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Reportagem
Polêmica das biografias: o privado como interesse público?
Por Juliana Passos
10/02/2014
Após as discussões acaloradas dos últimos meses em torno da polêmica das biografias, o deputado Newton Lima (PT) comemora o despertar de atenção para o debate de seu projeto de lei criado em 2011 e que deve votado nas próximas semanas. Segundo ele, a retomada do assunto pelo grupo Procure Saber o salvou de “arquivamento”, após o deputado Marcos Rogério (PDT) apresentar um recurso com o apoio de 72 deputados para que o PL fosse debatido no plenário. Na prática, segundo explica Lima, esse pedido inviabilizava a votação, ao colocá-lo no fim de uma fila com mais de mil projetos.

O PL 393 do deputado propõe a revisão do artigo 20 do Código Civil criado em 2002. Na atual redação, a divulgação de informações sobre qualquer pessoa só será permitida “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública”. A nova redação proposta muda para “a mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”.

Rogério, por outro lado, defende seu recurso. “Entendemos, porém, que não seria possível, até por imposição do que dispõe a Carta Magna no que diz respeito ao direito que todos têm à intimidade, “absolutizar” o público a ponto de eliminar o privado, que é o que parece que acontecerá se aprovarmos o presente projeto que, a nosso ver, assim o faz sob o frágil argumento de que artistas, esportistas e políticos, porque homens públicos, não podem ter intimidade”, diz.

Em outubro de 2013, o líder da câmara dos deputados, Ronaldo Caiado (DEM), propôs a inclusão de um rito sumário do projeto. Pela proposta, após uma biografia publicada, o biografado ou família – em caso de morte – que se sentir lesado terá um julgamento mais rápido com prazo de três meses para a decisão. Com a inclusão aceita, um acordo entre os líderes de todos os partidos presentes na Câmara coloca o projeto em regime de votação urgente. A pressa do deputado também se deve à declaração do presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, de que o tema é prioridade.

O advogado responsável por representar a Associação Nacional dos Escritores (Anel), Gustavo Binenbojm, na Ação Direta de Inconstitucional (Adin) também atribui a criação da associação de artistas à declaração do presidente do STF. “O tema ganhou muita relevância. Tivemos primeiro uma mobilização econômica dos que sofrem com isso diretamente, depois vieram intelectuais independentes e Ministério da Cultura”, diz. Ele enfatiza que a discussão sobre biografias é algo pontual e que o artigo abrange inúmeras outras situações com as quais o jornalismo convive diariamente.

Na Adin, Binenbojm sustenta que “as figuras públicas, ao adquirirem posição de visibilidade social, têm inseridas suas vidas pessoais e o controle de dados pessoais no curso da historiografia social, expondo-se ao relato histórico e às biografias literárias, dramatúrgicas e audiovisuais”.

Em seu livro Os direitos da personalidade, o professor de direito da Universidade de São Paulo, Carlos Alberto Bittar, expõe a flexibilidade do direito de pessoas públicas, mas afirma que o limite de confidencialidade permanece preservado. “Assim, sobre fatos íntimos, sobre a vida familiar, sobre a reserva no domicílio e na correspondência, não é lícita a comunicação sem consulta ao interessado”, escreve.

Ao avaliar o projeto de Newton Lima, em conjunto com outros dois que tratavam do mesmo tema, o conselheiro Ronaldo Lemos escreveu em parecer de novembro de 2012 ao Conselho de Comunicação Social que defende a inconstitucionalidade dos artigos, mas avalia que não se deva prever em lei uma determinação para a solução de conflitos abstratos de direitos fundamentais.

Desgastados com a imagem de censores – o que motivou o posicionamento dos poderes executivo e legislativo sobre o tema – a associação Procure Saber, integrada por Caetano Veloso, Chico Buarque, Djavan, Milton Nascimento, Gilberto Gil e presidida pela produtora e empresária Paula Lavigne, saiu de cena. Por meio de sua assessoria, Lavigne comunicou que não concederia entrevista para essa reportagem por falta tempo decorrente da organização da turnê "Abraçaço", de Caetano Veloso.

Pouco adiantou Paula Lavigne escrever que não se tratava de censura prévia e dizer que estão propondo a discussão de limites sobre invasão de privacidade, pois a rotulagem de “censores” provocou brigas internas. Em novembro Roberto Carlos deixou o grupo, após receber provocações de Caetano por meio de sua coluna em O Globo, citando que o advogado do cantor da jovem guarda, Antonio Castro, Kakay, queria posar de “Rei”. Kakay chegou a sugerir em nota que o grupo fosse desfeito por excesso de exposição negativa da opinião pública.

Em outra declaração polêmica, Caetano Veloso disse ao jornal O Estado de S. Paulo que nunca fora a favor de censurar biografias, apenas estava ajudando os amigos. "Quando meus amigos queridos se mostraram contra, procurei entender o que eles diziam e explicar um pouco a quem me lesse no O Globo", disse, e em seguida comunicou sua saída do grupo. No mesmo jornal Chico Buarque acusou o jornalista Paulo César Araújo de escrever sobre uma entrevista nunca realizada. Foi rapidamente desmentido, ao ser publicado um vídeo de registro do encontro.

