Presenciamos nos últimos tempos a proliferação de extensos debates a respeito de temas que envolvem a saúde humana e o meio ambiente. Nesse contexto, diferentes atores sociais formularam agendas de atuação em torno de abordagens discordantes sobre a biossegurança, o que gerou inúmeras controvérsias a respeito do assunto. Considerando que devem ser tratadas como parte da família das controvérsias tecnocientíficas, impõe-se, portanto, definir primeiro o que são controvérsias, o que é biossegurança e o que é tecnociência.
As controvérsias pressupõem a relação entre duas pessoas, ao menos, que empregam a linguagem e se dirigem uma à outra, confrontando opiniões, argumentos, teorias etc. São discordâncias que envolvem atitudes e preferências opostas, bem como desacordos sobre os métodos vigentes para solucionar os problemas. Na maioria das vezes não há solução para as contendas; resta apenas inclinar a “balança da razão” a favor de um dos lados. O resultado é seu prolongamento e recorrência. (Dascal, 1994; Paese, 2007).
Conforme o Protocolo de Cartagena, a biossegurança envolve a “proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguro dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana”1. Pode-se defini-la também como o “ conjunto de medidas voltadas para prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às atividades de pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, que podem comprometer a saúde do homem, dos animais, do meio ambiente ou a qualidade dos trabalhos desenvolvidos”2. Em síntese, a biossegurança é um conjunto de iniciativas que buscam minimizar os riscos causados pela intervenção da ciência e da tecnologia nas áreas da saúde humana e do meio ambiente.
A tecnociência, por sua vez, refere-se às interações emergentes resultantes da combinação da ciência com a tecnologia. Embora sejam processos distintos, o desenvolvimento científico e tecnológico no contexto da economia capitalista ensejou o crescente aprofundamento da fusão entre a busca de entendimento da natureza e a solução de problemas.
A conexão entre esses três conjuntos de eventos é uma das características definidoras de nossa época. Se o avanço da ciência e da tecnologia sobre as diversas estruturas da vida é uma realidade, estão marcadas também por uma crescente politização. Dessa combinação derivam controvérsias. E qual é a razão, então, para se formular tais discursos polêmicos? Em outras palavras, por que existem controvérsias na área de biossegurança? Dentre suas várias causas, algumas podem ser identificadas:
- A incompletude inerente a todo conhecimento. Significa que o saber cresce sempre, amplia-se de modo incontrolável, imprevisível e sem destino determinado. Há sempre algo por conhecer, por descobrir. O que tomamos hoje como verdade, amanhã pode não valer mais Quando isso estava circunscrito aos laboratórios dos pesquisadores, as discussões travadas entre os cientistas não despertavam maiores reações da sociedade. No momento em que se deslocaram para a esfera pública pela ação de indivíduos e organizações, observou-se uma profunda alteração na amplitude e nos termos do debate;
- Some-se a isso o fato de que mais e mais áreas da vida humana e do meio ambiente são modificadas pelo avanço científico e tecnológico;
- Observa-se, também, uma progressiva modificação na postura da sociedade a respeito da ciência e da tecnologia. Propaga-se um entendimento difuso de que são saberes portadores de riscos e não apenas de benefícios e de progresso.
Em outras palavras, se o conhecimento é incompleto, ou seja, o que o especialista garante hoje pode deixar de ser garantido amanhã devido a novas descobertas; se mais e mais nossa vida é influenciada e dependente dos achados científicos e tecnológicos; e se passamos a entender que esse tipo de conhecimento pode significar riscos, é muito provável que surjam discordâncias profundas entre os indivíduos a respeito do enfretamento dos problemas. Ocorre, principalmente, quando estão em jogo questões tão sensíveis como a “saúde do homem, dos animais” e o meio ambiente, enfim, o que envolve diretamente a biossegurança. No caso, a probabilidade de envolvimento do público é alta. Quando o problema se desenvolve sobre tais bases geram-se condições fundamentais para que essa controvérsia se estabeleça.
