Nos últimos 60 anos, o mundo testemunhou uma verdadeira revolução à medida que a China, que corresponde a aproximadamente um quinto da população mundial, deu uma guinada de uma economia comunista na direção de uma economia de mercado, embora com forte controle e intervenção estatal, e, com isso, alcançou um desenvolvimento inédito em sua longa história. A forma como a China tem lidado com a tributação de sua economia tem um papel relevante nessa história.
Após o estabelecimento da República Popular da China, em 1949, por um longo período, a população chinesa sofreu com políticas e medidas econômicas que se mostraram incapazes de fornecer à população condições mínimas de sobrevivência. De início, foi implantado um sistema econômico administrativo no estilo soviético, isto é, em que o governo era o responsável por todas as decisões acerca do que, como e para quem produzir, praticamente eliminando a iniciativa privada. Nesse sistema, todos os ativos produtivos se tornaram propriedade do governo, que tinha o comando sobre os recursos, incluindo terras, energia, e mesmo as pessoas tinham sua ação e mobilidade limitada.
Obviamente, em um sistema em que o governo comanda os fatores produtivos, não é necessário utilizar um mecanismo sofisticado de tributação, pois essa tecnologia jurídica é, em larga medida, substituída pelo comando direto. De 1958 a 1978, a indústria e o comércio eram praticados apenas por empresas públicas, que entregavam seus lucros integralmente ao governo e uma tributação sobre o faturamento era utilizada apenas para facilitar a transferência de fundos aos cofres públicos.
Com tamanho poder em mãos, em 1958, Mao Tse-tung lançou sua mais ambiciosa política, o “Grande Salto Adiante”, um plano quinquenal cujo objetivo era transformar a China rapidamente em um país industrializado. A estratégia era forçar a industrialização e a coletivização das terras. O resultado: um dos maiores desastres da história da humanidade, com dezenas de milhões de mortos e crise econômica.
Para sobreviver ao retumbante fracasso, Mao Tse-tung lançou uma campanha ideológica para “varrer de vez os valores capitalistas”, a Revolução Cultural, que durou até sua morte em 1976, quando reformistas gradualmente assumiram o poder. Durante a Revolução, não havia regras jurídicas claras e o papel da tributação foi praticamente desconsiderado.
Em 1978, Deng Xiaoping expressamente mudou o foco chinês de uma disputa política ideológica para a busca do desenvolvimento econômico, quando disse que “não importa se um gato é branco ou preto, desde que ele capture ratos.” Nesse contexto, foi tomada a decisão política de, paulatinamente, voltar a permitir que o mercado alocasse os recursos dentro da sociedade, o que requeria devolver autonomia e liberdade aos cidadãos, ainda que limitada. Os pilares da mudança: abrir a China para investimentos estrangeiros e reformar o sistema econômico doméstico, o que ainda está em andamento.
Com o retorno ao sistema de mercado, foi necessário reestruturar o sistema tributário chinês, não apenas para gerar receitas para que o governo pudesse se financiar e implementar suas políticas, mas também como um mecanismo de intervenção e regulação de atividades econômicas e sociais que seriam gradativamente devolvidas à população.
A relação da política tributária chinesa com o seu histórico de desenvolvimento é, em vários aspectos, única, pois a China, um país socialista comandado por um Partido Comunista, optou por uma mudança gradual e pragmática de uma economia centralmente planejada para uma economia de mercado “socialista”, ao invés de dar um choque de reformas econômicas. Essa mudança ainda está em andamento e sua direção é incerta.
Uma das coisas que chama a atenção de estudiosos em relação ao sistema chinês é que certamente ele é um exemplo de sucesso econômico. Todavia, o desenvolvimento econômico não foi acompanhado de forma equânime pelo desenvolvimento social e, muito menos, por um desenvolvimento de direitos (dentro da noção de Estado de Direito). Obviamente essa constatação causa algum desconforto aos defensores dos direitos e da democracia como pré-condições para o desenvolvimento.
