10/10/2011
O
professor e pesquisador da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
(PUC Minas) Carlos Roberto Jamil Cury conhece a educação brasileira por dentro.
Além dos estudos no campo do direito à educação e das políticas públicas nessa
área – inclusive numa perspectiva
histórica –, Jamil Cury foi
presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação por
dois mandatos (1996-1998 e 2002
a 2003). Filósofo de formação, também foi professor da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde se aposentou em 1999. Sua
pesquisa mais recente, sobre o antigo Conselho de Educação de 1931, traz à luz
dimensões que ajudam a colocar em perspectiva o projeto do Plano Nacional de
Educação (PNE) para este início de século XXI; afinal, naquela época, a
sociedade brasileira já tinha formulado um plano para recuperar as defasagens
no campo da educação primária, em relação ao Uruguai e à Argentina. Oito décadas
mais tarde, o Brasil novamente se vê frente ao desafio de recuperar a defasagem
da educação ofertada a crianças, adolescentes, jovens e, também, adultos em
relação às demandas da sociedade da informação, na qual o exercício da
cidadania ganha sentidos renovados. A pergunta que se coloca, então, é: em que
medida o novo plano, em tramitação no Congresso Nacional, contém elementos para
orientar as políticas que permitirão que o país, enfim, dê o tão almejado (e
necessário) salto de qualidade no campo da educação?
ComCiência – A
partir de suas pesquisas, o que o senhor poderia nos contar sobre a história
dos planos nacionais de educação no Brasil?
Jamil Cury – O
primeiro Plano Nacional de Educação nasceu de uma consciência que existia no
mundo, no final dos anos 1920, em função da crise do capitalismo, da
necessidade de um planejamento. Essa visão era presente no trabalho do
economista britânico John Maynard Keynes, assim como predominava entre os
seguidores do socialismo. A ideia de planejamento era predominante no Brasil
nos anos 1930, a
ponto da Constituição de 1934 ter determinado que todos os ministérios tivessem
uma assessoria técnica. Esse é um vetor importante. O outro vetor é que o
Brasil se comparava muito com a Argentina e o Uruguai, que ao final do século
XIX já tinham a população em idade escolar na escola, nos quatro primeiros anos
de educação primária. Isso fazia com que o Brasil se sentisse inferiorizado, ao
mesmo tempo em que havia uma percepção de falta de empenho das autoridades para
ampliar a escolaridade da população. Com a criação do Conselho de 1931, houve o
encontro de duas propostas. De um lado, havia a percepção de que a nossa
educação não alcançaria o nível da educação do Uruguai e da Argentina se não
houvesse um planejamento que levasse o Brasil a correr contra o tempo. De
outro, acreditava-se que o planejamento só faria sentido se houvesse
financiamento; um financiamento que fosse objeto de um planejamento racional. Essa
ideia ganhou força e a criação de um plano nacional de educação foi aprovada na
Constituição de 1934. Segundo a lei, caberia ao Conselho elaborar o plano. Para
isso, foram enviados questionários às instituições de ensino superior, igrejas,
forças armadas, colégios militares, enfim, o questionário foi distribuído em
todo o país. Disso resultou então um pré-projeto que foi retrabalhado pelo
Conselho Nacional de Educação, enviado ao Parlamento pelo ministro Gustavo
Capanema e por Getúlio Vargas, no final de 1936. Foi um processo de consulta
pública inédito para a época e que, de alguma forma, se aproxima do que ocorreu
com os planos de 2001 e o projeto que está hoje na Câmara. Em 1937, o projeto
foi discutido na Câmara dos Deputados e enviado ao Senado. Quando houve o golpe
de Estado de 10 de novembro de 1937 (que deu origem ao Estado Novo), o nosso
primeiro plano de educação foi abortado. Após o Estado Novo, em 1946,
retomou-se a ideia de planos nacionais de educação, e uma proposta foi inserida
na Lei de Diretrizes e Bases de 1961. Naquela
época, foi atribuída ao Conselho Federal de Educação a responsabilidade de
elaborar o plano. O relator foi Anísio Teixeira,
que fez três planos: um para a educação primária, outro para a secundária e um
terceiro para a educação superior. Os planos foram aprovados, começaram a
entrar em funcionamento, mas então veio o golpe
militar de 31 de março de 1964.
ComCiência – A
partir de sua experiência como pesquisador e ex-integrante do Conselho Nacional
de Educação, em que medida o plano que está no Congresso difere ou se aproxima
das iniciativas das décadas de 1930 e 1960?
Jamil Cury – A ideia
de participação está na base da Constituição de 1988. Nessa medida, esse plano
que está no Congresso contou com uma participação federativa muito bem
construída, envolvendo estados e municípios. Foi uma participação ampliada,
baseada num pressuposto inédito no Brasil, a Emenda
Constitucional 59. O Brasil, desde 1834, tem uma duplicidade de
sistemas, o sistema federal (antes chamado de sistema imperial), e o sistema
estadual. À União sempre foi atribuída uma função supletiva em relação ao que
chamamos hoje de educação básica e uma função ativa no que chamamos de educação
superior. Com isso, a União sempre entrou como “regra três” no âmbito da
educação dos estados e nunca teve um papel proativo na educação básica. Com a Emenda
59, a
União saiu do papel supletivo, assumindo uma posição mais ativa, o que permite
que ela tenha um papel mais ativo em assuntos em que hoje desempenha um papel
secundário, como o financiamento. Isso pode favorecer o sucesso do plano. Se
isso vier de fato a acontecer, a União deverá aplicar mais recursos na educação
básica. Mas é preciso duas coisas: melhorar o entrelaçamento, a chamada
colaboração recíproca, entre os sistemas de ensino estadual, municipal e
federal, e ampliar o recursos para a educação. Com isso, o plano pode dar
certo. Entretanto, o texto do projeto apresenta discrepâncias entre suas partes
(exposição de motivos, corpo da lei e anexos) que podem comprometer o sucesso
do PNE. Na exposição de motivos, a lei é incisiva no sentido de atribuir à
União um papel mais ativo, abandonando a função supletiva. Isso é perceptível
inclusive pelos verbos que preponderam: “dever”, por exemplo. Mas nos anexos,
onde estão descritas as metas e estratégias, há uma espécie de catatonia:
“promover”, “animar”, “fomentar”. Essa discrepância coloca em risco justamente
um aspecto fundamental para o sucesso do PNE: a participação mais ativa da
União, inclusive como financiadora, numa perspectiva de vinculação dos esforços
e das políticas entre União, estados e municípios.
