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Reportagem
Avaliando riscos: os números contra a emoção
Por Yurij Castelfranchi
10/02/2007
Medo de voar? Muitos têm. Ao decolar de avião, não é raro sentir uma vibração dúbia, um misto de euforia e inquietude bem diferente de quando entregamos nossa vida aos cuidados de outros meios rápidos de locomoção feitos de metal e plástico, como automóveis, navios ou trens. Em alguns casos, a tensão chega a ser difícil de controlar. Alguns preferem enfrentar dias de ônibus para não ter que passar pelo check-in de um aeroporto. No mundo, os assustados pelo céu são milhões e existe um opulento mercado de fitas, CDs, livros de auto-ajuda, como também ciclos de psicoterapia, dedicados ao problema. Um tranqüilizante mantra, supostamente curativo, que costumamos ministrar aos amigos apavorados (ou repetir para nós mesmos, ao decolar), é mencionar números generosos para suportar a tese de que voar seria imensamente menos perigoso do que viajar de carro. No entanto, raramente o mantra funciona: estatísticas e bons oradores afirmando que ter medo é "irracional" não fazem o medo sumir. Além disso, essa medição de risco costuma parecer tão misteriosa quanto a física que permite que um peso-pesado voe livremente no céu, e tão variável quanto os horóscopos em diferentes jornais. Por quê?

Dirigir ou voar: o que é mais seguro?
É fácil encontrar, pela internet, declarações categóricas que, apesar de embelezadas com pretensiosos números cheios de dígitos, não deixam claro seu embasamento. Algumas, citando a Organização Internacional de Aviação Civil dizem que "o risco de se morrer num acidente de avião é 29 vezes menor do que andar de carro, 10 vezes menor do que trabalhar, 8 vezes menor do que andar a pé". Ou que a probabilidade de acidentes rodoviários é "266 vezes maior que a dos aéreos". Há, ainda, quem calcule que o transporte aéreo registra 90 vezes menos vítimas que o de carro. Outros demostram que (ao menos nos EUA) o avião é 11 vezes mais seguro que o carro, e que uma pessoa, voando todos os dias, teria de esperar, em média, 8,1 mil anos antes de ter um acidente fatal. Para os mais otimistas, a espera média para um acidente mortal seria de 20.000 anos: baseando-se nessa lógica, viver seria mais arriscado do que voar, sendo claro que a primeira atividade é condição crônica, sexualmente transmissível, com êxito invariavelmente fatal, que mata em média em menos de 100 anos. Porém não faltam, apesar disso, especialistas heréticos tentando garantir que, pelo contrário, "viagem aérea tem freqüência de acidente fatal quatro vezes maior que dirigir um carro" (2,4 mortos a cada milhão de horas de "exposição").

Mas então, qual é o sentido desses números? É mais arriscado andar de avião, uma caminhada, bicicleta ou ônibus? Esta é uma pergunta cuja única resposta sensata, de fato, é: "depende". Depende do que queremos medir. E de que valor damos a diferentes opções.

Arriscando cálculos
"Fazer comparações estatísticas sobre riscos… É negócio arriscado", sorri Peter B. Ladkin, professor na Faculdade de Tecnologia da Universidade de Bielefeld, Alemanha "Eu não acho que exista algum tipo de número capaz de expressar os variados aspectos do risco em atividades como estas. Mais do que oferecer um número, os estatísticos sugerem identificar uma coleção de parâmetros". O pesquisador, que escreveu alguns artigos sobre o tema, exemplifica citando as companhias de seguros, que sabem que a idade e a condição do motorista de um veículo são relevantes: ser homem e ser jovem, por exemplo, representam fatores de risco elevados para motoristas de carros. "Quando você entra num carro, faz sentido tentar saber se o motorista (que pode ser você) está sóbrio, se gosta de correr ou fazer racha, e levar isso em conta quando se decide viajar. No entanto, quando pegamos um vôo de uma linha comercial é, em geral, suficiente conhecer o registro de segurança da companhia". De fato, o risco muda bastante em função da companhia área e da região do mundo em que se está voando: as 25 companhias no topo da lista por número de acidentes (1 em 500 mil decolagens) chegam a ter probabilidade de fazer vítimas doze vezes maiores que as 25 no outro extremo (1 em 6 milhões).

