O mito pode ser definido como uma narrativa lendária, pertencente à tradição cultural de uma sociedade, que explica a gênese do universo, o funcionamento da natureza e mesmo a origem de um povo e os seus valores básicos, através do apelo ao sobrenatural, seja ele relativo ao divino ou ao misterioso. Segundo o escritor e historiador romeno Mircea Eliade, o mito desempenha, nas sociedades “primitivas”, a função indispensável de exprimir, enaltecer e codificar a crença religiosa. Assim, o tempo primordial das origens é revivido e a eficiência dos rituais sagrados é garantida, impondo os princípios morais e oferecendo regras práticas para a orientação do homem.
Os eruditos ocidentais do século XX passaram a estudar o mito de uma perspectiva que contrasta sensivelmente com a do século XIX. Ao invés de tratarem o mito da mesma maneira que os seus predecessores, o mito enquanto “fábula”, “invenção”, “ficção”, aceitaram-nos tal qual eram compreendidos pelas sociedades arcaicas. Entre eles, destacam-se os estudos do filósofo e antropólogo Claude Lévi-Strauss. Seus estudos sobre os mitos ameríndios, com base no método estruturalista, e a partir de dados coletados na década de 1930, principalmente, em suas pesquisas de campo no Brasil, resultaram na publicação das Mitológicas, conjunto de quatro livros – Le cru et le cruit (O cru e o cozido, 1964), Du mel aux cendres (Do mel às cinzas, 1967), Du L'origine dês manières de table (A origem das maneiras à mesa, 1968), L'homme nu (O homem nu, 1971). Nessa obra, os mitos indígenas são analisados não como explicações do mundo natural, mas como tentativas de solução de problemas concretos da vida social de um povo.
De acordo com a etnóloga Tânia Stolze Lima, professora associada do Departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, em seu artigo “O pássaro de fogo”, publicado na Revista de Antropologia, o trabalho de Lévi-Strauss nas Mitológicas resultou na alteração das práticas discursivas dos antropólogos quando tratavam do tema. “Esses livros foram palavra de ordem, não porque capazes de proibir isso ou aquilo, mas porque mudaram a realidade, desmontando um saber que até então se tinha. Antes, todos sabiam definir o mito, sabia-se onde situá-lo na etnografia. Agora, nem dizemos mais as mesmas coisas nem temos a antiga segurança; os mitos abandonam os apêndices das etnografias e começam a despontar por toda parte. Principalmente, não sabemos mais o que é um mito”, analisa.
Segundo Mariza Martins Furquim Werneck, professora do Departamento de Antropologia e Estética da PUC-SP, a importância das Mitológicas pode ser comparada à de O capital, de Karl Marx, e à da Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud, por ter trazido modificação profunda à compreensão do ser humano. Ela ressalta que o método de análise do etnólogo, que incorpora procedimentos utilizados na música, na literatura e nas artes plásticas, foram um diferencial e uma contribuição importante para a antropologia. “Para Lévi-Strauss, a arte ajuda a pensar o mito, pois não abre mão da experiência sensível, que sempre foi desprezada pela ciência ocidental”, diz Werneck.
O mito e a história
Os estudiosos anteriores a Lévi-Strauss, e antes da publicação das Mitológicas, não viam o mito como um discurso irracional, feito de histórias inverossímeis. Os mitólogos, em suas análises, procuravam o mito original, em sua forma mais pura e autêntica, ou em sua versão mais completa. “Se, por vezes, o mito soa como uma narrativa desprovida de bom senso, não se pode concluir que ele represente uma história falsa, mas apenas que não pode ser julgado pelo ponto de vista da História”, diz a Stolze.
Lévi-Strauss propôs a determinação de “uma quarta dimensão do espírito”, visando dissolver essa aparência de irracionalidade do mito. Mariza Werneck, da PUC-SP, ressalta que para o estudioso francês, o mito é feito do conjunto de suas versões, e nenhuma delas deve ser excluída. As modificações que o mito sofre – seja no tempo ou no espaço – têm a ver com a sociedade em que ele está inserido.
De acordo com o romeno Mircea Eliade, nas sociedades em que o mito ainda está vivo, como a dos indígenas, distingue-se cuidadosamente os mitos – tidos como “histórias verdadeiras” e extremamente preciosas, por seu caráter sagrado – das fábulas ou contos, que se chama de “histórias falsas”.
Mariza Werneck, por sua vez, explica que a imagem de dissolução que impregna todos os objetos de análise de Lévi-Strauss é o que define a sua ciência como um todo, ou seja, se a estrutura do objeto é permanente, tudo o mais se desconstrói e se transforma: homens, mitos, tempos, cidades, sistemas de parentescos.
