1. Introdução
O
Sistema Único de Saúde – SUS é o sistema público de saúde brasileiro. O SUS é
muito grande e muito complexo e atende, aproximadamente, 70% da nossa
população. Realiza aproximadamente 13 milhões de internações anuais e oferece
pouco mais de 350 mil leitos. Fora do SUS, no setor privado, existem algo em
torno de 136 mil leitos. O orçamento do Ministério da Saúde para o ano de 2016
é de R$ 102 bilhões. A esse montante devem ser acrescidos os recursos dos
estados e dos municípios, o que acrescentaria mais uns R$ 110 ou R$120 bilhões.
O SUS
reproduz as desigualdades regionais brasileiras e concentra a maior parte de
seus recursos nas regiões Sul e Sudeste do país. Tem muitos problemas graves
(grandes filas de espera para diversos procedimentos, congestionamento nas
emergências de grandes hospitais, faltas de equipamentos, escassez geral de
recursos etc), mas também exibe sucessos relevantes (grande cobertura vacinal;
enorme dimensão do programa de transplantes; atendimento pelo Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência – Samu; combate à epidemia de HIV/AIDS etc).
Enfim, muita coisa funciona muito bem e muita coisa não funciona bem. Há muito
espaço para melhorias. Isso inclui a busca da melhor aplicação possível dos
recursos disponíveis na obtenção dos resultados desejados (a busca da eficiência).
De
acordo com a Organização Mundial da Saúde – OMS, entre as destinações que
definem um sistema de saúde encontram-se: melhorar e proteger a saúde das
pessoas; promover a equidade no financiamento da atenção à saúde; atender às
esperanças da população no que se refere às condições de atendimento; e reduzir
as desigualdades. O Departamento Econômico da OECD (OECD, 2010) afirma
que: “There is no health care system that
performs systematically better in delivering cost-effective health care. It may
thus be less the type of system that matters but rather how it is managed. Both
market-based and more centralized command-and-control systems show strengths
and weaknesses”.
Ainda
de acordo com OECD (2010), na presença de desempenhos eficientes, seria
possível, em seus países membros, em média, um ganho de dois anos de esperança
de vida ao nascer, e uma economia de gastos públicos da ordem de 2% do PIB. Por
outro lado, sem melhoria da eficiência, um aumento de 10% nos gastos em saúde
elevaria a esperança de vida ao nascer em apenas dois ou três meses.
A
busca pela eficiência, ou seja, a procura da aplicação ótima dos recursos
disponíveis, constitui objetivo fundamental de análise econômica. Análises de
eficiência geram importantes resultados para a apreciação e avaliação da
provisão de alguns serviços públicos essenciais à população. No Brasil, avaliações
de eficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, justificam-se no
imperativo constitucional, ditado pelo Artigo 37 da Constituição Federal
Brasileira de 1988 que, em seu caput,
torna a avaliação de eficiência obrigatória no setor público. Em adição,
lembramos que, constitucionalmente, de acordo com o Artigo 196 da CF_1988: “A saúde é direito de todos e dever do
Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
De
acordo com o Banco Mundial, o principal objetivo do gasto público, em especial
no que se refere ao investimento econômico e social, é promover o
desenvolvimento humano e socioeconômico, com vistas ao aumento do bem-estar da
população. Análises de eficiência, portanto, se fazem necessárias, e obrigatórias,
já que podem estimar em que medida os recursos empregados em setores públicos,
no Brasil e em outros países, se refletem na melhoria das condições de vida das
populações e no aumento do bem-estar social.
2. O estado da arte
Um
apanhado de trabalhos aplicados ao Brasil com aplicação extensiva de diferentes
técnicas de avaliação de eficiência está no texto de Marinho, Cardoso e Almeida
(2012), “Avaliação de eficiência em sistemas de saúde: Brasil, América Latina,
Caribe e OCDE” (ver http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1784.pdf). A metodologia principal utilizada
baseia-se em fronteiras de eficiência (FE). Essas metodologias vêm sendo amplamente
utilizadas para analisar setores, notadamente o setor público, onde o sistema
de preços não é conhecido, ou não é visível, e a tecnologia de produção não é
definida, como é caso, no Brasil, do Sistema Único de Saúde, do sistema de educação
básica etc.