Leonard Evans, físico, pesquisador da General Motors por 30 anos, autor de um livro sobre segurança no trânsito concorda. "Dirigir ou voar: há muitos aspectos para se levar em conta". Pequenos aviões privados, explica, têm risco de acidente até 50 vezes mais elevado do que a aviação comercial, assim como alguns motoristas de carro dirigem de forma, de longe, mais segura que outros. Mas o pesquisador não tem dúvidas quanto ao vilão, do ponto de vista da saúde pública: "os passageiros de companhias aéreas viajam com riscos, em geral, extremamente baixos. Em 2002, por exemplo, nos EUA foi zero o número de pessoas mortas em acidentes de aviação comercial, enquanto nas rodovias foram 43 mil. Numerosas vidas seriam poupadas, e muitas famílias não estariam devastadas, se as pessoas se dessem conta que o trânsito é um dos riscos maiores que enfrentam".

Por um lado, então, não há dúvida que acidentes de trânsito, diferentemente dos de avião, são um dos grandes problemas de saúde pública no planeta. De acordo com a Organização Mundial de Saúde, morrem, a cada ano, pelo menos um milhão de pessoas por causa de acidentes de trânsito, muitos milhões ficam feridos e o prejuízo para as finanças públicas é imenso (na União Européia, cerca de € 160 bilhões ). No Brasil, o número de acidentes rodoviários é de arrepiar. De acordo com dados do Ministério da Saúde, são, ao menos, 30 mil vítimas por ano: quase o mesmo número que na União Européia ou nos EUA, mas com um número de carros e de motoristas muito menor (ao redor de 40 milhões). Mas o fato de o carro causar mais vítimas não implica automaticamente que seja menos seguro do que avião, sendo que o tempo que um cidadão comum pode passar num avião é muito menor que o transcorrido ao se locomover por transporte terrestre. Para fazer uma comparação, usualmente se calcula o risco de acidentes fatais por quilômetros percorridos. Assim, o avião aparece facilmente como meio mais seguro: em uma viagem percorre-se trechos que, por terra, poderiam significar horas ou dias de direção. Avaliando o risco deste jeito, nossos pés tornam-se um dos meios de transporte mais arriscados: quanto tempo passado nas ruas, a pé, é necessário para igualar 100 mil quilomêtros percorridos de avião? Usando dados válidos na Europa (onde não há pedestres particularmente ousados), ir de carro implica num risco equivalente a 0,7 fatalidades em 100 milhões de pessoas por quilômetro percorrido. Ao ir a pé o número é 9 vezes maior, enquanto a aviação civil (que empataria com o trem como meio "mais seguro") teria risco 20 vezes menor. Além disso, utilizar quilômetros percorridos para medir riscos pode não fazer muito sentido no caso do avião, pois, dizem alguns especialistas, a probabilidade de acidente depende mais do número de escalas do que da distância (mais de 90% dos acidentes acontecem no final ou no início do vôo).

Por isso, alguns acham que o número a se buscar não é o risco considerando-se o trajeto percorrido e, sim, as vítimas por tempo de exposição. A pergunta seria: há mais chances de acidente fatal passando-se uma hora voando num avião ou uma hora num carro? Neste caso, de acordo com os mesmo dados europeus, ônibus e trem se tornam os meios mais seguros (duas fatalidades por 100 milhões de pessoas por hora de viagem), enquanto que o avião seria 8 vezes mais perigoso, e já não tão mais seguro do que ir de carro ou a pé (que empatam, com 25 fatalidades por 100 milhões de pessoas por hora de viagem).