A ciência tradicional do mito costuma iniciar seus relatos a partir da narração de um princípio organizador, identificado no momento da eclosão do universo, tempo em que se inaugura o cosmos. O cosmos, por tratar-se de obra divina, é santificado em sua própria origem, e a partir daí, tudo o que é semelhante a ele passa a pertencer também à ordem do sagrado.
Mircea Eliade considera preferível não iniciar o estudo do mito tomando como ponto de partida a mitologia helênica, entre outras, uma vez que a maioria dos mitos gregos foi modificada, articulada e sistematizada por Hesíodo e Homero. Para ele, é preferível começar por estudar o mito nas sociedades arcaicas e tradicionais, porque apesar das modificações sofridas no decorrer dos tempos, os mitos dos “primitivos” ainda refletem um estado primordial e, muitas vezes, ainda estão vivos dentro dessas sociedades, fundamentando e justificando todo o comportamento e toda a atividade do homem.
Werneck conta que Lévi-Strauss demonstrou interesse apenas pontual pela mitologia grega para, em seguida, criar um método em tudo oposto às abordagens canônicas que o antecederam. Seu ponto de partida consiste na certeza de que não há mais lugar para o tempo mítico, na civilização moderna, senão no próprio homem, e que todo mito é uma busca do tempo perdido.
No que diz respeito às sociedades “primitivas”, a contribuição de Lévi-Strauss foi vasta e profunda para o estudo dos mitos ameríndios. Werneck procede a sua análise articulando alguns desses mitos com a oposição levistraussiana entre Natureza e Cultura. E Tânia Stolze, completa: “Rever as relações entre os dois tópicos [Natureza e Cultura] é característica do estruturalismo, propondo que o homem se torna homem na medida em que pertence a uma sociedade, a uma cultura”.
Durante duas décadas, Lévi-Strauss deixou-se penetrar pelos mitos, embriagou-se deles, permitindo que pensassem entre si, à sua revelia. “Ao permitir que os mitos o atravessassem, tentou captá-los em seu movimento, não importando a forma sob a qual eles se apresentam”, conta Werneck.
As ideias de Lévi-Strauss consideram que o universo mítico está sempre em permanente mutação. Assim, a sua estrutura básica permanece, mas o conteúdo da célula já não é o mesmo, e pode variar. Para tanto, propôs a metáfora do caleidoscópio, ou seja, basta um movimento sutil para que a rosácea formada pelos pequenos cacos de vidro colorido se desfaça e dê origem a uma nova configuração.
Werneck argumenta que, mesmo optando definitivamente por apreender o mito em sua cintilância efêmera, fragmentária e cambiante, o que também fica evidente na forma de transcrevê-lo em sua análise, Lévi-Strauss não deixa de construir uma obra de pretensão cosmogônica. “Contudo, a cosmogonia levistraussiana não se inicia com a separação maniqueísta entre luz e trevas, mas com um fenômeno de outra ordem, em que a emergência da linguagem – tida enquanto expressão mais alta de manifestação do espírito humano – permitiu ao universo ganhar significado como um todo”.
Dentro dessa perspectiva, Lévi-Strauss busca um personagem mágico, um demiurgo que opera no sentido contrário ao do modelo grego, que cria o mundo sensível a partir da ideia. Para tanto, cunha o termo “bricoleur”, que descreve um tipo particular de pensamento e simbolismo. Esse pensamento se opõe ao modo “engenheiro” das sociedades modernas e lança mão de ferramentas não-especializadas, entre os povos “primitivos”, para propósitos diversos.
Ele reintegra, no mundo das ideias, a experiência sensível, de forma a reorganizar o mundo e trabalhar sobre uma matéria preexistente. “Sensível à forma fragmentária do mito, juntando cacos e ruínas de sua matéria essencial, o “bricoleur” Lévi-Strauss inicia sua narrativa a partir de um ponto qualquer, um mito de referência, ao qual dá o nome de ‘o desaninhador de pássaros'”, explica Werneck.
A pesquisadora explica que o mito referência, ou seja o desaninhador de pássaros, é um exemplo emblemático e que serve a Lévi-Strauss como fio condutor, pois é a partir dele que o antropólogo percorre o universo mítico como um todo. Werneck finaliza, dizendo que a leitura que Lévi-Strauss faz do pensamento mítico (ou pensamento selvagem) modificou tudo o que anteriormente se pensava a respeito, na medida em que, para Lévi-Strauss, o pensamento mítico opera com uma lógica diferente da nossa, mas em nada inferior a ela.
Para saber mais:
Mito e realidade, de Mircea Eliade. São Paulo: Perspectiva, 1986.
“O pássaro de fogo”, de Tânia Stolze Lima. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 42, n. 1-2, 1999.
Suplício do Papai Noel, de Claude Lévi-Strauss. São Paulo: Cosac Naif, 2008.
“Claude Lévis-Strauss e as anamorfoses do mito”, de Mariza Werneck. Margem, São Paulo, n. 16, p. 51-63, dez. 2002.
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