ComCiência – Seu
argumento induz à conclusão de que o montante previsto para financiamento da
educação no projeto – 7% do Produto Interno Bruto (PIB) – é insuficiente. É
isso mesmo? Qual a sua opinião?
Jamil Cury – A
administração da educação melhorou muito desde o final dos anos 1990, quando o
Fundo de Valorização do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério
(Fundef) foi criado e foi aprimorado com o Fundo de Valorização da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Mas há muito a
melhorar, há muitos buracos. De qualquer modo, basta uma análise das metas e
estratégias previstas no PNE – educação integral, abertura de creches, merendas
para todos –, para se perceber que os 7%, embora representem um ganho, serão
insuficientes.Os cálculos que algumas entidades vêm apresentando giram em torno
de 10% do PIB.
ComCiência – Mas um
país como o Brasil precisa de um plano para a educação? Os sistemas de ensino,
as escolas precisam de um plano para definir políticas e ações?
Jamil Cury – Essa é
uma pergunta crucial. Se olharmos para a herança desde a libertação da
escravatura, eu digo que sim. A nossa herança em relação ao ensino fundamental é
muito pesada. Além disso, com a transformação dos municípios em entes
federados, com a Constituição de 1988, eles passaram a carregar um peso enorme
na área da educação, pois começaram a assumir redes de ensino – um compromisso
para o qual eles não foram preparados. Então, há necessidade sim, pois a grande
maioria dos municípios, especialmente os menores, não tem recursos suficientes
para sustentar suas redes.
ComCiência – O
projeto do PNE, tal como foi formulado, apresenta interfaces com a realidade
das escolas, dos professores e com as necessidades dos alunos?
Jamil Cury – O plano
anterior tinha algumas coisas interessantes que faltam nesse, por exemplo, uma
explicitação de diretrizes e objetivos baseada num diagnóstico, que definia o
ponto de partida. O projeto atual pressupõe que já se conhece o ponto de
partida. Mas um plano, por natureza, exige uma radiografia muito boa. A meu
ver, essa é uma falha imperdoável, pois o diagnóstico é que define onde nos
situamos, quais são as lacunas, os problemas a serem enfrentados.
ComCiência – Em que
medida esse tipo de falha influi na solução de problemas históricos da educação
brasileira, como o baixo nível de aprendizagem dos alunos, a formação e a
valorização dos professores?
Jamil Cury – Em
educação, no âmbito do direito à educação, não se pode abrir mão da relação
ensino-aprendizagem. Isso é um foco da escola desde a Revolução Francesa,
associado ao foco da cidadania. São os dois grandes eixos da escola, a
transmissão dos conhecimentos e a formação de valores. O grande mediador nesse
processo é o professor. Por isso, insisto na exposição de motivos do projeto de
lei. Parece que a União vai entrar muito bem nessa área, mas quando chegamos
aos anexos, a linguagem se torna excessivamente genérica. Não se obtém qualidade
por osmose. O professor é o mediador mais significativo e precisa ser tratado
como tal. Entretanto, hoje, a dignidade do professor está fraturada pelos
baixos salários, pela baixa atratividade da carreira, pela violência em sala de
aula e no entorno das escolas. A radiografia mostra que temos licenciados em
profusão, mas temos docentes em falta, porque a carreira não é atrativa. Quando
a pessoa consegue uma coisa melhor, muda de profissão. Ou adoece. Mas nas metas
e estratégias do projeto de PNE, a formação de professores, carreira, salários
ficou de novo num plano secundário, com a União desempenhando um papel
secundário, de suplementação. O país precisa desempenhar um papel mais
incisivo, pois sua função é estratégica para a recuperação da educação básica.
É preciso recuperar a dignidade do status
do professor.
ComCiência – E com
relação à educação superior? Uma das críticas é que o projeto acaba favorecendo
o ensino privado em detrimento do público. O senhor concorda com essa visão?
Jamil
Cury – Essa percepção é
verdadeira apenas em parte.
As políticas atuais da educação básica se baseiam na
gratuidade, no direito subjetivo. O ensino superior não é um direito subjetivo.
Ou seja, a pessoa tem o direito de prestar um concurso para entrar, mas não tem
a garantia da vaga. Dada a urgência de a União recuperar o espaço da oferta
pública, dado o caminho indireto de expansão propiciado via Programa
Universidade para Todos (ProUni) e dada a necessidade de crescer mais, a União
se vê sob grande pressão. Como, por lei, a União tem uma função ativa no ensino
superior – e diante dos encargos que se aproximam na educação básica –, é óbvio
que o PNE iria expressar esse retraimento ou, na melhor das hipóteses, a
manutenção do status quo. Uma questão
que deveria ser mais explícita é a regulação do ensino superior privado. O
plano está aquém das nossas necessidades nessa dimensão. Não se trata de
demonizar nem de romantizar o ensino privado. Mas é fundamental o
estabelecimento de uma regulação com consequências para as instituições.
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