Uma teoria em constante evolução. Essa possível definição da teoria proposta pelo naturalista inglês Charles Darwin, há 150 anos, nos remete às diferentes interpretações e abordagens que a mesma recebeu desde a sua formulação. À luz de incessantes descobertas e avanços no campo da biologia, como no caso da genética, algumas lacunas foram preenchidas e outras ainda estão em discussão (leia reportagem sobre o tema), ajustando a teoria, inicialmente proposta, com a introdução de outras forças evolutivas, além da seleção natural, como a deriva genética, a migração e a mutação. Hoje, o fato de que o processo evolutivo se dar por meio de modificações dos organismos é amplamente aceito pelos biólogos. “Teorias avançadas para uma época geram polêmicas. Na época da teoria de Darwin, a discussão girava em torno da importância entre os papéis da biologia do próprio organismo e do ambiente no processo evolutivo. O resultado dessa grande polêmica atualmente é que ambos são muito importantes para o desenvolvimento dos organismos e das espécies”, comenta o pesquisador Henrique Krieger, do Departamento de Parasitologia, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP). No entanto, o peso atribuído à seleção natural proposta por Darwin no processo da evolução, que foi por várias vezes questionado, é o principal ponto de dissonância entre as duas principais linhas de pensamento sobre o evolucionismo. “A discussão que temos hoje é sobre o neutralismo e o selecionismo”, define.
Os cientistas evolutivos centram suas discussões e esforços para entender o papel de inúmeros mecanismos no processo de evolução. Um dos mais importantes e controversos assuntos é a respeito da relativa importância da deriva genética e da seleção natural na determinação da mudança evolucionária. A questão chave é se a imensa variedade genética, a qual é observável nas populações de todas as espécies, é resultado da sobrevivência e reprodução (sendo assim considerado neutro), ou se a maioria das substituições genéticas tem importância efetiva, caso em que a seleção natural é a principal força direcionadora.
Para os selecionistas, a variabilidade da grande maioria dos genes presentes em uma população é mantida pela seleção natural e este seria, portanto, o mecanismo mais forte na preservação da variabilidade das espécies. Para os neutralistas, por sua vez, os genes são considerados, em sua grande maioria, neutros. Assim, a variabilidade observada nos seres vivos ocorreria por mutações que surgem ao acaso. Conforme afirmou Philip Hanawalt, pesquisador da Universidade de Stanford (EUA) e pioneiro nos estudos do mecanismo de reparo do DNA, em entrevista à revista Pesquisa Fapesp (março de 2009), “cada célula sofre ao menos entre 10 mil e 50 mil alterações por dia”. A maior parte delas é reparada, mas falhas nesse mecanismo ocorrem e podem levar a mutações.
Os neutralistas não negam a existência de genes que são selecionados, como os selecionistas não negam que existam genes neutros; mas é a proporção entre os genes neutros e os genes selecionados que confere a diferença entre as teorias.
“No meu trabalho sobre evolução de plantas em função da distribuição e especiação, eu tendo, muito mais, a aceitar a teoria de seleção natural para a evolução do que a teoria de neutralismo”, diz a pesquisadora Loreta Brandão de Freitas, do Departamento de Genética, do Instituto de Geociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e responsável pelo Laboratório de Evolução Molecular. Selecionistas interpretam os seus resultados com vista à vantagem do mais apto. Segundo Loreta, a possibilidade de ocupação de novos nichos por plantas, que são seu objeto de estudo, vem de uma bagagem genética pré-existente, resultado de um acúmulo de polimorfismos (formas alternativas das sequências de DNA) neutros no “ótimo” da espécie e que conferem vantagens dentro de um ambiente novo. “Pode-se pensar que as primeiras mutações ficaram somente como polimorfismos da espécie, de forma neutra, e que não foram responsáveis pela especiação”, afirma. “Agora, um polimorfismo que ... faz com ela se estabeleça em novos ambientes e em função dessa diferença ela seja mais apta que a outra, promove o isolamento e faz com que haja especiação”, conclui.
Um exemplo seria o gene de desenvolvimento floral, que determina a cor da flor. Alguma alteração nesse gene faria com que uma planta, que antes atraía um tipo de polinizador, passe a atrair outros. “Em função dessa seleção por um outro polinizador, ela conseguiria estabelecer um novo nicho ecológico, se desenvolveria e viraria uma espécie diferente”, conclui Loreta.
Por outro lado, os neutralistas defendem que, num determinado momento da espécie, a grande maioria dos genes é neutra. Mas isso não quer dizer que, durante toda a história da espécie, funcione dessa forma. Em determinadas épocas, alguns genes podem apresentar uma maior importância para a espécie e a sua frequência gênica é alterada. Para Krieger, “de uma forma geral, as características presentes em uma população foram selecionadas, mas a variabilidade presente em um determinado momento é fruto do acaso”. Um exemplo bastante utilizado para a ilustração da teoria do neutralismo são os gargalos. Em situações desse tipo, a população sobrevivente seria formada ao acaso e dificilmente representaria a população original. Assim, a população que se forma a partir dela será outra somente por obra do acaso, e não da seleção do mais apto.
