A Amazônia brasileira é
reconhecida não apenas como a maior reserva de recursos naturais do planeta,
mas também como uma região em constante disputa política, econômica, ambiental
e social. Em particular, o sudeste do Pará (que abrange os municípios de Altamira,
São Félix do Xingu, Marabá e Anapu dentre outros) tem chamado sistematicamente
a atenção pelo rápido avanço na demarcação de unidades de conservação por um
lado, mas por outro, pelos conflitos violentos decorrentes do processo de
ocupação e exploração da terra.
Projetos voltados para essa
porção do Pará, tais como a construção da hidrelétrica de Belo Monte (Rio
Xingu), abertura de novas estradas, pavimentação da BR-163 (Cuiabá-Santarém),
crescimento da criação de gado, entre outros fatores, têm acelerado o processo
de ocupação e movimentado novas fronteiras econômicas. Em decorrência desse
processo de reativação da fronteira, há aceleração da expropriação e exploração
do território, resultando em desmatamento e muita violência (assassinatos,
escravidão, ameaças de morte, expulsões do campo) envolvendo populações
indígenas, agricultores e residentes em Unidades de Conservação (UCs).
Por causa dessa situação a
região ficou conhecida como “terra sem lei”. A violência é reflexo dos
conflitos decorrentes da disputa de interesses, da sobreposição de territórios
destinados a diferentes usos dos recursos, da concentração fundiária e da
precariedade no ordenamento territorial. Além desses fatores, as tensões
sociais tendem a ter um desfecho violento também pela presença insatisfatória
do poder público, principalmente, aquele poder legítimo e não corrompido pelos
grandes interesses econômicos.
De acordo com o Atlas da Questão Agrária Brasileira
elaborado pelo geógrafo Eduardo Girardi (Unesp/Presidente Prudente)1,
os municípios com maior índice de violência contra a pessoa do campo no período
1996-2006 estão localizados no sudeste do Pará. Dentro dessa região,
destacam-se os municípios de São Félix do Xingu e Santana do Araguaia, com os
mais altos índices, seguidos por Cumaru do Norte e Marabá, numa categoria
inferior. Um pouco mais abaixo, no ranking,
estão os municípios de Altamira e Anapu, onde foi assassinada a irmã Dorothy em
2005.
Para tratar desse tema da
violência é fundamental mencionar a grilagem de terras, que se caracteriza pela
apropriação irregular ou ilegal de terras públicas. A privatização ilegal ou
irregular de terras públicas, geralmente a partir de documentos fraudados, está
presente desde a formação da estrutura rural e fundiária brasileira. Ela é
identificada como a origem dos principais conflitos por terra no país. A
privatização irregular da terra ocasiona a privatização dos recursos naturais
dentro da área e possibilita que o “proprietário” (grileiro) tenha acesso a
financiamentos públicos orientados para a exploração da terra (seja pela
plantação, criação de gado ou especulação). O ciclo econômico da grilagem,
caracterizado pelo desrespeito às leis e aos direitos humanos, tende a se
consolidar a medida que o grileiro conquista poder político e se alia a outros
interesses econômicos, além dos agropecuários, tais como exploração mineral e
energética.
Não é por mero acaso que o
estado campeão em grilagem na Amazônia seja também um dos principais focos de
criação de novos estados no Brasil. Os processos de criação de novos municípios
e de novos estados muitas vezes são motivados por agentes envolvidos
diretamente no ciclo econômico da grilagem. Se, por um lado, a criação de um novo
município ou estado significa descentralização administrativa visando cumprir
metas de políticas públicas; por outro lado, pode favorecer as atividades
econômicas de uma minoria que continuará a utilizar as instituições públicas em
função de seus interesses privados.
A lógica da grilagem
envolve uma rede de corrupção atuante no interior de órgãos fundiários (desde a
esfera federal, como o Incra, até os órgãos estaduais, como o Iterpa, na
região), que fraudam documentos em cartórios de imóveis com total conivência de
políticos do legislativo e do executivo, muitas vezes, atendendo aos seus
próprios interesses (lembrando que muitos políticos são também grandes
proprietários ou mesmo grileiros de terras). A grilagem está associada à
exploração madeireira e a agropecuária que faz uso, não raramente, de práticas
de trabalho escravo ou de expulsão de moradores.
Para se ter uma ideia da
dimensão da grilagem no Brasil, um relatório elaborado a pedido do Ipam e do
Ministério do Meio Ambiente por José Benatti e outros autores2,
indicava em 2006 que os grileiros detinham, até aquele momento, aproximadamente
100 milhões de hectares (ou 12% do território nacional), sendo que desses, 30
milhões estavam localizados no estado do Pará.
Segundo a CPI federal
sobre ocupação de terras públicas na região amazônica, dentre as finalidades da
grilagem, estão: (a) parcelar para depois vender as terras para terceiros; (b)
obter financiamentos bancários para projetos agropecuários, oferecendo a terra
grilada como garantia; (c) exploração madeireira ou atividade agropastoril; (d)
dar a terra grilada como pagamento de dívidas previdenciárias e fiscais; (e)
conseguir indenização nas ações desapropriatórias, para fins de reforma agrária
ou de criação de áreas protegidas.