O sistema tributário chinês é, em termos de estrutura de incidência, parecido com o sistema brasileiro e os demais sistemas tributários do mundo, mesmo porque em várias áreas, como a tributação da renda de investidores estrangeiros, a China importou seu modelo. Hoje em dia, o sistema tributário chinês inclui imposto de renda (nosso IR), imposto sobre o consumo não-cumulativo ou Imposto sobre Valor Agregado – IVA (que tem certa semelhança com os brasileiros ICMS e PIS-COFINS na sua modalidade não-cumulativa, embora com incidência mais simplificada), tributação sobre propriedade (semelhantes aos nossos IPTU e IPVA) e outros tipos de tributos sobre algumas atividades comerciais (por exemplo, imposto sobre serviços bancários e seguros). O IVA é o imposto que mais arrecada. Essa coexistência do IVA com outros tributos comerciais é um problema do imposto sobre o consumo. O IVA é cobrado pelo governo central, mas repartido com os governos locais. Veja-se que as reformas tributárias iniciadas na China a partir do início da década de 1980 foram fundamentais para esse alinhamento aos sistemas tributários ocidentais, e crucial para a aceitação da China na Organização Mundial do Comércio (OMC). Por outro lado, essa aceitação foi o fator que marcou a inserção da China no mercado internacional.
O estabelecimento de um sistema tributário moderno era considerado essencial pelo governo chinês para o sucesso da transição, estruturada em um sistema de pista dupla: haveria um sistema tributário ocidentalizado aplicável aos investidores estrangeiros e um sistema tributário inteiramente chinês para seus cidadãos e empresas.
De um lado, o sistema tributário para estrangeiros começou a ser implementado em 1980, com o Imposto de Renda Individual (sobre estrangeiros), o Imposto de Renda sobre Investimento em joint ventures e o Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas Estrangeiras, do ano seguinte. Também foi revivida a tributação sobre faturamento com o Imposto Consolidado sobre Indústria e Comércio, originalmente de 1958. Por outro lado, o sistema doméstico foi implantado em 1983 e 1984, com a li gai shui, isto é, substituição da entrega de lucro pelas empresas públicas por impostos, tributos individualizados para novas empresas, impostos sobre o faturamento e vários outros tributos sobre propriedades e transações.
Desde 1986, esse sistema de pista dupla vem evoluindo gradativamente, de acordo com a evolução das condições de mercado na China. Na década de 1980, quando a economia ainda estava se estruturando, regras mais rígidas foram usadas para controlar o surgimento e a ação de empresas. Na década de 1990, a disparidade de condições de concorrência entre empresas nacionais e estrangeiras levou à evolução do sistema, com a reforma tributária de 1994, que caminhou no sentido de unificação dos sistemas e de uma tributação mais neutra em relação à origem do investimento Assim como no Brasil, em vários aspectos, a discriminação chinesa era em detrimento do nacional em favor do estrangeiro para atrair investimentos. A reforma de 1994 também resultou na introdução do IVA chinês, que permite a devolução do imposto acumulado na cadeia produtiva, nas operações de exportação, permitindo maior competitividade das exportações chinesas. Um indicador da agressividade da mudança chinesa em direção aos mercados internacionais é a constatação de que em 1983 a China não tinha sequer um tratado bilateral para evitar a dupla tributação, sendo que hoje tem mais de 90 desses tratados (inclusive com o Brasil).
Esse ímpeto reformista foi coroado com a aceitação da China na OMC em 2001, que a obrigou a revogar milhares de regras e regulamentos, liberalizando ainda mais a sua economia. O Imposto de Renda Uniforme para Empresas, de 2007, aparentemente, marca o fim da discriminação tributária entre nacionais e estrangeiros na China em questões tributárias.
