealo, da USP.
Tanto o PNE 2001-2010, quanto o
PNE 2011-2020 apresentam metas, estratégias e diretrizes voltadas para a busca
da superação das desigualdades entre as várias regiões brasileiras, além de
sinalizações referentes à garantia da articulação de políticas nacionais e as
especificidades locais. Contudo, apesar dessas indicações, as assimetrias
regionais não encontram espaço nas políticas, nos programas e nas ações, do
ponto de vista de Dourado, da UFG, “dado os limites da relação,
ainda patrimonial, entre os entes federados e a centralidade conferida às
políticas nacionais, nem sempre consonantes às demandas e especificidades
regionais e locais”.
Dourado recorda como foi o
processo de avaliação do último PNE, do qual ele participou ativamente e teve
um papel de destaque, e avalia que essa experiência adquirida anteriormente
pelo outro plano pode servir como exemplo prático para a efetivação do novo.
“Esse processo avaliativo concluiu, entre outras coisas, que o PNE foi
negligenciado como referência para as políticas educacionais e que não se efetivou no âmbito
de estados e municípios, por meio de planos estaduais e municipais
consequentes”, aponta. Ele conta que, em nível federal, o Plano Nacional de
Desenvolvimento da Educação (PNDE), executado pelo Ministério da Educação
(MEC), serviu como base para o planejamento e a gestão das políticas.
7% do PIB aplicado à educação e escolas com período integral
A meta de número 20 do atual
plano estipula que deve-se ampliar progressivamente o investimento público em educação
até atingir, no mínimo, o patamar de 7% do produto interno bruto (PIB)
brasileiro. Sem dúvida, esse é um dos pontos mais polêmicos do novo PNE. “O
plano insiste – e isso foi uma surpresa negativa – em 7% do PIB. (Sobre esse
percentual), já havia consenso no próprio (governo do) PSDB, em 2001, o que
também foi vetado, inclusive”, lembra Arealo, da USP. Atualmente, há um forte
movimento nacional em defesa da ampliação do investimento para 10% do PIB.
Outra questão apontada por ela é
a da ampliação das escolas com período integral, estipulada na meta de número 6.
Arealo lembra ser necessário um grande volume de recursos para concretizá-la de
maneira satisfatória, proporcionando um ensino de qualidade. “Se você fizer as
contas, só pra você cumprir essa meta, de que 50% das escolas tenham período
integral, supondo que você vai fazer um projeto educativo interessante, e que
seja instigante para o jovem, custa caro”, avalia. Ela conclui que não é
possível ampliar o tempo das aulas, o número de professores e as coisas
interessantes de uma escola, quando há 33 milhões de alunos matriculados no
país. “Só pra cumprir essa meta, você já gastou todo o dinheiro. As contas não
batem”, completa.
Um indicador
para a educação básica
Criado pelo Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais (Inep) em 2007, o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica (Ideb) reúne dois conceitos em um indicador: o fluxo escolar e
as médias de desempenho nas avaliações. O índice é calculado com base nos dados
sobre aprovação (ou censo escolar) e as médias de desempenho nas avaliações do
Inep (o Saeb e a Prova Brasil). “Trata-se, portanto, de um índice que não se
articulou diretamente ao PNE anterior, mas que expressa a concepção de
avaliação educacional adotada, com forte ênfase em testes estandardizados.
Trata-se de um indicador que, enquanto política governamental, vem sendo
largamente utilizado como referência
para avaliação da
qualidade da educação básica”, explica Dourado, da UFG.
Para Arealo, a utilização do Ideb, como
está prevista na meta de número 7 do plano autal, não possui aplicação condizente
com a realidade, e pode ser considerada um atraso em termos educacionais. “O
que eu considero uma das coisas mais extravagantes desse plano é essa meta 7. É
um retrocesso gravíssimo introduzir o Ideb, que é uma opção de determinado
governo, como sendo ‘o’ critério pra você avaliar a qualidade. Ele é ‘um’
critério, não pode entrar no plano como ‘o’ critério”, critica.
O professor da UFG sinaliza que a
proposta de projeto de lei nº 8.035/2010
confere ao Ideb uma grande centralidade no conjunto geral das metas para o PNE 2011-2020.
Ele diz que isso, aliado à discussão sobre os limites interpostos ao referido
índice e à necessidade de agregar outras variáveis, tem ocasionado críticas,
por conta da utilização do Ideb como meta transversal na proposta do governo
para o plano. “Nessa direção, entende-se que o PNE, entendido como política de Estado,
deveria sinalizar de maneira mais orgânica a concepção de avaliação e
desenvolvimento institucional e não se restringir a um indicador, tendo em
vista a complexidade das questões inerentes à qualidade da educação e suas
dimensões internas e externas. Sem desconsiderar a importância e os limites do
referido índice, defende-se no novo plano a busca de maior organicidade da
avaliação da educação básica”, opina Dourado.
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