O fato é que a vida foi politizada, seja ela humana ou não-humana. Diferentes indivíduos e organizações passaram a atuar na cena política, tendo em vista a alegação de preservar e conservar a vida em nosso planeta para as atuais e as futuras gerações. Seus posicionamentos nos debates públicos se fundamentavam em algumas evidências que poderiam indicar prejuízos à saúde e ao meio ambiente, ocasionados por eventos como acidentes em usinas nucleares, transgênicos ou mal da vaca louca (encefalopatia espongiforme bovina). Inúmeros atores como ONGs, partidos ou movimentos sociais passaram a se aliar em um enfrentamento contra empresas, think tanks empresariais ou mesmo governos. Entre os objetivos da ação estava a formulação de uma legislação que permitisse regular a manipulação da vida em suas várias formas, com a meta de controlá-la e aumentar sua segurança.
Que a ciência sempre foi marcada por controvérsias sua história deixa bem claro. O caráter conjectural dos enunciados, aliás, é um de seus componentes estruturais específicos. Como afirma Karl Popper, a trilha da ciência é restritiva. Participa do jogo científico tão somente quem se disponha a expor suas ideias à eventualidade da refutação. Os demais estão fora. As verdades eternas não lhe pertencem. Muitas vezes cabe ao cientista contentar-se com o que é efêmero, não mais do que isso.
Ora, tal realidade transportada para fora das paredes do laboratório teve como consequência inevitável aguçar a percepção do público quanto aos limites da ciência e da tecnologia. Todas as intervenções científicas e tecnológicas que passaram a envolver temáticas relacionadas à vida humana e ao meio ambiente, tornaram-se alvo de acirradas polêmicas. Estabeleceram-se clivagens, com apoiadores e opositores se posicionando em relação a inovações em áreas como as ciências da vida. (Guivant, 2002). Ambas as posições, é preciso enfatizar, foram assumidas com o apoio de cientistas e técnicos, característico, diga-se, das controvérsias na biossegurança. Dada a especificidade da ciência, como vimos acima, é algo previsível, esperado.
A controvérsia que envolveu o processo de aprovação e regulamentação da lei de biossegurança no Brasil foi exemplar nesse aspecto. Um dos eixos do conflito articulava dois posicionamentos opostos que contavam com respaldo científico e técnico, assim enunciados:
- O atual estágio do conhecimento permite afirmar que, em vista da probabilidade de risco, não se deve retardar a autorização para comercializar transgênicos;
- O atual estágio do conhecimento permite afirmar que, em vista da probabilidade de risco, deve-se postergar a autorização para comercializar transgênicos. (Paese, 2007).
Isso denota a forte conexão entre a trajetória do saber científico e técnico e o desenvolvimento da vida. Sua progressiva dependência da tecnociência, em que saúde humana, meio ambiente, ciência e tecnologia se entrelaçam, cria uma situação paradoxal. Por ser área de máxima sensibilidade, a vida requer o que há de mais seguro para tratá-la; no caso, o conhecimento científico e tecnológico. Ao mesmo tempo, trata-se de um saber conjectural, provisório; instala-se a dúvida, portanto, sobre quão segura está a vida nas mãos de cientistas e técnicos.
Esse necessário entrelaçamento entre vida e saber perito torna-se, assim, uma razão forte para o desencadear das controvérsias na biossegurança. Dada a crescente dificuldade de contornar o entrelaçar dos fatores, o surgimento de tais discursos polêmicos tende a ser uma constante no horizonte de eventos sociais e políticos de nossa era.
As controvérsias na biossegurança tornaram-se, em certa medida, nosso modo de enfrentar uma tensão fundamental em nosso tempo. Ela emerge da dissonância entre o anseio da vida à perenidade e sua crescente dependência daquilo que não pode oferecer mais do que o provisório. Alguém poderia propor que a reiteração e proliferação descontrolada desses discursos polêmicos são uma consequência imperiosa da modernidade, em vista de seu niilismo e relativismo essencial. Pode ser.
É ainda, entretanto, uma conjectura a ser mais detalhada. O que é certo, porém, é a centralidade da política enquanto eixo estruturante de nossa sociedade. E é essa natureza política definidora do meio social em que vivemos que está na base das dificuldades de encerrar as controvérsias em questão, mesmo com seu ímpeto arrefecido pela acomodação relativa dos atores. Lidamos com valores, em última análise, e o valor da vida se apresenta como o bem supremo.
