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Editorial
O Cerrado e os frutos da infância
Por Carlos Vogt
10/02/2009

Segundo o Mapa de Biomas do Brasil, lançado, em 2004, pelo IBGE, juntamente com o Mapa de Vegetação do Brasil, em comemoração ao Dia Mundial da Biodiversidade, o do Cerrado é o segundo maior em extensão dos 6 biomas cartografados:

“o da Amazônia se extende, aproximadamente por 4.196.943 Km², equivalentes a 49,29% da área total do território brasileiro; o do Cerrado, por 2.036.448 Km², isto é, 23,92% do mesmo território; o da Mata Atlântica, por 1.110.182 Km², equivalendo a 13,04%; o da Caatinga estende-se por 844.453 Km², ou seja, 9,92%; o do Pampa, por 176.496 Km², equivalentes a 2,07% do território nacional; o do Pantanal, com 150.355 Km², que correspondem a 1,76% dos 8.514.877 Km² da área total do Brasil”.

Do ponto de vista da distribuição por estados, segundo o IBGE, o bioma do Cerrado, ocupa a totalidade do Distrito Federal e parcelas significativas dos estados de Goiás (97%), Tocantins (91%), Maranhão (65%), Mato Grosso do Sul (61%) e Minas Gerais (57%), além de regiões em mais seis estados, entre eles São Paulo.

São Paulo tem, aliás, financiado pela Fapesp, envolvendo instituições de pesquisa de todo o estado e também fora dele, numa mobilização impressionante de pesquisadores em todo o país, um dos mais importantes programas voltados para a Mata Atlântica e para o Cerrado: o projeto Biota, cujos dados já coletados e disponibilizados dão a medida da riqueza e da variedade da vida animal e vegetal no ecossistema desses biomas (http://www.biota.org.br/).

Diz-se que o Triângulo Mineiro é o Portal do Cerrado. Como nasci em Sales Oliveira, na Alta Mogiana, traçado da Anhanguera, depois de Ribeirão Preto, entre Jardinópolis e Orlândia, perto de Nuporanga, apontando para Igarapava, nas franjas do Rio Grande, perto das Minas Gerais, acho que posso dizer que cresci na varanda do Cerrado que por ali já se estendia pelo Campo da Coruja, como quem fosse para Orlândia, São Joaquim da Barra e Guará, pela Fazenda 3 Barras, pela mata do Taboão, na direção de Franca, passando por Batatais.

Na Coruja, havia um campo onde a meninada jogava futebol e ali, no meio do Cerrado, assisti pela primeira vez ao pouso de um teco-teco que, diziam, estava com pane de combustível e precisava urgente aterrizar para evitar o pior e para abastecer. O piloto, quando o aeroplano parou, desceu da aeronave para subir no imaginário do pessoal que se aglomerava para acompanhar o evento. Vestia-se como um piloto que só se podia ver, mas que se via, em filmes exibidos no Cine Santa Rita: polainas marrons, calças claras, casaco de couro da cor das polainas, casquete acompanhando o material e a cor dos dois outros apetrechos e os indefectíveis óculos de proteção puxados sobre a testa. Foi desse modo que o Cerrado descortinou-se em vôo para mim, como as aves que têm nele seu habitat natural, como o gavião e a flecha que o filme com Burt Lancaster, não sei por que cargas d'água, por que caminhos da imaginação, trouxe também para aninhar-se no porão das lembranças confusas, mas precisas.

No caminho da Fazenda 3 Barras, onde íamos nadar na corredeira de pedras de um ribeirão ligeiro, íamos em bando de moleques, colhendo, comendo e chupando, onde encontrávamos, gabiroba, mamica de cadela, marolo, marmelo, coquinho, mangaba, goiaba, jatobá, carambola, caju, manga. Íamos pela estrada poeirenta, apanhando nas beiradas, dos pés que se debruçavam sobre elas, dos barrancos, as frutas-de-lobo verdes, com as quais simulávamos um jogo de bochas comprido e desordenado e que era um princípio de organização do tempo para encurtar distâncias: um passatempo, um tempo passando, passado no tempo.

