A garantia de acesso universal e integral à
saúde foi um passo enorme na direção da construção de uma cidadania plena para
os brasileiros. Antes da implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), o que
tínhamos no Brasil era uma colcha de retalhos formada pela assistência aos
beneficiários do INPS, serviços organizados pelas diversas categorias
profissionais, serviços privados e serviços filantrópicos. Havia um número
muito grande de brasileiros que não tinha nenhum atendimento médico assegurado
e eram atendidos como indigentes nos hospitais filantrópicos e conveniados com
a Previdência Social. Em 1986, o movimento conhecido como “Reforma Sanitária”
culminou, na 8ª Conferência Nacional de Saúde, com a proposta de criação de um
sistema nacional de saúde, que se consolidou na Constituição de 1988 e na
criação do SUS.
A necessária garantia do Estado ao direito à
saúde é reconhecida mundialmente. Reino Unido, Canadá, Espanha, França, Itália,
Áustria, Japão, para citar alguns, oferecem aos seus cidadãos acesso integral à
saúde. A grande exceção entre as maiores economias do mundo são os Estados
Unidos, cujo sistema de saúde é baseado no seguro privado e que é,
reconhecidamente, um dos sistemas mais caros e menos eficientes do mundo. A
mais recente tentativa de aumentar a cobertura do sistema, o Affordable Care
Act, conhecido por “Obamacare”, conseguiu incluir cerca de 9,5 milhões de
americanos, deixando ainda descobertos cerca de 48 milhões de cidadãos, não contados
aqui os cerca de 12 milhões de imigrantes não documentados, que formam parte
significativa da força de trabalho daquele país.
Quando falamos em acesso universal, integral e
equânime à saúde, não falamos apenas em assistência médica, a porção mais visível
do sistema. Estamos falando de tudo que envolve esse conceito, definido não
apenas como a ausência de doença, mas como um estado de bem-estar físico,
mental e social, como proposto pela Organização Mundial da Saúde. E eu
acrescentaria ainda o bem-estar espiritual, dimensão também constitutiva do ser
humano. Assim, são obrigações do Estado também, entre outras, o saneamento
básico, vacinação, controle de epidemias e endemias, vigilância sanitária,
controle e, eventualmente, produção de medicamentos essenciais, fiscalização
sobre o uso de agrotóxicos e pesticidas, produção e consumo de alimentos
transgênicos, cuidados éticos com as pesquisas envolvendo seres humanos e
animais. Tudo isso é parte do Sistema Único de Saúde. E o Brasil tem tido
enormes sucessos nessas atividades sempre esquecidas quando falamos do SUS. Para
citar dois exemplos dessas ações pouco visíveis do sistema, tivemos um sucesso
enorme na erradicação da poliomielite e do sarampo, através de bem-sucedidas
campanhas de vacinação, apesar da dificuldade logística de manutenção das
vacinas que devem ser refrigeradas e da aplicação em áreas de baixa densidade
populacional e da necessidade da manutenção permanente de altos níveis de
cobertura vacinal. Nossa vigilância sanitária foi importante para que
atingíssemos um alto nível de qualidade na produção agropecuária, o que nos
tornou o terceiro maior país produtor e exportador desses produtos no mundo.
A face mais visível e mais criticada do SUS é
a assistência médica. Todos os dias, vemos reportagens sobre as filas para
atendimento, demora na marcação de consultas e cirurgias, pessoas que morrem
esperando por uma vaga. Mas mesmo na assistência médica, o SUS tem conseguido
avanços e vitórias. O programa de controle do HIV/Aids do Brasil é modelo para
todo o mundo e foi capaz de evitar uma potencial catástrofe, que se desenhava
no início dos anos 1990. O programa da Farmácia Popular entrega milhões de
doses de medicamentos essenciais para o tratamento de diabetes, hipertensão e
asma. Medicamentos de alto custo estão acessíveis para milhares de pessoas em
todo o país. Tratamentos de alto custo, como hemodiálise, transplantes,
cirurgia cardíaca, quimio e radioterapia para pacientes com câncer, são
oferecidos diariamente a milhares de brasileiros. Aliás, esses tratamentos de
alto custo são frequentemente feitos no SUS por portadores de seguros de saúde,
já que muitos planos cobrem apenas consultas, exames laboratoriais e
tratamentos de baixo custo.
O maior problema do SUS, porém, é o próprio
Estado que assume o dever de garantir a saúde. Desde sua criação, o SUS vem
sendo subtraído do necessário financiamento para que um programa tão essencial
e ambicioso possa se implantar de forma adequada e definitiva. A Constituição
de 1988 indicava que 30% da contribuição da seguridade social deveria ir para a
saúde, o que nunca foi cumprido. Parte dos fundos gerados pela famigerada CPMF
foram desviados para outras finalidades que não o SUS (principalmente pagamento
das dívidas interna e externa) e o orçamento federal para a saúde à época foi
diminuído, fazendo com que a CPMF acabasse se tornando uma fonte substitutiva e
não um acréscimo no orçamento. O Estado brasileiro oferece subsídios e
financiamento para seguradoras e hospitais privados, dinheiro que poderia ser
investido no aprimoramento do sistema. O Ministério da Saúde tem hoje menos de
50% do que teria se as determinações da Constituição de 1988 tivessem sido
cumpridas. A PEC 241, proposta pelo governo Temer, que prevê o congelamento dos
gastos, se aprovada, representará uma perda de mais de R$ 4 bilhões para o SUS
já em 2017 (dados do Conselho Nacional de Saúde, órgão do Ministério da Saúde).
Esse crônico subfinanciamento do sistema pelo
próprio Estado, que teria o dever de garanti-lo, aponta na direção da
construção de um outro modelo de sistema de saúde, fortemente baseado no setor
privado, que desrespeita o princípio ético básico de que saúde é um direito
fundamental.
Assim, voltamos ao início deste texto:
garantir o acesso universal, integral e com equidade à saúde é um imperativo
ético, se acreditamos que saúde é um direito fundamental das pessoas. No
Brasil, a forma escolhida pelos cidadãos, expressa na Constituição, de
assegurar esse direito é a sua garantia pelo Estado. Vivemos, porém, uma época
em que imperativos éticos não têm guiado os poderes constitucionais. É preciso
cobrar o Estado para que cumpra este preceito e não permitir que a aparente
fragilidade do SUS faça o governo cogitar propostas como a dos “planos
populares de saúde”, que apenas beneficiam os empresários da saúde suplementar.
Se receber o financiamento adequado, o SUS
poderá também oferecer uma assistência médica à altura do que o cidadão merece,
comparável à dos outros setores em que o sistema já demonstrou sua capacidade e
excelência.
Flávio César
de Sá é graduado em medicina pela Unicamp (1980). Fez residência médica em
infectologia (1983), doutorado em saúde coletiva pela Unicamp (1996) e
pós-doutorado na área de bioética clínica na Universidade Cornell, Nova York,
EUA (2013/14). É professor doutor da Unicamp na Faculdade de Ciências Médicas,
Departamento de Saúde Coletiva, onde coordena a Área de Ética e Saúde.