Araújo planeja lançar ainda esse ano um livro sobre os desdobramentos da polêmica biografia não autorizada que escreveu sobre Roberto Carlos, lançada e recolhida logo em seguida, em 2007. “A ideia é que seja publicado até antes da Copa”, disse. O escritor também aguarda o desfecho das votações no STF ou Congresso Nacional para voltar a publicar a biografia. No último domingo (09/01), Roberto Carlos voltou a se pronunciar sobre o tema em coletiva para jornalistas a bordo de um cruzeiro em Búzios (RJ). Ele ressaltou a necessidade de equilíbrio entre liberdade e privacidade e declarou que a comercialização de dados sobre a sua história devem passar por ele.

Público e privado

Em setembro de 2013, cinco meses depois do surgimento da Procure Saber, um manifesto contra os dois artigos do Código Civil foi lançado durante a Bienal do Livro do Rio de Janeiro e assinado por 42 personalidades, a maioria escritores. O texto, lido pelo escritor Ruy Castro, inicia-se com uma definição de biografia e sua contribuição social. “Na segunda metade do século XX, a biografia ganhou outra dimensão: além de relatar os feitos dos grandes nomes, transformou o personagem em testemunha de sua época. A biografia moderna não é só a história de uma pessoa, mas também de uma época, vista através da vida daquela pessoa”, declarou.

Para Sérgio Vilas Boas, autor de Biografismo, tese de doutorado publicada em livro, nenhuma boa biografia de pessoa célebre poderá evitar o privado, pois essas pessoas têm uma obra e não há como se dissociar da vida social.

O historiador Benito Schmidt, no artigo “Construindo biografias... Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos” segue na mesma linha. "Não se pode deixar de mencionar um certo voyerismo, mais ou menos velado, que impele muitos autores a investigar minuciosamente a vida privada dos outros, sobretudo dos personagens destacados, a fim de demolir mitos (transformando-os em ‘gente como a gente’) ou simplesmente para saciar a curiosidade dos leitores”, aponta. Schmidt também lembra da frase do historiador Jacques Le Goff de que "a biografia histórica se articula em torno de certos acontecimentos individuais e coletivos”.

Vilas Boas defende a mudança no Código Civil, mas lembra que isso não significa total transparência nos escritos biográficos. O jornalista defende em sua tese que a subjetividade está presente em qualquer texto e que os autores deveriam ser mais explícitos em demonstrar seu ponto de vista. "Não existe biografia definitiva e não podemos achar que a biografia não autorizada está livre de conflitos de interesses, ainda que a liberdade do biógrafo seja muito maior. As principais fontes desses biógrafos contemporâneos são orais e fontes orais são mutantes. A maneira como as pessoas relatam as coisas depende do grau de relação com o biografado”, argumenta.

Impedido de publicar a biografia de Paulo Leminski, o jornalista e escritor Domingos Pellegrini colocou na internet o texto completo e aguarda a decisão da justiça ou do congresso para publicar o livro por outra editora, já contratada. O vencedor de seis prêmios Jabuti e amigo íntimo de Leminski foi convidado pela viúva e pelas duas filhas do poeta para escrever uma nova biografia, mas como já havia obra publicada por Toninho Vaz e com vasto número de entrevistas, optou por narrar suas próprias lembranças com ele, com quem conviveu por 17 anos. Trechos em que aponta Leminski como egocêntrico e relatos de exageros na bebida desagradaram Alice, Áurea e Estrela Ruiz, que pediram para que fossem revisados por dar muito ênfase na bebida e, na opinião delas, denegrirem a imagem do poeta.

Na visão de Pellegrini, "a privacidade é um valor da democracia, mas ele não pode se sobrepor à verdade dos fatos. Em nome da privacidade, seríamos um país de chapas brancas e pessoas como mitos", disse. Sérgio Vilas Boas concorda, e avalia que todo fato pessoal que contribuiu para a obra do personagem deve ser incluído. "Drummond teve uma amante por 30 anos. Lídia era conhecida pela esposa e pela filha do poeta e foi tema de vários poemas. Seria uma afronta à inteligência do leitor não mencionar isso", exemplificou. Ele reforça que isso, porém, não deve ser confundido com sensacionalismo, como relatar uma traição esporádica ou entrar em grandes detalhes sobre o assunto.

O biógrafo de Leminski aponta que o mesmo mercado que promove ou não artistas e celebridades, também julga a qualidade de uma biografia. Um exemplo recente foi o lançamento de Dirceu – biografia, de Otávio Cabral, editor na revista Veja. Em resenha publicada na revista Piauí o jornalista Mário Sérgio Conti cita inúmeros erros de informação, como a descrição em detalhes de uma viagem ao Haiti que o político não realizou.

O limite entre o que deve ser público ou privado é uma dúvida para todos, inclusive biógrafos. Ironicamente, ao fim de nossa entrevista com Pellegrini para elaboração desta matéria, ele deixa escapar: "mas por que tantas perguntas?". E em seguida pede desculpas.