Resumidamente,
os modelos de fronteira de eficiência são modelos de programação matemática, ou
de econometria, ou de ambas, que visam envolver o conjunto de observações e
gerar uma fronteira de eficiência (conjunto de pontos de máximo desempenho - benchmarking ou best-practice) e identificar como as unidades produtivas
transformam recursos (inputs) em resultados (outputs). A própria Organização Mundial da Saúde (World
Health Organization – WHO, 2000), em um de seus relatórios anuais, já utilizou um
modelo de geração de fronteiras para avaliar a eficiência dos sistemas de saúde
dos países. O Banco Mundial também publicou um livro com essa perspectiva (La Forgia,
Couttolenc, 2009).
Com
dados de quantidades, as FE calculam apenas eficiência técnica (que avalia o nível
de produção) e eficiência de escala (avaliação do tamanho ou escala das
atividades ou instituições). Esses métodos, com dados de quantidades e de
preços, podem calcular também a eficiência alocativa (analisa se os insumos e
produtos estão combinados em conformidade com os seus custos e preços relativos).
Tais
metodologias são particularmente importantes na presença de sistemas que
produzem múltiplos produtos e serviços a partir de múltiplos insumos. Por
exemplo: um hospital é capaz de gerar consultas, exames, internações,
fisioterapia, pesquisa, formação de profissionais de saúde etc a partir do uso
de leitos, médicos, enfermeiros, pessoal de apoio, equipamentos diversos,
medicamentos, recursos financeiros etc. Em casos assim, não seria suficiente a
utilização de indicadores simples ou muito sintéticos, como a relação pacientes/leitos
ou a relação médicos/enfermeiros. Embora esses
indicadores sintéticos sejam úteis para comparar diferentes instituições,
de forma limitada, e para fornecer alguma noção sobre a tecnologia de produção
utilizada, eles não são abrangentes o suficiente para investigar eventuais
desvios entre os quantitativos ótimos e aqueles efetivamente produzidos ou
consumidos de todos os inputs (recursos) e outputs (resultados) relacionados no
processo produtivo. Em uma análise de fronteira aplicada em hospitais seria
possível dizer em que percentual (ou quantidade) cada hospital deveria aumentar
a sua produção de consultas, internações, exames etc, ou qual o percentual (ou
quantidade) em excesso de utilização de leitos, recursos financeiros, pessoal
etc.
São
inúmeros os exemplos de trabalhos utilizando as metodologias de geração de fronteiras
de eficiência no Brasil. Elas vêm sendo aplicadas no SUS (incluindo
instituições privadas vinculadas ao SUS). No campo privado, as aplicações se
dão principalmente no âmbito de planos de saúde. No âmbito do SUS a lista é
bastante extensa e apresenta crescimento exponencial nos últimos anos. São
observados textos para discussão de caráter acadêmicos (working papers); monografias de conclusão de cursos de graduação;
dissertações de mestrado; teses de doutorado; artigos (papers) publicados em periódicos científicos (journals) nacionais e estrangeiros; trabalhos apresentados em
congressos e seminários científicos no Brasil e no exterior. Inclusive já
ocorreram (ou ocorrem) tentativas de adoção de tais métodos em agências
reguladoras como ANS e Anvisa.
As
áreas de conhecimento que se destacam são economia, administração, contabilidade,
engenharia de produção, pesquisa operacional, estatística, saúde pública e saúde
coletiva. São avaliados instituições, programas e ações. Isso acontece nos
níveis municipal, estadual e federal, além de instituições públicas e privadas
(filantrópicas e com fins lucrativos) contratadas pelo SUS.
Entre
as instâncias e instituições de alta frequência de interesse destacam-se os
municípios (nas suas ações gerais em saúde), os hospitais (gerais,
universitários, especializados) e as ações na atenção básica (unidades básicas
de saúde; estratégia de saúde da família etc). Em avaliações de municípios é
usual adotar como inputs os dispêndios
financeiros em saúde (totais ou per capita), os quantitativos de leitos e as
quantidades de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares de
enfermagem etc). Ainda no caso dos municípios é comum a utilização, como
outputs, dos indicadores de mortalidade geral ou infantil, a esperança de vida
ao nascer, e a incidência (casos novos) ou a prevalência (casos existentes) de
diversas morbidades, principalmente das doenças transmissíveis ou crônicas que
sejam passíveis de redução no âmbito das secretarias municipais de saúde (atenção
básica e hospitais).
