Medo de voar? Muitos têm. Ao decolar de avião, não é
raro sentir uma vibração dúbia, um misto de euforia e inquietude bem
diferente de quando entregamos nossa vida aos cuidados de outros meios
rápidos de locomoção feitos de metal e plástico, como automóveis,
navios ou trens. Em alguns casos, a tensão chega a ser difícil de
controlar. Alguns preferem enfrentar dias de ônibus para não ter que
passar pelo check-in de um aeroporto. No mundo, os assustados
pelo céu são milhões e existe um opulento mercado de fitas, CDs, livros
de auto-ajuda, como também ciclos de psicoterapia, dedicados ao
problema. Um tranqüilizante mantra, supostamente curativo, que
costumamos ministrar aos amigos apavorados (ou repetir para nós mesmos,
ao decolar), é mencionar números generosos para suportar a tese de que
voar seria imensamente menos perigoso do que viajar de carro. No
entanto, raramente o mantra funciona: estatísticas e bons
oradores afirmando que ter medo é "irracional" não fazem o medo sumir.
Além disso, essa medição de risco costuma parecer tão misteriosa quanto
a física que permite que um peso-pesado voe livremente no céu, e tão
variável quanto os horóscopos em diferentes jornais. Por quê?
Dirigir ou voar: o que é mais seguro? É fácil
encontrar, pela internet, declarações categóricas que, apesar de
embelezadas com pretensiosos números cheios de dígitos, não deixam
claro seu embasamento. Algumas, citando a Organização Internacional de
Aviação Civil dizem que "o risco de se morrer num acidente de avião é 29 vezes menor
do que andar de carro, 10 vezes menor do que trabalhar, 8 vezes menor
do que andar a pé". Ou que a probabilidade de acidentes rodoviários é "266 vezes maior que a dos aéreos". Há, ainda, quem calcule que o transporte aéreo registra 90 vezes menos vítimas que o de carro. Outros demostram que (ao menos nos EUA) o avião é 11 vezes mais seguro que o carro, e que uma pessoa, voando todos os dias, teria de esperar, em média, 8,1 mil anos antes de ter um acidente fatal. Para os mais otimistas, a espera média para um acidente mortal seria de 20.000 anos:
baseando-se nessa lógica, viver seria mais arriscado do que voar, sendo
claro que a primeira atividade é condição crônica, sexualmente
transmissível, com êxito invariavelmente fatal, que mata em média em
menos de 100 anos. Porém não faltam, apesar disso, especialistas
heréticos tentando garantir que, pelo contrário, "viagem aérea tem
freqüência de acidente fatal quatro vezes maior que dirigir um carro" (2,4 mortos a cada milhão de horas de "exposição").
Mas então, qual é o sentido desses números? É mais
arriscado andar de avião, uma caminhada, bicicleta ou ônibus? Esta é
uma pergunta cuja única resposta sensata, de fato, é: "depende".
Depende do que queremos medir. E de que valor damos a diferentes
opções.
Arriscando cálculos "Fazer comparações
estatísticas sobre riscos… É negócio arriscado", sorri Peter B. Ladkin,
professor na Faculdade de Tecnologia da Universidade de Bielefeld,
Alemanha "Eu não acho que exista algum tipo de número capaz de
expressar os variados aspectos do risco em atividades como estas. Mais
do que oferecer um número, os estatísticos sugerem identificar uma
coleção de parâmetros". O pesquisador, que escreveu alguns artigos
sobre o tema, exemplifica citando as companhias de seguros, que sabem
que a idade e a condição do motorista de um veículo são relevantes: ser
homem e ser jovem, por exemplo, representam fatores de risco elevados
para motoristas de carros. "Quando você entra num carro, faz sentido
tentar saber se o motorista (que pode ser você) está sóbrio, se gosta
de correr ou fazer racha, e levar isso em conta quando se decide
viajar. No entanto, quando pegamos um vôo de uma linha comercial é, em
geral, suficiente conhecer o registro de segurança da companhia". De
fato, o risco muda bastante em função da companhia área e da região do
mundo em que se está voando: as 25 companhias no topo da lista por
número de acidentes (1 em 500 mil decolagens) chegam a ter
probabilidade de fazer vítimas doze vezes maiores que as 25 no outro
extremo (1 em 6 milhões).
