10/05/2016
“A evolução mais impressionante
em impressão desde que Gutemberg inventou a prensa”. “A nova revolução
industrial”. Assim é descrito, no documentário de Luis Lopez e Clay Tweel
produzido pela Netflix, o impacto causado pelo lançamento de impressoras 3D de uso
pessoal. São comparações justas. Mesmo que a mera existência dessa tecnologia
ainda seja desconhecida por grande parte do mundo, ela já está causando
revoluções em diversas áreas, e a promessa é que sua popularização modifique
completamente nossos padrões de consumo e produção.
A impressão 3D não é novidade.
Desde os anos 1980, arquivos digitais já eram transformados em objetos físicos.
A impressão pode ser feita por extrusão, quando um líquido extrusado, como o
plástico, constrói o objeto gota a gota, ou usando laser para fundir resinas e
metais, técnica chamada de estereolitografia.
As duas principais companhias do
setor, 3D Systems e Stratasys, foram fundadas em 1986 e 1989, respectivamente.
Seus principais clientes são as indústrias aeroespacial, automotiva, médica e
odontológica. Alguns exemplos do que é impresso em 3D por essas indústrias:
aparelhos dentários invisíveis, motores de foguete, próteses, carroceria de
automóvel, implante de crânio e até órgãos humanos.
Essa já é uma área madura e bem
estabelecida. O que aconteceu nos últimos anos e está mudando a dinâmica do
setor foi a revolução (e evolução) das impressoras 3D de mesa, que Print the legend acompanha desde o
início.
Se a última grande revolução aconteceu nos bits, esta acontece nos átomos
Em sua primeira fala no filme,
Bre Pettis, ainda à época da fundação da MakerBot, diz se inspirar na Apple
para fazer com a impressão 3D o que Steve Jobs já havia feito com computadores:
“Me inspiro muito na Apple, porque eles pegaram a tecnologia dos computadores
de grande porte e colocaram em computadores de mesa. E estamos fazendo algo
parecido, estamos pegando a tecnologia de coisas que eram do tamanho de
geladeiras e que ninguém podia comprar e colocando em cima da mesa das
pessoas”.
Ali, ele se referia à revolução
gerada ao trazer uma tecnologia antes restrita a grandes empresas e
especialistas para o público em geral. Fazer o mesmo que máquinas que ocupam
salas inteiras e custam de US$ 80 mil a US$ 500 mil, mas usando aparelhos
portáteis de US$ 1.200.
Mais além, a fala de Bre passa a
soar irônica quando percebemos que as semelhanças com a Apple não estavam
restritas ao plano da popularização da ciência. Mas sigamos a ordem cronológica
dos acontecimentos, tarefa que o documentário facilita ao registrar em uma
linha do tempo cada acontecimento retratado. As datas e gráficos ajudam a
dimensionar a velocidade e o impacto de tudo o que acontece no setor.
Print the legend não é um documentário sobre técnicas e
procedimentos científicos de uma nova tecnologia. É mais um registro do que
qualquer um que trabalhe com ciência já sabe: quando se está criando algo
inovador, o que acontece dentro do laboratório é o menor dos problemas. Assim,
além dos aspectos técnicos, fazem parte da narrativa histórias sobre negócios,
comércio, política, e principalmente o “fator humano”, que é onde tudo se
complica.
Se há um personagem que pode ser
apontado como o protagonista do documentário, este é Bre. É a partir de sua
trajetória e usando suas declarações que a história é contada. Podem ser
destacados alguns “capítulos”, temas principais abordados no filme – que acabam
se interligando, como uma metáfora da vida. Primeiro temos a história básica do
desenvolvimento das impressoras 3D de uso pessoal e conhecemos as pessoas por
trás dessa inovação.
São mostrados os bastidores das
duas primeiras start-ups do mercado,
MakerBot (MB) e FormLabs (FL), ambas criadas por trios de amigos com grande
aptidão em áreas complementares da ciência e pequena (ou nenhuma) experiência
em negócios – as semelhanças, aliás, são outro fio condutor explorado pelo
filme em sua narrativa. Bre Pettis, Zach Hoeken e Adam Mayer fundam a MB em
2009, e Max Lobovsky, David Cranor e Natan Linder a FL, em 2011.
Desde o início os fundadores da
MB pensaram suas funções na empresa da seguinte forma: Adam se concentraria em software, Zach na engenharia e Bre no design e marketing, além de ser o CEO, a
cara da empresa. As máquinas da MB eram inicialmente vendidas em kits “do it
yourself” (faça você mesmo). Projetadas para serem montadas por qualquer pessoa
com conhecimentos técnicos básicos, elas ganharam popularidade entre os “nerds”
de tecnologia e despertaram a atenção da líder do mercado 3D, 3D System (3DS),
que no ano seguinte lança suas próprias impressoras pessoais.