As frutas-de-lobo caíam maduras sob as lobeiras e, como sabíamos, por ouvir contar, que os guarás delas se alimentavam ─ daí o nome ─ aguçávamos a curiosidade na esperança de ver um deles aparecer em busca das frutas. Nunca vimos, embora muitos houvesse na região, sendo inclusive caçados e mortos pela predação humana que, na época, não tinha ainda muita consciência da devastação que já promovia e cujos efeitos sistêmicos não conseguia ver nem avaliar.

É claro que não sabíamos também do potencial medicamentoso da fruta-de-lobo, que pesquisas científicas foram descobrindo e revelando, para além do uso caseiro, na produção de esteróides que constituem matéria-prima de diversos medicamentos como antibióticos, anticoncepcionais, e anti-inflamatórios.

Tampouco sabíamos que os portugueses, que, no século XVIII, em busca do ouro no centro-oeste do país, com dificuldade para encontrar marmelo de que fizessem o doce apetitoso, inventaram uma “marmelada” de fruta-de-lobo com que matar as saudades da guloseima. Talvez daí tenha vindo o sentido figurado da expressão quando o termo designa arranjo e conluio entre adversários que fingem disputar uma contenda sobre cujo resultado já se entenderam: é doce, mas não é o doce que era mais doce, nem é o doce de batata doce.

Enquanto isso, íamos nadar nas 3 Barras, jogando frutas-de-lobo da satisfação do presente ao acaso do futuro, no mesmo caminho que ao se aproximar dezembro de cada ano, percorria com meu pai para recolher musgo no Taboão e preparar os campos de peregrinação do presépio montado na casa da selaria, onde moravam meus tios e que havia sido a casa de meus avós alsacianos, campos por onde transitavam outros animais, outros personagens e onde reinava outro bucolismo artificial e alegórico, mas feito também do Cerrado, no musgo que envolvia de pastagens a manjedoura, Jesus menino, os reis magos, São José, os bois, as vacas, os bezerros, os cervos, tudo em celulóide e todos com a cabeça móvel por um artifício que enganchava os pescoços aos corpos de cada animal.

O Cerrado não era ainda o sertão, mas estava em tudo, em toda parte. Nos marolos que achávamos e comíamos saboreando os gomos amarelos de cheiro forte, muito doces, de sabor cortante; nos que trazíamos para casa e viravam licor para rivalizar com o de jabuticaba, feitos ambos pela habilidade de grande cozinheira de minha mãe.

O fundo do quintal de minha casa fazia limite com a fazenda Boa Sorte; logo passando o sítio de “seu” Minucci, começava, por efeito de erosão contínua, o que chamávamos de Buracão, onde, no fundo, corria um riozinho que, em determinados trechos, produzia quedas d'água e bacias nas quais íamos, meninos, nadar acompanhados sempre das preocupações dos pais e, em particular, dos receios das mães. Por lá apareciam, às vezes, pequenos jacarés, pacas, tatus, cotias não. Mas o que distinguia o Buracão, ao menos na lembrança que agora tenho dele, eram as frutinhas de veludo, nas suas ribanceiras e um magnífico pé de jenipapo sobraçando o vazio da erosão. Como a fruta era de difícil acesso, grande era a sua disputa e forte acabou sendo a sua inscrição na memória desse Cerrado da infância.

Como se viu, a área do bioma do Cerrado é enorme, ocupando, como foi dito, 23,92% do território brasileiro e a sua devastação conta entre as maiores já ocorridas na história das relações do homem com o seu meio ambiente. As políticas de proteção, de preservação, de recuperação foram também se desenvolvendo na medida em que as ameaças de extinção de espécies e de desequilíbrio ecológico sistêmico foram se acentuando.

Objetiva e subjetivamente, nossas vidas estão ligadas ao Cerrado e, de uma forma ou de outra, aos demais biomas identificados e acima mencionados. Nas 3 Barras, no Campo da Coruja, na fruta-de-lobo, no lobo guará, no jenipapo, no licor de marolo, na gabiroba, no jatobá, na goiaba, no vôo do gavião, em tudo que a natureza dá e o homem transforma e na transformação que a própria natureza faz de si e também do homem, o Cerrado é parte essencial do que fomos, do que somos e do que poderemos ser na afirmação inadiável de que a vida é um sistema de diferenças funcionando em harmonia.