Para proteger o sudeste do
Pará do avanço dos grileiros foram criadas na última década diversas áreas
protegidas (terras indígenas e unidades de conservação ambiental). Dentre elas
destaca-se um grupo de Unidades de Conservação (UCs) que formam o mosaico da
Terra do Meio (nos municípios de Altamira e São Félix do Xingu), que foi criado
com o propósito de restringir o avanço da grilagem e dos criadores de gado e do
desmatamento nas áreas de floresta.
Localização do Mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio (Sudeste do Pará/Brasil). A criação de UCs pressupõe
presença estatal, em decorrência da “federalização” de um território que antes
era administrado pelo estado ou município, e serve de espaço para atuação de
ONGs, auxiliando a formação de uma rede de suporte e apoio às populações
residentes das UCs, o que também contribui para proteger e organizar a população
local. Na medida em que há aumento no raio de alcance das denúncias de ameaças,
isso confere maior visibilidade à situação das populações locais, tirando-as do
anonimato nacional e internacional, o que faz com que o Estado seja pressionado
a atuar na região protegendo os moradores ameaçados.
Entretanto, após uma
relativa trégua nos casos de violência e assassinatos de lideranças sociais na
região, o ano de 2011 voltou a registrar diversos casos, sendo o mais recente o
ocorrido em fins de outubro, com João Chupel Primo. Liderança da Reserva
Extrativista (Resex) Riozinho do Anfrísio, localizada em Altamira (Pará), ele
denunciava a grilagem de terras na região e a extração ilegal de madeira, e foi
assassinado em seu local de trabalho, no município de Itaituba, próximo de
Altamira. João Chupel Primo era também um dos líderes que, ao lado de outro
morador da Resex, Raimundo Belmiro, vinha sendo perseguido por denunciar grupos
que utilizam as vias de acesso pela BR 163 (Cuiabá-Santarém) e BR 230
(Transamazônica) para extrair madeira ilegalmente de dentro do Mosaico de
Unidades de Conservação da Terra do Meio, principalmente a Resex Riozinho do
Anfrísio e Floresta Nacional (Flona) Trairão. Raimundo, que já obteve proteção
policial em outros momentos, passou a ser protegido novamente após a morte de
seu companheiro de luta.
O assassinato ganhou
repercussão internacional e a Fundação Internacional de proteção aos defensores
dos direitos humanos - Front Line Defenders3,
sediada em Bruxelas, escreveu documento solicitando às autoridades brasileiras
que: (1) assegure uma investigação completa para que os responsáveis sejam
julgados de acordo com os padrões internacionais; (2) tome medidas para
garantir a integridade física e psicológica da família da vítima; (3) garanta
que os defensores dos direitos humanos no Brasil sejam capazes de executar suas
atividades, sem medo de represálias e livre de qualquer restrição.
Além de cobrar posturas do
governo brasileiro com relação a esse assassinato, o Front Line Defenders aponta
que as recentes mudanças propostas no Código Florestal poderão acirrar os
conflitos pela terra na medida em que os responsáveis por desmatar no passado
podem receber anistia e ficarem, assim, isentos de procedimentos penais. Nesse
sentido, a revisão do Código Florestal pode aumentar o clima de impunidade para
crimes cometidos contra defensores dos direitos humanos trabalhando em causas
ambientais.
Para que os defensores dos
direitos humanos e defensores da floresta como Raimundo e outros sobreviventes
dos conflitos agrários na Amazônia possam atuar sem sofrer violência é
necessário que o poder público ofereça proteção mais eficiente e que combata
não só os agressores, mas também a situação de instabilidade social na região.
Nesse sentido, a fiscalização do desmatamento dentro de uma Unidade de
Conservação não pode ser responsabilidade dos moradores (embora se espere isso
deles). Como afirma o pesquisador e morador da região Paulo Amorim4,
o papel de fiscalização de forma direta deve estar a cargo dos órgãos federais
(ICMBio e Ibama), porém pouco é feito por esses órgãos de controle. De acordo
com ele, o melhor seria capacitar as lideranças, conselhos de gestão das UCs e
abrir canais de comunicação direta entre as comunidades afetadas e os órgãos de
justiça, imprensa e sociedade civil, pois quanto mais organizados, menos
temerosos e vulneráveis eles ficam.
Finalmente, considera-se
que as políticas para alcançar a estabilidade social e o fim da violência no
campo devem ser orientadas pela melhoria nas condições de vida das populações
locais. As ações voltadas para isso devem ter prioridade na agenda política
daqueles que querem debater o desenvolvimento da região, seja no âmbito dos
grandes projetos econômicos, sendo a hidrelétrica Belo Monte o principal deles,
ou no âmbito dos grandes projetos territoriais, como a divisão do estado do
Pará, com a criação do estado do Carajás e/ou do Tapajós. Se por um lado, um
projeto como Belo Monte pode não resultar em melhorias consideráveis para a
população, de outro, a simples divisão do território do Pará não significa que
ocorrerão melhorias: os novos estados poderão repetir as mesmas práticas
excludentes.
Ricardo de Sampaio
Dagnino é geógrafo, doutorando em demografia pela Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), bolsista do CNPq.
Samira El Saifi é socióloga,
mestre em ciência política, doutoranda em ciências sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), bolsista do CNPq.
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