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Reportagem
Trilha urbana: uma via para lazer e mobilidade em São Paulo
Por Kátia Kishi
10/11/2015

Cansaço, ansiedade para chegar logo ao destino e o ar sufocante que carrega poluição e odor dos rios. A sensação estressante é conhecida de quem fica preso nas marginais da capital paulista, e os prejuízos para os motoristas que enfrentam essa rotina não são apenas físicos e psicológicos, como aponta um recente estudo do Núcleo de Economia Regional e Urbana da USP (Nereus). Desenvolvido por Eduardo Haddad e Renato Vieira, a pesquisa buscou valorar o tempo de viagem dos trabalhadores da região metropolitana de São Paulo, área que abriga cerca de 20 milhões de habitantes, ou 10% da população nacional, dentro de 2.139 km², e é responsável por 20% do PIB brasileiro.

A pesquisa quantitativa indica que são gastos, em média, 100 minutos do dia para ida e volta do trabalho. Devido à precariedade da mobilidade urbana, gerada principalmente pela imensa frota de carros, as perdas econômicas também são significativas. Há uma expectativa que se houvesse melhorias que provocassem redução de 27,63% no tempo de viagem, segundo o estudo, haveria um aumento de 2,83% (110 bilhões) no PIB brasileiro em relação ao verificado em 2010.

“A cultura do carro teve início no século passado, como sendo um veículo da elite, tornando-se mais acessível à população a partir dos anos 1960, com a consolidação industrial automobilística no Brasil. Nesse processo, se impôs como o usuário prioritário dos espaços públicos nas cidades brasileiras”, comenta Maria Ermelina Malatesta, presidente da Comissão Técnica Mobilidade a Pé e Acessibilidade da ANTP – Associação Nacional dos Transportes Públicos. O mesmo fenômeno também foi observado em outros países que sediavam as matrizes das grandes indústrias automobilísticas, que propagavam a ideia de liberdade e status social que os cidadãos adquiririam ao se individualizarem em um carro.

Segundo a arquiteta Valéria Ruchti, as políticas públicas devem trabalhar com “visão sistêmica aplicada à mobilidade urbana, que trata justamente da possibilidade de se reverter as questões, na medida em que público e privado, bem como todos os modais, possam interagir, considerando-se o planejamento urbano como um único organismo, em que o carro não mais será tido como um inimigo, desde que compartilhado”.

Apesar de ser um tema complexo, em entrevista conjunta, Adriana Sandre, Flavia Sampaio e Marcelo Kussunoki, autores do artigo “Trilha urbana, mobilidade e integração social”, publicado na última edição da revista LabVerde da USP (n.10, 2015), explicam que a mobilidade urbana não deve ser entendida apenas sob o prisma da circulação de pessoas dentro dos modais de transporte, “o que se propõe é pensar em uma perspectiva mais ampla de ocupações para esse espaço de circulação, atribuindo um outro sentido, em um espaço multifuncional que promova uma dimensão social e do lazer. Em outras palavras, um espaço de permanência e convivência”.

Trilhas urbanas

Os espaços de convivência levantados por Sandre, Sampaio e Kussunoki são as trilhas urbanas, um espaço para os modais não motorizados percorrerem – pedestres e/ou ciclistas – que liguem pontos de interesse agradáveis, além de permitir o lazer e a apropriação do espaço livre público pelo pedestre. “Esses caminhos são atraentes por conectarem no trajeto, áreas de interesse, como parques, praças, espaços culturais e algum tipo de serviço – educacional ou comercial. Pontos vitais para a criação do estímulo ao uso da trilha, ao possibilitar o “algo a observar”, em uma fruição da paisagem, significada a partir de sua questão simbólica. Em uma sucessão de paisagens e acontecimentos que, de alguma forma, sensibilizariam o pedestre e o fazem partir para a trilha”, explicam os autores, que acrescentam o estímulo do aprender a observar a cidade, algo muitas vezes deixado de lado quando se está dirigindo. “Nós, por exemplo, gostamos muito de parar e observar as florações das árvores. Atualmente a do jacarandá está esplendorosa, e essa percepção da cidade é diferente de quando estamos a pé, em uma bicicleta ou em um carro, simplesmente pela diferença de velocidade”.