Em um programa de TV da época, em
que Bre debate com a diretora de marketing da 3DS, é fácil perceber quem é o
“cachorro grande” desse embate mercadológico. Mas não demora muito até que a MB
passe de “cachorro pequeno” a “cachorro médio”, com a entrada da FL no mercado
em 2011.
Assim como Bre é colocado como
figura central da MB, Max é retratado como líder da FL. Com isso estabelecido,
conhecemos os pais de ambos. Pelos depoimentos sobre a infância dos dois, pode
ser traçado um paralelo entre Bre e Max, que parecem ter sido criados com as
condições ideais para se tornarem empreendedores em tecnologia.
A FL nasceu no porão da casa que
Max dividia com David. Os dois montaram seu primeiro protótipo e mostraram ao
amigo Natan, que incentivou a criação de uma start-up. As funções de cada um seriam: Max, engenharia; David,
design e marketing; e Natan, negócios.
Diferente da máquina da MB, que
usava a técnica de extrusão, a FL funciona com estereolitografia. “Não fizeram
a impressora 3D que queremos, então resolvemos fazê-la nós mesmos”, explica
David sobre o que motivou a criação da FL.
Amigos, amigos, negócios à parte
Estabelecidas as bases do
mercado, o documentário passa a seus próximos “capítulos”, que tratam dos
dilemas éticos enfrentados pelos pioneiros da impressão 3D pessoal. No início,
as impressoras da MB usavam hardware de código aberto – cujo projeto é
disponibilizado ao público para que todos possam estudar, modificar,
distribuir, fabricar e vender. Um vídeo produzido pela MB explica como funciona
a política usada por eles: “No mundo do código aberto, desenvolvedores dividem
o que sabem sobre o produto com o público. Se a comunidade aprimorar o
trabalho, esse progresso entra em produção. Quando as pessoas dividem dessa
forma, as melhorias ocorrem mais rapidamente”.
Sobre isso, Bre afirma: “Para
concretizar um futuro em que o código aberto é a norma, é preciso apoiar
empresas que o adotem. Porque quero viver nesse futuro em que as pessoas
dividem coisas, esse mundo é um lugar melhor”. Esse ideal parece ser o que
norteia a MB. “Todo mundo veio pra cá, pois existe uma noção de que estamos
inventando o futuro. No início, não era uma empresa, era um movimento, uma
revolução”, conta Matt Griffin, gerente de comunidade da MB.
Voltando à linha do tempo, vemos
que a MB passou de três funcionários em 2009 para 63 em 2011, ano em que
recebeu o investimento de US$ 10 milhões de Brad Feld e Jeff Bezos, presidente
da Amazon. De acordo com Feld, o que os atraiu para investir “é que esses
empreendedores são realmente obcecados pelo produto deles, eles tem paixão”.
Em 2012 a MB se mudou para um
escritório “de verdade”, em um prédio comercial – a antiga sede funcionava em
um antigo depósito de sorvete. Bre define o momento como “subir para a primeira
divisão”. Nesse ponto, já eram 250 funcionários.
O crescimento rápido também
aconteceu com a FL. Em 2012 a empresa lançou uma campanha de arrecadação no
site Kickstarter. A meta era conseguir US$ 100 mil em 30 dias. Quem prometesse
2.699 dólares ganharia uma impressora Form1.
“A gente se perguntava se
venderia a primeira impressora antes do meio-dia. Lançamos a campanha às 8h ou
9h, e vendemos uma em dois minutos. Ao meio dia já tinham sido vendidas umas
100”, lembra Max. Ao final dos 30 dias, esse número já tinha pulado para 2,9
milhões. Em três meses deveriam ser entregues mais de mil impressoras.
As mudanças geradas pela entrada
de investidores são sentidas pelas duas empresas. David lembra do impacto
gerado pelo sucesso da campanha no Kickstarter: “Temos dinheiro, isso é
empolgante, mas o que muita gente em startups
não se dá conta é que quando pessoas te dão dinheiro para começar a empresa,
você tem que devolvê-lo, não é só comprar coisas para o escritório. Tudo fica
muito mais real quando você está sentado em cima de um milhão de dólares de
dinheiro dos outros”.
Bre concorda: “Quando se aceita
um investimento, você tem a responsabilidade de fazer a empresa crescer”. E na
MB isso implicou uma mudança radical. Brad Feld contrata Jenny Lawton como
estrategista-chefe da MB para “profissionalizar” a gestão da empresa. O
primeiro grande sinal dessa mudança veio no final de 2012, quando a MB passou
de código aberto a controle proprietário.
De acordo com Griffin, a
comunidade de código aberto, que até então era a principal apoiadora e
consumidora da MB, se sentiu enganada. “Embora entendessem que a MB quisesse
ganhar uns trocados, eles sentiram que passaram milhares de horas resolvendo
problemas e dividindo com eles, e a pergunta que fica é ‘será que fiz tudo isso
só para beneficiar um grupo seleto de pessoas, quando a missão era transformar
a humanidade?’”.