A estrutura tributária chinesa é curiosa em vários aspectos. Mais de 60% das receitas totais são oriundas de tributação indireta (o que inclui a tributação sobre o consumo), que na perspectiva chinesa está associada ao faturamento (liu zhuan shui). Cerca de 30% das receitas decorrem do Imposto de Renda, que tem crescido mais do que a tributação sobre o consumo. Importante notar que até hoje o Imposto de Renda guarda diferenças materiais para nacionais e estrangeiros, sendo bem mais detalhado e limitante para os primeiros. Por fim, cerca de 8% das receitas advêm de impostos sobre a propriedade.
É importante notar que até 2011 a China não impunha tributação sobre a propriedade de residências, apenas sobre imóveis comerciais, o que é visto por vários especialistas como parte da explicação do boom imobiliário que a China presenciou nos últimos anos. Como manter uma casa não impunha custos adicionais aos proprietários, eles poderiam facilmente investir em uma segunda ou terceira casa e ficar livres de impostos. A especulação imobiliária e a preocupação com a inflação, todavia, levaram algumas províncias como Xangai e Chongqing a experimentarem em 2011 a criação de impostos sobre casas adicionais. A primeira casa, no entanto, continua isenta do imposto.
Por outro lado, como os governos locais contavam com os impostos sobre vendas de imóveis para financiar suas grandes dívidas, a queda no número de vendas decorrente da criação de um imposto sobre imóveis residenciais tem gerado muita preocupação. Como se pode ver, quando se trata de sistema tributário, a questão nunca é simples e faz lembrar o enigma que tem sido levar adiante a reforma tributária brasileira, tamanho é o conflito de interesses envolvidos. O cobertor é sempre curto.
Nesse sentido, o país enfrenta um grave problema de distribuição tributária. Como a China é um estado unitário, a tributação é competência do governo central, mas as obrigações são, em larga medida, locais, ou seja, alguns tributos são administrados e arrecadados localmente. Há tributos centrais, locais e os chamados impostos partilhados (entre o governo central e os governos locais). Há uma forte descentralização fiscal. De acordo com a Administração Fazendária Chinesa, em 2011, o governo central apropriou-se de 51,1% de todas as receitas, enquanto os governos locais ficaram com apenas 48,9%. Essa enorme disparidade é o resultado direto da reforma tributária de 1994, pois, no ano anterior, a proporção era de 22% para 78% e, desde então, tem se mantido no atual patamar de mais 50% para o governo central e o restante para os locais.
Um problema semelhante, mas em um contexto de federalismo fiscal, é enfrentado pelo Brasil, onde os estados e municípios têm alguma competência tributária, mas a forma da repartição das competências na tributação do consumo e a falta de uma política eficaz de desenvolvimento regional, têm levado à guerra fiscal e à desorganização pelo excesso de sobreposição tributária nessa base de incidência (consumo). Fato é que a administração fazendária unificada na China lhe proporciona enormes benefícios em termos de planejamento, gestão e controle, mas a disparidade de distribuição já se tornou um perigoso problema para a estabilidade e manutenção de seu ritmo de crescimento.
Estabilidade e crescimento, inclusive, têm sido os mantras que conduzem as políticas tributárias chinesas. Algumas perguntas são fundamentais para entender esse dilema. Como manter o crescimento estrondoso dos últimos anos de forma sustentável? Como minimizar a enorme disparidade na distribuição de renda que se tornou característica da economia chinesa? Como imprimir mais competitividade às empresas públicas, ainda importantes fontes de receitas públicas? Essas questões têm ocupado as mentes mais brilhantes do governo chinês.
Como visto, historicamente, o governo chinês tem sido muito dependente das receitas oriundas das empresas públicas. Todavia, com o crescimento da iniciativa privada e a maior abertura da economia, essas empresas têm enfrentado dificuldades e sua lucratividade tem caído ano a ano, enquanto a do setor privado vem crescendo a passos largos. Essa mudança estrutural imporá ao governo chinês a necessidade de alteração do sistema tributário em vigor, inclusive para melhorar a aplicação e cobrança das normas.