Leonard Evans, físico, pesquisador da General Motors por 30 anos, autor de um livro sobre
segurança no trânsito concorda. "Dirigir ou voar: há muitos aspectos
para se levar em conta". Pequenos aviões privados, explica, têm risco
de acidente até 50 vezes mais elevado do que a aviação comercial, assim
como alguns motoristas de carro dirigem de forma, de longe, mais segura
que outros. Mas o pesquisador não tem dúvidas quanto ao vilão, do ponto
de vista da saúde pública: "os passageiros de companhias aéreas viajam
com riscos, em geral, extremamente baixos. Em 2002, por exemplo, nos
EUA foi zero o número de pessoas mortas em acidentes de aviação
comercial, enquanto nas rodovias foram 43 mil. Numerosas vidas seriam
poupadas, e muitas famílias não estariam devastadas, se as pessoas se
dessem conta que o trânsito é um dos riscos maiores que enfrentam".
Por um lado, então, não há dúvida que acidentes de
trânsito, diferentemente dos de avião, são um dos grandes problemas de
saúde pública no planeta. De acordo com a Organização Mundial de Saúde,
morrem, a cada ano, pelo menos um milhão de pessoas por causa de
acidentes de trânsito, muitos milhões ficam feridos e o prejuízo para
as finanças públicas é imenso (na União Européia, cerca de € 160
bilhões ). No Brasil, o número de acidentes rodoviários é de arrepiar.
De acordo com dados do Ministério da Saúde,
são, ao menos, 30 mil vítimas por ano: quase o mesmo número que na
União Européia ou nos EUA, mas com um número de carros e de motoristas
muito menor (ao redor de 40 milhões). Mas o fato de o carro causar mais
vítimas não implica automaticamente que seja menos seguro do que avião,
sendo que o tempo que um cidadão comum pode passar num avião é muito
menor que o transcorrido ao se locomover por transporte terrestre. Para
fazer uma comparação, usualmente se calcula o risco de acidentes fatais
por quilômetros percorridos. Assim, o avião aparece facilmente
como meio mais seguro: em uma viagem percorre-se trechos que, por
terra, poderiam significar horas ou dias de direção. Avaliando o risco
deste jeito, nossos pés tornam-se um dos meios de transporte mais
arriscados: quanto tempo passado nas ruas, a pé, é necessário para
igualar 100 mil quilomêtros percorridos de avião? Usando dados válidos na Europa
(onde não há pedestres particularmente ousados), ir de carro implica
num risco equivalente a 0,7 fatalidades em 100 milhões de pessoas por
quilômetro percorrido. Ao ir a pé o número é 9 vezes maior, enquanto a
aviação civil (que empataria com o trem como meio "mais seguro") teria
risco 20 vezes menor. Além disso, utilizar quilômetros percorridos para
medir riscos pode não fazer muito sentido no caso do avião, pois, dizem
alguns especialistas, a probabilidade de acidente depende mais do número de escalas do que da distância (mais de 90% dos acidentes acontecem no final ou no início do vôo).
Por isso, alguns acham que o número a se buscar não é o
risco considerando-se o trajeto percorrido e, sim, as vítimas por tempo
de exposição. A pergunta seria: há mais chances de acidente fatal
passando-se uma hora voando num avião ou uma hora num carro? Neste
caso, de acordo com os mesmo dados europeus, ônibus e trem se tornam os
meios mais seguros (duas fatalidades por 100 milhões de pessoas por
hora de viagem), enquanto que o avião seria 8 vezes mais perigoso, e já
não tão mais seguro do que ir de carro ou a pé (que empatam, com 25
fatalidades por 100 milhões de pessoas por hora de viagem).