A decisão de fechar o código não
foi unânime entre os fundadores da empresa e, em seu blog pessoal, Zach chama a
transição para código fechado de “traição suprema”. Ele deixa a MB. Bre se
defende dizendo que “não dá pra viver no mundo da fantasia e ter uma empresa ao
mesmo tempo”. Nesse ponto, parece haver uma mudança na forma como Bre é
retratado. De líder carismático e idealista da revolução 3D, ele passa a ganhar
ares de vilão capitalista inescrupuloso. Enquanto isso, na FL os problemas
também começam a surgir.
A entrega das impressoras está
meses atrasada. O motivo alegado são problemas com o fabricante contratado, mas
Max admite que a campanha de arrecadação fez com que todos deixassem por algum
tempo de focar na tecnologia para produzir vídeos, fotos, dar entrevistas,
atualizar sites e contas em redes sociais etc.
Como se não bastasse a
preocupação com o atraso, soma-se aos problemas da FL um processo por quebra de
patente iniciado pela 3DS. Natan conta que a ação deixou todos na FL surpresos.
“Como eles (a 3DS) podem saber o que estamos fazendo se ainda não entregamos as
máquinas? Só tem o vídeo por aí, ninguém viu o software ainda, não faz
sentido”. Para David, ser processado pela líder do mercado significava que a FL
estava fazendo algo certo.
Os problemas afetam a convivência
na FL, e David deixa a empresa. Na MB, o clima também não é dos melhores. À
medida que a empresa foi crescendo, os funcionários mais antigos – da fase
idealista – foram sendo demitidos. A lista inclui os fundadores da MB e até
mesmo o próprio pai de Bre, que no início era responsável pelo marketing.
“Coisas que foram feitas e
celebradas anteriormente, do dia para a noite, se tornam motivos para demissão
imediata, sem que as pessoas saibam o que está acontecendo” conta Griffin. É
aqui que entra a segunda semelhança de Bre com Steve Jobs.
Bre cita o criador da Apple para
justificar o rumo que a MB tomou. “Ele era um cara muito problemático, como
todos nós. Era um sujeito determinado, como alguns de nós. E disposto a
arriscar tudo para as coisas funcionarem”. No entanto, Osborn, mais um dos
demitidos, tem outra visão: “Bre leu a biografia de Steve Jobs como todo mundo.
Esse livro prestou um desserviço a muitos no setor de tecnologia. Porque deu
permissão para muitos serem cuzões, porque o Steve era”.
Em 2013, com o anúncio de que a
empresa seria incorporada à Stratasys em uma transação de US$ 604 milhões, se
completa a transição capitalista de Bre e da MB. A notícia piora ainda mais a
imagem da MB junto à comunidade que a apoiou inicialmente. “Para quem eles vão
torcer agora? Para o cara que virou uma corporação e vendeu a alma? Agora é
nossa oportunidade, claramente”, analisa Natan, da FL.
Revolução armada
Um grande acerto de Print the legend é abordar os processos
técnicos e científicos que envolvem o desenvolvimento de tecnologias sem
dissociá-los de todos os outros, como as relações pessoais, e as cobranças por
resultados e retorno financeiro – pelo contrário, o filme mostra o quão
interligados eles estão. No entanto, provavelmente o ponto mais importante
levantado pelo documentário seja o questionamento quanto aos dilemas éticos que
surgem com as novas tecnologias, e em que medida as regulações são necessárias.
O grande questionamento ético
sobre as impressoras 3D é trazido à tona quando Cody Wilson, advogado e
designer texano, decide imprimir armas. O vídeo do primeiro teste feito por
Wilson teve mais de 1,3 milhão de visualizações em 24 horas. A publicidade
gerada fez com que fossem criadas as primeiras legislações sobre o que poderia
ser impresso em 3D.
Para o analista de marketing da
MB Brad Kenney, a regulamentação tem dois lados. “O que acontece se as pessoas
se assustarem demais com a tecnologia é que leis muito severas são aprovadas
quanto à fabricação e distribuição do que se considera uma ‘tecnologia
perigosa’”.
Por um lado, é necessário impedir
que uma tecnologia com potencial para mudar o mundo seja usada para fins
bélicos. No entanto, ao restringir os usos que se dá a essa tecnologia, pode-se
estar impedindo o seu avanço. Mas essa é uma questão que o filme deixa em
aberto, assim como o futuro da “nova revolução”.
A ideia que fica ao final de Print the legend pode ser sintetizada
pelo que diz o ex-editor-chefe da revista Wired,
Chris Anderson, ainda no início do filme. “A revolução não está nas
ferramentas. O que faz a diferença é colocar essa tecnologia nas mãos das
pessoas que, se a história servir de exemplo, vão inventar usos melhores,
empolgantes e inovadores dessas ferramentas do que qualquer profissional
poderia. Este é o momento que estamos vivendo”. Print the legend Diretores: Luis Lopez, Clay Tweel Gênero: Documentário Produção: Netflix Ano: 2014 Duração: 1h40min Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=kp9hD_WSaNM
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