Em outros países do mundo os números mudam, mas os resultados nem tanto. No Brasil, a média de acidentes aéreos por milhão de decolagens oscila a cada ano, mas fica mais ou menos ao redor de 1, o que coloca o país como mais perigoso para se voar do que América do Norte ou União Européia, mas menos que a média da América Latina e bem menos que África (que tem taxa oito vezes maior). Por outro lado, os acidentes fatais de carro são muito freqüentes, tornando o avião, usando-se qualquer escolha razoável sobre como medir o risco, um meio comparativamente mais seguro do que o carro.

Por que o medo?
No entanto, mesmo sendo em boa medida verdadeiro, o mantra de que "não-devemos-ter-medo-de-avião", não resolve. Por quê? Antropólogos, sociólogos, psicólogos, especialistas em percepção de risco dão respostas diferentes, mas com um elemento em comum: quando lidamos com decisões importantes, números não são tudo. A percepção de risco não é a mesma coisa que seu cálculo matemático. E a aceitabilidade do risco não tem sempre a ver com seu tamanho em termos probabilísticos. Todo fumante sabe que o cigarro tem muito mais chances de matar do que, por exemplo, a doença da vaca louca. Mesmo assim, pode ficar revoltado (e apavorado) em descobrir que existe uma chance em um bilhão de que a carne que come pode levar a uma doença sem cura, que causa uma morte terrível por degeneração do cérebro.

"Os números", explica Dadiv Ropeik (que foi professor de comunicação do risco na Universidade de Harvard), "não são a única maneira, nem a mais importante, de nos decidirmos sobre o que temer". "A percepção do risco", "continua, não tem a ver só com fatos. É também uma questão de emoção. Traumas vivenciados, falta de confiança em pessoas ou empresas, momentos de vida específicos (ter filhos pequenos, por exemplo), escolhas políticas e valores morais, podem modificar nossa avaliação do tamanho de um risco ou de sua aceitabilidade". Riscos que escolhemos correr (como viver numa cidade poluída, dirigir todos os dias para ir ao trabalho) podem ser altos, porém bem aceitos. Riscos menores, mas que dependem da vontade ou de interesses de outras pessoas, ou que são semi-invisíveis (por exemplo, excesso de agrotóxicos nas frutas) podem ser percebidos como mais assustadores ou inaceitáveis moralmente. Riscos que achamos (erroneamente) poder controlar (dirigir nosso carro, por exemplo, ou comer gorduras e colesterol) assustam menos do que situações em que entregamos nossa vida em mãos alheias. Riscos que podem levar a mortes terríveis assustam mais, por mais raros que sejam, do que doenças comuns que matam percentualmente muito mais. Riscos "naturais" inquietam menos que riscos causados "artificialmente". Riscos novos e desconhecidos podem chegar rapidamente ao topo de nossa agenda de preocupações, apesar de serem, às vezes, remotos (como a pneumonia asiática no Brasil). E ainda: riscos pequenos, porém catastróficos (isto é, que matam uma porcentagem minúscula da população mas muitas pessoas ao mesmo tempo), causam muito mais medo e atenção do que riscos "crônicos", que matam em quase toda família, mas ao longo de anos.

No caso do avião, muitos desses fatores podem entrar em jogo na percepção do risco. Muitas de nossas atividades quotidianas podem ser mais perigosas do que voar. Mesmo assim, podemos sentir o vôo como algo assustador: por não conhecer o piloto, por não saber o quanto confiar numa empresa, num aeroporto, por ter horror ao tipo de morte ligada a acidente aéreo, ou por muitas outras causas psicológicas como medo de altura, medo de espaços fechados, constrangimento em ficar muitas horas trancado perto de outras pessoas. Por isso, sugerir aos que são derrotados pela tensão do avião que se preocupem com coisas que têm mais chances de arruinar suas vidas (carros e cigarros, sexo inseguro e vida sedentária) não funciona. Estatísticas nunca foram terapia: melhor seria sugerir a ajuda de um psicólogo, que os ajude a entender o que o avião lhes faz sentir e porquê.