Todo sistema teórico é, pelo menos, um princípio de classificação,
quando não um princípio de explicação. Por isso, dizia Saussure
que a língua - objeto teórico da linguística - é um todo em
si mesmo e um princípio de classificação.
Desse modo, o objeto da ciência é sempre um objeto da teoria
científica que o cria para nele simular os fenômenos que, tornados
discretos, podem ser descritos, classificados e mesmo previstos,
dependendo do modelo e da metodologia da representação.
Os sistemas classificatórios, as taxonomias, as categorizações têm
uma longa tradição na história do conhecimento e no esforço
humano de representá-lo e de apresentá-lo em sociedade.
A classificação das coisas do mundo e o mundo das coisas
classificadas estabelecem, no transcorrer da história das culturas,
os padrões das mudanças nas nossas capacidades mentais e
tecnológicas de ordenar, desordenar, reordenar fenômenos dos quais
nos aproximamos, ou nos distanciamos, em compreensão e entendimento,
pela maior ou menor consistência lógica interna do modelo de
representação e por sua maior ou menor capacidade de absorver em
descrição e em explicação um número cada vez maior de fenômenos,
com probabilidade muito pequena de que possam surgir casos que
escapem ao alcance e abrangência dessa capacidade.
Como esses casos existem ou existirão, a construção do objeto
teórico da ciência deve prever também a sua falibilidade, isto é,
a sua falseabilidade e, desse modo, estar preparada para a dinâmica
de suas mudanças.
O caso dos manuais de diagnóstico das doenças e de suas
classificações é, nesse sentido, exemplar no que diz respeito a
esse processo, de um lado pelo cansaço das categorias estabelecidas,
de outro, pelo vigor do conhecimento novo que impõe a necessidade de
suas alterações.
Os capítulos neles dedicados aos distúrbios mentais acrescem ainda
essa dinâmica com o fato de que as categorias aí estabelecidas,
muitas vezes por força dos componentes de descritividade dos
sintomas ou dos comportamentos, trazem, no processo de sua
constituição, graus variados de subjetividade e variações
significativas de ordem cultural. Daí as revisões constantes, as
pesquisas sistemáticas e as edições periódicas dessas
classificações, modificadas e atualizadas.
É ao tema da “Classificação dos distúrbios mentais” que está
dedicado este número da ComCiência, buscando apresentar ao
leitor, além dos aspectos epistemológicos da questão, as
implicações políticas, econômicas e culturais de suas aplicações
na regulação da vida das pessoas e no ordenamento dos valores que
regem o seu comportamento em sociedade.
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