Em outros países do mundo os números mudam, mas os
resultados nem tanto. No Brasil, a média de acidentes aéreos por milhão
de decolagens oscila a cada ano, mas fica mais ou menos ao redor de 1,
o que coloca o país como mais perigoso para se voar do que América do
Norte ou União Européia, mas menos que a média da América Latina e bem
menos que África (que tem taxa oito vezes maior). Por outro lado, os
acidentes fatais de carro são muito freqüentes, tornando o avião,
usando-se qualquer escolha razoável sobre como medir o risco, um meio
comparativamente mais seguro do que o carro.
Por que o medo?
No entanto, mesmo sendo em boa medida verdadeiro, o mantra
de que "não-devemos-ter-medo-de-avião", não resolve. Por quê?
Antropólogos, sociólogos, psicólogos, especialistas em percepção de
risco dão respostas diferentes, mas com um elemento em comum: quando
lidamos com decisões importantes, números não são tudo. A percepção de
risco não é a mesma coisa que seu cálculo matemático. E a
aceitabilidade do risco não tem sempre a ver com seu tamanho em termos
probabilísticos. Todo fumante sabe que o cigarro tem muito mais chances
de matar do que, por exemplo, a doença da vaca louca. Mesmo assim, pode
ficar revoltado (e apavorado) em descobrir que existe uma chance em um
bilhão de que a carne que come pode levar a uma doença sem cura, que
causa uma morte terrível por degeneração do cérebro.
"Os números", explica Dadiv Ropeik (que foi professor de
comunicação do risco na Universidade de Harvard), "não são a única
maneira, nem a mais importante, de nos decidirmos sobre o que temer".
"A percepção do risco", "continua, não tem a ver só com fatos.
É também uma questão de emoção. Traumas vivenciados, falta de confiança
em pessoas ou empresas, momentos de vida específicos (ter filhos
pequenos, por exemplo), escolhas políticas e valores morais, podem
modificar nossa avaliação do tamanho de um risco ou de sua
aceitabilidade". Riscos que escolhemos correr (como viver numa cidade
poluída, dirigir todos os dias para ir ao trabalho) podem ser altos,
porém bem aceitos. Riscos menores, mas que dependem da vontade ou de
interesses de outras pessoas, ou que são semi-invisíveis (por exemplo,
excesso de agrotóxicos nas frutas) podem ser percebidos como mais
assustadores ou inaceitáveis moralmente. Riscos que achamos
(erroneamente) poder controlar (dirigir nosso carro, por exemplo, ou
comer gorduras e colesterol) assustam menos do que situações em que
entregamos nossa vida em mãos alheias. Riscos que podem levar a mortes
terríveis assustam mais, por mais raros que sejam, do que doenças
comuns que matam percentualmente muito mais. Riscos "naturais"
inquietam menos que riscos causados "artificialmente". Riscos novos e
desconhecidos podem chegar rapidamente ao topo de nossa agenda de
preocupações, apesar de serem, às vezes, remotos (como a pneumonia
asiática no Brasil). E ainda: riscos pequenos, porém catastróficos
(isto é, que matam uma porcentagem minúscula da população mas muitas
pessoas ao mesmo tempo), causam muito mais medo e atenção do que riscos
"crônicos", que matam em quase toda família, mas ao longo de anos.
No caso do avião, muitos desses fatores podem entrar em
jogo na percepção do risco. Muitas de nossas atividades quotidianas
podem ser mais perigosas do que voar. Mesmo assim, podemos sentir o vôo
como algo assustador: por não conhecer o piloto, por não saber o quanto
confiar numa empresa, num aeroporto, por ter horror ao tipo de morte
ligada a acidente aéreo, ou por muitas outras causas psicológicas como
medo de altura, medo de espaços fechados, constrangimento em ficar
muitas horas trancado perto de outras pessoas. Por isso, sugerir aos
que são derrotados pela tensão do avião que se preocupem com coisas que
têm mais chances de arruinar suas vidas (carros e cigarros, sexo
inseguro e vida sedentária) não funciona. Estatísticas nunca foram
terapia: melhor seria sugerir a ajuda de um psicólogo, que os ajude a
entender o que o avião lhes faz sentir e porquê.
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