No
caso de hospitais, como dissemos, os inputs mais utilizados são: leitos,
médicos, enfermeiros, pessoal de apoio, equipamentos diversos, medicamentos,
recursos financeiros etc. Os outputs hospitalares mais frequentemente
registrados são: consultas, exames, internações, formação de profissionais de
saúde, taxas de mortalidade hospitalar (output indesejável) etc. Outros objetos
de estudo são o saneamento, cuidados dentários, acesso a medicamentos,
transplantes de órgãos e tecidos, escolas médicas e as organizações sociais -
OS. Comparações
entre sistemas de saúde de diversos países (incluindo o Brasil) também são
observadas. Os resultados das análises variam muito de acordo com os objetivos,
os métodos e o campo de análise. Mas, no geral, não se deve refutar a
existência de grandes disparidades de eficiência entre regiões, estados,
municípios e até mesmo unidades de saúde. São amplas as oportunidades de melhor
aproveitamento dos recursos disponíveis que, frequentemente (mas nem sempre),
são escassos. É também usual que a eficiência não seja acompanhada de
efetividade ou vice-versa. Isso significa que, nem sempre, as coisas certas são
feitas de modo certo. O gráfico a seguir ilustra esse argumento. Gráfico – Percentual dos equipamentos
disponíveis no SUS e em uso (público e privado) sobre o total de equipamentos
existentes no Brasil entre 2005 e 2013.
Fonte:
Ministério da Saúde - Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde do Brasil
– CNES. Elaboração do autor.
No gráfico anterior, observa-se que, nos
equipamentos existentes, a taxa de utilização é, em média, de 95%, o que
configuraria um uso eficiente, em princípio. Porém, desses equipamentos
disponíveis à população – públicos e privados – apenas 19%, em média, estão
disponíveis no SUS. Ou seja, existe pouca ociosidade nos equipamentos, mas eles
estão pouco disponíveis para a maioria da população brasileira que depende
majoritariamente do SUS, o que sinalizaria baixa efetividade.
3. Dificuldades para a melhoria da eficiência
no SUS
Existem
dificuldades políticas e operacionais consideráveis para a realização de
avaliação de eficiência no SUS. Um exemplo clássico é a submissão do SUS à
divisão federativa nacional que, frequentemente, não tem a menor racionalidade econômica
ou sanitária. Municípios muito pequenos, e sem capacidade gerencial e
financeira, impedem quase completamente a exploração de ganhos de escala
(tamanho) e escopo (variedade) no tratamento de agravos à saúde (doenças e
causas externas, como acidentes, violências etc) cuja frequência não justificam
a instalação de estruturas para o seu atendimento em locais pouco populosos. Esse
problema deságua no paradoxo em que, aproximadamente, a metade dos hospitais públicos
do SUS têm menos de 50 leitos, o que é um tamanho muito menor do que o tamanho
mínimo apontado na literatura que gira em torno de 100 ou 200 leitos.
Outro
problema sério é a desorientação da clientela que, frequentemente, busca
acessar o sistema pelas portas de entrada dos grandes hospitais, o que drena
recursos que poderiam ser aplicados de modo mais eficiente em unidades de atenção
básica. Muitos casos graves (agudos e crônicos) poderiam ser evitados, se a
prevenção fosse a estratégia, não apenas declarada, mas efetiva, de atuação no
SUS. O modelo curativo, embora anatematizado e sabidamente ineficiente, ainda é
o prevalecente.
Ademais,
os pacientes e cidadãos não se sentem responsáveis pelo SUS e não exercem
controle ou pressão efetiva (capazes de atingir e aprimorar seus objetivos)
sobre o funcionamento do sistema. As pessoas se dão por satisfeitas quando são
atendidas sem se preocupar com os custos do atendimento. Isso não ocorre na
compra de bens de mercados privados. De fato, grande parte da população
brasileira não conhece ou acha que não precisa do SUS, o que é um rematado
equívoco. Basta ser atropelado na via pública, e precisar do Samu, ou pensar no
necessário combate coletivo às recorrentes epidemias de dengue, para ver comprovar
que saúde é, em muitos casos, um bem público. Bens públicos são bens não rivais
e não exclusivos. Como não é possível impedir o consumo de quem não paga, eles
não podem ser fornecidos eficientemente por entidades privadas com fins
lucrativos.