De olho nessas questões, no final de 2011, a Conferência Central de Trabalhos Econômicos, um dos principais encontros políticos sobre questões econômicas na China, atribuiu grande peso a medidas tributárias e nomeou cinco principais objetivos para o ano de 2012: (a) um programa piloto de um Imposto sobre Valor Agregado – IVA, em Shangai, com objetivo de ampliar a base de incidência desse imposto, aproximando-o mais do modelo europeu; (b) um ajuste no imposto sobre propriedade; (c) reestruturar a tributação sobre o consumo; (d) aumentar a tributação sobre recursos naturais; e (e) estudar a viabilidade da tributação sobre a emissão de carbono (um imposto ambiental). Qualquer semelhança com a necessidade brasileira de reforma no setor não é mera coincidência.
Há uma grande preocupação em relação à sustentabilidade do crescimento chinês, que atinge não só o governo da China, mas o restante do mundo. Uma boa notícia recente é o aumento da tributação sobre recursos naturais. A partir de 2010, houve uma mudança de tributação sobre as vendas de petróleo cru e gás, o que gera incentivos para que as empresas se tornem mais eficientes e, portanto, produzam mais com menos. Como essa tributação sobre vendas é local e, portanto, o tributo é arrecadado pelos governos locais, essa receita extra pode reduzir problemas de coordenação entre extratores de renda (quem vende) e pagadores de custos externos (população), reduzindo externalidades e incentivando a exploração sustentável de recursos. Do ponto de vista social, essa renda extra também poderá ajudar regiões pobres mas ricas em recursos naturais, na parte ocidental da China, a reduzir o hiato que há, não apenas entre a população rural e a urbana, mas também entre a China Oriental (rica) e a Ocidental (pobre).
Parte desses esforços de reformulação do sistema tributário se orienta às pequenas e médias empresas, responsáveis pela maior parte da atividade econômica, para que possam crescer e se tornar mundialmente competitivas. Note-se que as mudanças sugeridas – em geral – não são no sentido de se criar privilégios ou benefícios temporários para este ou aquele setor favorecido pelo governo, mas de desenvolver e refinar o sistema tributário, tornando-o mais racional e eficiente.
Além disso, com a crise mundial, iniciada nos Estados Unidos, em 2007-2008, e atualmente com importantes consequências sobre a Europa, a China começou a prestar mais atenção ao seu mercado interno, razão pela qual, já no início de 2012, houve sinais das autoridades fiscais chinesas no sentido de que seria reduzido o Imposto de Importação de mais de 700 categorias de bens, incluindo recursos energéticos e partes e componentes de indústrias emergentes estratégicas que possam promover o consumo. No mesmo sentido, a simplificação do sistema tributário e a redução de tributos serão acompanhadas de aumento de renda das famílias de baixa renda e a construção de uma classe média mais forte, bem como maiores investimentos em saúde e educação.
Se o objetivo da China é construir uma sociedade xiaokang, na qual as pessoas em geral não sejam ricas, mas tenham acesso adequado à comida, vestimenta e outras necessidades materiais necessárias para uma vida decente e de forma sustentável, então, mudanças terão de ser realizadas. Se a China será capaz de implementar essas mudanças no ritmo e na profundidade necessários para sustentar o maior crescimento econômico do mundo, mantendo ao mesmo tempo estabilidade política e social, bem como reduzindo as desigualdades sociais e regionais e sem destruir o meio ambiente, é uma pergunta que apenas o futuro pode responder. Mas a aparência de que eles estejam se movimentando nesse sentido nos deixa com um amargo gosto de inveja na boca: não deveríamos estar fazendo o mesmo?
Ivo Gico Jr. é professor de análise econômica do direito da Universidade Católica de Brasília e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia. Marcos Aurélio Pereira Valadão é conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, membro do Comitê de Peritos em Cooperação Tributária da ONU e professor da pós-graduação em direito da Universidade Católica de Brasília.
Wilson Almeida é diretor do curso de relações internacionais e professor da pós-graduação em direito da Universidade Católica de Brasília.
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