O investimento nas trilhas urbanas tende a beneficiar os cidadãos de diversas maneiras, de acordo com a urbanista da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Milena Kanashiro, que discute alguns conceitos do walkability, ou “caminhabilidade”, em recentes pesquisas desenvolvidas pelo grupo de design ambiental da UEL. “O uso efetivo do espaço público como suporte para que as interações sociais aconteçam tem sido chamado de social capital. Esse tem sido considerado como premissa de projeto de bairros para permitir ou encorajar laços sociais ou conexões da comunidade. São bairros orientados para pedestres e de uso misto, em que os moradores são incentivados a caminhar, permitindo que as atividades diárias possam ser realizadas sem o uso de um veículo”.

Os autores do artigo “Trilha urbana” concordam com as melhorias em sociabilidade, sendo que “o espaço público como ponto de encontro reforça a ligação entre as pessoas do local e com o local, aumenta o apreço pelo espaço público e a sensação de segurança, ao estar sempre ocupado”. Além dos benefícios indiretos, os autores também ressaltam os pontos positivos diretos na saúde dos pedestres e ciclistas, que tornam a necessidade de se deslocar como oportunidade para a prática de exercício físico.

Kanashiro destaca que para a “caminhabilidade” é necessário que o local atenda quatro condições favoráveis: utilidade, segurança, conforto e atratividade. Cidades caminháveis geralmente também resultam em cidades adequadas para ciclistas, e implicam em melhorias no transporte público, sinalização e fiscalização para o uso adequado das calçadas de ruas.

Em relação à cidade de São Paulo, Malatesta é crítica em relação ao ambiente de mobilidade do pedestre. “As calçadas são péssimas em sua maioria. O poder público toma para si a responsabilidade de construir e manter as pistas dos veículos, mas deixa as calçadas por conta do proprietário do lote, não fazendo sequer uma fiscalização eficiente. O resultado é um espaço público por onde se dá o tipo de mobilidade mais praticado nas cidades brasileiras com a pior qualidade possível, invadido por toda sorte de irregularidades, como rampas para acesso veicular aos lotes, extensões irregulares das propriedades privadas, excesso e mau posicionamento do mobiliário urbano e muito mais. A não conservação das calçadas gera uma quantidade absurda de acidentes, denominados ‘acidentes verticais’, que hoje em dia consomem de 1 a 2 PIBs por ano com os prejuízos causados às vítimas”.

Nesse ponto, Sandre, Sampaio e Kussunoki comentam que ainda são necessárias políticas públicas efetivas que atendam às exigências da população e que priorizem um desenho coerente com as questões sociais e ambientais. Em alguns pontos a cidade conseguiu melhorar, como no caso da malha cicloviária, que está implantando uma rede consistente de infraestrutura que pretende chegar a 400 km até o ano que vem, além de bicicletários em terminais de transporte e paraciclos, complementa Malatesta. Também está disponível no mercado tecnologias como bicicletas elétricas, que facilitam a pedalada em trajetos íngremes, e bicicletas dobráveis, leves e portáteis, práticas para o transporte em conexões multimodais (utilizando ônibus ou metrô, por exemplo)”.

O que não faltam são empecilhos para tornar uma grande cidade como São Paulo adequada para os pedestres e ciclistas, lamenta Malatesta. “Outro aspecto que dificulta as ações voltadas à mobilidade a pé é a falta de consciência desse modal como forma de transporte, responsável atualmente por cerca de 1/3 de todas as viagens realizadas na cidade (feitas exclusivamente a pé), além das viagens a pé em complementação às viagens de transporte coletivo”.