Para alguns pesquisadores, como o professor Reinaldo Alves de Brito, do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), a disputa entre as duas abordagens não faz mais sentido, uma vez que “houve uma convergência e o neutralismo e o selecionismo conseguem coabitar tranqüilamente a mesma situação”. Segundo Brito, o principal questionamento é se as mudanças ocorrem de forma gradual ou não. “Saímos de uma visão que pensava o processo como sendo eminentemente de seleção natural e gradual, para um processo que incorporou várias outras forças evolutivas e que permite que certas mudanças maiores ocorram também em um intervalo de tempo curto”. Ele trabalha com a identificação de genes que têm expressão diferenciada entre machos e fêmeas e que estariam relacionados com o processo de seleção sexual e, potencialmente, sob efeito de seleção positiva. Tal processo seria tão dinâmico que atuaria como mecanismo de aceleração do processo evolutivo e, em populações separadas fisicamente, levariam ao isolamento reprodutivo e à formação de espécies diferentes. Brito considera, no entanto, que esse tipo de discussão é salutar. “A dissonância de opiniões indica que estamos no caminho certo, que estamos discutindo ciência de fato e que não temos dogmas firmados. E o melhor de tudo: temos emprego para todo mundo”.
Evolucionismo em humanos
Uma questão bastante polêmica e cujas interpretações também variam de acordo com a forma como o evolucionismo é entendido, é a existência ou não de raças entre humanos, do ponto de vista biológico (veja reportagem sobre o ponto de vista das ciências sociais). Francisco Mauro Salzano, professor emérito e colaborador do Departamento de Genética do Instituto de Biociências da UFRGS e especialista em genética humana, acredita que “a raça não é um conceito abstrato, não é uma criação humana, é uma realidade biológica”, uma vez que marcadores genéticos seriam suficientes para determinar a origem geográfica de um indivíduo. Alguns trabalhos que correlacionam a cor da pele e a quantidade de luminosidade em diferentes regiões do mundo apontam que tal relação deve ter sido produto da seleção natural. Para Salzano, “a espécie humana, devido ao desenvolvimento da cultura, apresenta uma situação mais ou menos única no desenvolvimento biológico. Ela modificou diferentes aspectos da seleção natural. Mas isso não quer dizer que não estejamos sujeitos à seleção biológica, mesmo agora”.
Outros pesquisadores, por sua vez, acreditam que a variabilidade que se vê hoje entre os seres humanos, como cor de cabelo, olho e pele, não oferecem uma vantagem adaptativa. De acordo com Krieger, “apesar das diferenças visíveis, os indivíduos são mais iguais do que se imagina”. Ele aponta que, diferentemente de raças de animais, como as caninas, que são muito iguais entre si e bem diferentes umas das outras, a variabilidade entre grupos humanos é tão grande quanto a que existe dentro dos próprios grupos. “A variabilidade entre humanos é muito grande, a ponto de não termos pureza alguma de grupos, que se tornam exemplos de raças, digamos assim, ‘pura'”, conclui.
Apesar da discussão sobre a existência de raças humanas passar pelo campo da biologia, trata-se de um “debate que interessa mais o sociólogo do que ao biólogo”, como enfatiza Krieger. No campo das humanidades, o debate envolve contextos políticos, econômicos que serão decisivos para a formulação ou não de políticas públicas.
Outras influências
Neste ano de comemorações dos 150 anos da publicação do livro A origem das espécies e dos 200 anos de nascimento do seu autor, fala-se muito de Darwin (1809-1882) e usa-se, como sinônimo de evolucionismo, o termo darwinismo. No entanto, é importante lembrar que o estudo sobre a evolução já havia começado antes disso e que outros pesquisadores, cujas ideias continuam influenciando os cientistas de hoje, participavam do processo, como a publicação da obra Philosophie zoologique, do naturalista francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), que completa seu bicentenário neste ano.
Algumas ideias de Lamarck, nas quais até mesmo Darwin se inspirou, também são abordadas em trabalhos recentes sobre a evolução. O chamado neo-lamarckismo considera que a hereditariedade é mais do que a simples passagem de DNA entre os indivíduos e que fatores epigenéticos (que influenciam a expressão gênica sem alterar a sequência do DNA), também são herdados. Exemplos desse mecanismo seriam o câncer familiar e a proteção imunológica obtida por aleitamento ou por meio da placenta. Segundo essa teoria, a herança epigenética seria responsável por uma diversidade mais “suave” do fenótipo (também chamada de soft), além de poder ser alvo da seleção natural.
Para o biólogo Hércules Menezes, docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que trabalha com imunologia em plantas, “alguns conceitos no campo da biologia devem ser revisados”, em decorrência da maior abrangência que alguns termos muito utilizados por pesquisadores evolutivos passaram a ter. Um exemplo seria o termo gene. Citando a geneticista Eva Jablonka, da Universidade de Tel Aviv, segundo essa linha de pensamento, o caráter hereditário não é o gene, e sim está no gene; assim como uma música não é a partitura, mas está contida na mesma. Em ambos os casos, a leitura que é feita (do gene ou da partitura) determinará o resultado, que cada vez poderá ser diferente do anterior.
Assim como a teoria de Darwin foi modificada, a ponto de talvez não poder mais ser assim chamada devido a tantas contribuições posteriores, outros estudos recentes também auxiliam no processo de desenvolvimento do evolucionismo. O próprio Lamarck, que foi por muito tempo rejeitado e até mesmo ridicularizado (um dos exemplos mais citados é a hipótese do crescimento do pescoço da girafa ocasionado pelo uso), vem sendo retomado. Pesquisadores continuam em busca de uma explicação para as lacunas que permanecem abertas na teoria da evolução. Os avanços da genética moderna já têm demonstrado que espécies tão distintas como de aves e peixes se diferenciaram a partir de modificações de genes em comum, e que tal processo pode ocorrer em um período bem pequeno de tempo. “O conceito básico do Darwin, da seleção natural como fator fundamental na evolução das espécies, continua tão vivo hoje quanto na época da publicação do livro dele”, defende Salzano. “Mas com o progresso da ciência, podemos hoje investigar esse processo em níveis inacessíveis ao Darwin”, argumenta, referindo-se à revolução molecular. Pelo que tudo indica, a evolução da teoria não para por aqui.
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