Quando o tratamento desses valores e as decisões a ele associadas são tomadas em um contexto de informação limitada, em que dificilmente são coligidos indícios suficientes para se chegar a enunciados mais conclusivos, o poder dos atores pode depender da capacidade de manipular o conhecimento e desafiar as evidências apresentadas para apoiar determinadas escolhas. Nesse ambiente de incerteza, as decisões que implementam políticas, como no caso da biossegurança, embora dependentes do conhecimento dos especialistas, são tomadas com base no que é valioso em determinado tempo e lugar, para determinadas pessoas.
Cientistas e técnicos assumem posição ambígua nessas controvérsias, que são fundamentais, pois a biossegurança é debatida pelo público e requer avaliações de especialistas para tranquilizar as pessoas comuns quanto à segurança da saúde humana e do meio ambiente. Por outro lado, são coadjuvantes nos debates, uma vez que as decisões não podem se basear apenas na ciência e na tecnologia. Nesse momento, diga-se, a comunidade científica é instrumento nas mãos de entes investidos de mais poder. E se assim não for, jamais se chegará a uma decisão, visto que a possibilidade do surgimento de novos dados e de revisões das explicações aceitas está sempre no horizonte de ação dos atores envolvidos na controvérsia.
O saber técnico se torna um recurso explorado por todas as partes para justificar suas visões, criar legitimidade e controlar os termos do debate. Durante o processo, os fatos científicos, usados seletivamente, convergem com os valores políticos, fazendo com que a expertise se torne uma arma a mais em um arsenal de armas políticas. (Nelkin, 1987).
As controvérsias na biossegurança envolvem valores, de modo fundamental. Em determinadas situações prevalecem os objetivos da indústria. Em outras, a persistência dos grupos de protesto permite ampliar seu leque de apoio. Se estamos diante de discursos polêmicos que refletem interesses em disputa, pode-se resolver os conflitos e levá-los a uma solução pela negociação ou medidas compensatórias. Se, no entanto, são valores morais que estão em jogo, a negociação e o compromisso pouco podem fazer para se chegar a uma resolução da controvérsia. (Nelkin, 1995).
As controvérsias na biossegurança são um caso clássico da impossibilidade de encerramento das polêmicas na esfera de alternativas científicas e tecnológicas, exclusivamente. Por circunscreverem-se ao âmbito dos organismos vivos, da biotecnologia moderna, da conservação e uso sustentável da diversidade biológica e à área dos riscos à saúde humana, os discursos polêmicos em torno de medidas de proteção de seres vivos, quando manipulados, enfrenta o problema crucial do valor supremo de uma sociedade, o que lhe desperta maior sensibilidade, a vida. A dinâmica de funcionamento das controvérsias na biossegurança denota uma estruturação incontornável, de natureza ontológica, da vida social e política: a persistência da arena dos valores como instância final dos conflitos de uma sociedade.
Joel Paese é doutor em sociologia política (UFSC) e professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Notas:
1-Disponível em: http://www.mma.gov.br/port/sdi/ea/documentos/convs/prot_biosseguranca.pdf Acesso em: 21 set. 2013 2-Disponível em: http://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/StartBIS.htm Acesso em: 21 set. 2013.
Referências
Dascal, Marcelo. “Epistemologia, controvérsia e pragmática”. Revista da SBHC, n. 12, p. 73-98, São Paulo, 1994. Guivant, Júlia Silvia. “Heterogeneous and unconventional coalitions around global food risks: integrating Brazil into the debates”. Journal of Environment Policy and Planing, v. 3, n. 4, p.231-245, 2002. (Volume especial: Food Risks and the Envrionment). Nelskin , “Dorothy. Science controversies: the dinamics of public disputes in the United States”. In: Sheila Jasanoff, Gerald E. Markle, et al. (Ed.). Handbook of science and technology studies. Thousand Oaks/London/New Delhi: Sage, 1995. “The controversies and the authorithy of science”. In: Engelhardt Jr., H. Tristram.; Caplan, Arthur. L. (Ed.) Scientific controversies: case studies in the resolution and closure of disputes in science and technology. Cambridge University Press, 1987. Paese, Joel. “Controvérsias na tecnociência: o caso da lei de biossegurança no Brasil”. Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política, 298p, 2007. (Tese de doutorado).
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