Outro
problema muito sério é o sempre alegado subfinanciamento setorial. Os cortes
inesperados e sem critério, ou a insuficiência de recursos, costumam ser
inimigos da eficiência. Isso porque recursos por demais escassos podem levar à
implementação de ações e de unidades pequenas demais, ou incompletas demais
(impedindo a integralidade das ações) para serem minimamente efetivas sendo,
consequentemente, ineficientes por definição.
Por
outro lado, a realização das pesquisas e das avaliações são obstadas pela falta
de microdados (dados no nível das unidades) de interesse: não são facilmente
disponíveis no banco de dados do SUS (Datasus – www.datasus.saude.gov.br) dados
sistemáticos, atualizados, e confiáveis, sobre os serviços prestados e os
recursos utilizados nos hospitais e unidades de atendimento individuais, nem
sobre os programas e ações e nem sobre os pacientes. Reconhecemos que alguns
desses indicadores não são triviais. Mas alguns são imediatamente computáveis,
existem nas experiências de outros países e estão fartamente disponíveis na
literatura. Para ficar em poucos exemplos, seriam imprescindíveis dados individualizados (e “desidentificados”)
dos pacientes por: gravidade, faixa etária, tipo sanguíneo, sexo, raça/cor etc.
E faltam dados individualizados dos
prestadores de serviços: sobre as filas, dispêndios, resultados etc.
Basta
consultar a literatura internacional, ou as páginas na internet de sistemas de
saúde de países desenvolvidos, para ver que esse é um problema grave. Em termos
práticos, pesquisadores com algum grau de independência, sejam eles servidores
públicos ou não, dificilmente dispõem de acesso de dados e de informações sobre
os executores e os receptores finais das ações e dos programas de saúde. Outro
exemplo: é praticamente impossível acompanhar a trajetória de um paciente no
SUS e avaliar as suas entradas e saídas do sistema, com os respectivos estados
de saúde e de bem-estar geral, bem com verificar os tratamentos aos quais ele
foi submetido. Também é comum, nos bancos de dados hospitalares do Datasus,
assinalar como produção a quantidade de internações (ou consultas, ou exames)
realizadas. Mas não se considera se as tais internações, ou consultas, ou
exames, não foram, de fato, reinternações, reconsultas, ou reexames, advindas
de altas precoces (quicker but sicker),
de tratamentos inadequados, ou de retrabalho por perda de validade de exames.
Aqui, cabe ressaltar que dados sobre internações, consultas, exames e recursos
financeiros despendidos são bens intermediários (throughputs) e não seriam propriamente resultados (outcomes). Seriam, tão somente, meios
para chegar aos resultados finais em saúde. Em muitos casos tratam-se mesmo de procedimentos
desnecessários.
As
taxas e coeficientes de mortalidade e de morbidades; e a esperança de vida ao
nascer; que estão disponíveis, sofrem influência de fatores externos ao SUS
(saneamento, violências, educação, renda etc) e não podem ser individualizadas
para as pessoas. Diante de tais restrições
de dados e de informações, fica muito difícil avaliar a resolutividade e a
eficiência do sistema. O resultado que interessa diretamente ao SUS é o estado
de saúde das pessoas. Para isso, repisamos, faltam indicadores que permitam a
realização de avaliações de eficiência abrangentes, e no estado da arte.
Alexandre
Marinho é técnico de planejamento e pesquisa do
Ipea e professor associado da UERJ. alexmarinho1356@gmail.com
Referências
La Forgia, G. M.; Couttolenc, B. F. Hospital performance in Brazil. The search
for excellence. The International Bank for Reconstruction and Development -
The World Bank. Washington,
DC, 2008.
Marinho,
A.; Cardoso, S. S.; Almeida, V. V. Avaliação
de eficiência em sistemas de saúde: Brasil, América Latina, Caribe e OCDE. Texto para discussão. Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea. RJ, 2012. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1784.pdf.
OECD – Organization for Economic Co-operation and Development.
Health care systems: getting more value
for money. OECD Economics Department Policy Notes, n. 2. OECD, 2010.
WHO – World Health Organization. The World Health Report, 2000. Health systems: improving performance.
World Health Organization (WHO). Geneve, Switzerland, 2000.
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