Lixões e aterros. Destinos da maioria dos resíduos de um mundo em que se consome e excreta vorazmente, em números assustadores. Números que o artista Chris Jordan explora nas paisagens que compõem a exposição Running the numbers: an American self-portrait (2007). De longe as obras se apresentam como paisagens insólitas, de outro mundo, ou lembram cenas retratadas por artistas famosos, como Van Gogh e George Seurat. A aproximação traz de início uma surpresa. São composições feitas de objetos cotidianos: latas, lápis, sacolas, maços de cigarro.
Cans Seurat, 2007 Fonte: chrisjordan.com
Mas a surpresa é transformada em incômodo, inquietação e violência quando percorremos as legendas das obras. Como se Jordan fisgasse seus expectadores em uma armadilha. O artista compõe o que chama de “Auto-retrato americano”: 106 mil latinhas jogadas fora a cada 30 segundos nos EUA. Retrato de excesso, acúmulo, consumismo. Mas Jordan vai além, e cria o retrato da invisibilidade. Milhares de latinhas “invisíveis” na paisagem bucólica e tranqüila de mulheres caminhando à beira do lago, com suas sombrinhas em um dia ensolarado. Paisagem que acontece na tela, porque as latinhas não existem, ou melhor, porque existem em seu completo apagamento.
Tranqüilidade que é interrompida quando moradores que vivem às margens de um “aterro” em Itapipoca (PE) interditam a entrada do protesto contra os montes fétidos que poluem a água e proliferam doenças (junho de 2006). Quando uma greve de garis no Ceará (FE), por melhores salários e condições de trabalho, deixa as ruas atoladas de restos, raspas e ratos (maio de 2007). Também quando jovens revoltados queimam dejetos nas ruas de Nápoles, Itália, inundadas de lixo devido ao esgotamento do último aterro sanitário da cidade (05/01/2008). Ou ainda, quando catadores protestam na entrada do Aterro de Muribeca, em Jaboatão (PE), porque foram impedidos de coletar materiais recicláveis, devido à concessão do aterro para uma empresa privada que não os incluiu no processo de seleção, coleta e comercialização (13/01/2007).
Paisagens que ferem. O horror do excesso, acúmulo, poluição, miséria e consumismo é escancarado nos lixões, aterros e nas crises que o sistema de limpeza e manejo dos resíduos sólidos enfrenta em todo o mundo. Especialistas, representantes do governo e dos movimentos sociais defendem a necessidade de se acabar com os lixões e transformá-los em aterros controlados e sanitários. O caminho já tem sido experimentado de diversas formas nas cidades brasileiras e envolve não apenas a constituição de uma instalação adequada tecnicamente para o recebimento do lixo, com controle e monitoramento constante, mas também a implementação da coleta seletiva, a construção de galpões para triagem do lixo e a inserção digna dos catadores de materiais recicláveis na cadeia produtiva. Se os aspectos técnicos são relevantes para se alcançar essa transformação, não menos importantes são os aspectos sociais e políticos, porque os aterros sanitários não vão resolver os problemas, antes remediá-los.
“As prefeituras não sabem diferenciar um lixão de um aterro (veja box). Eles dizem que têm aterro na cidade apenas porque jogam terra em cima”, comenta Nadja Limeira Araújo, gerente de projetos do Programa de Resíduos Sólidos do Ministério das Cidades, ao mencionar as dificuldades que o Ministério encontra para produzir um diagnóstico dos serviços de limpeza e manejo dos resíduos sólidos no país. Em parte, a confusão entre lixões e aterros acontece porque muitos dos chamados aterros sanitários, tanto públicos quanto privados, não respeitam a legislação e não cumprem as normas estabelecidas.
É o caso do Aterro Horizonte, situado na região metropolitana de Fortaleza, que teve suas licenças de expansão suspensas no início deste ano, após recomendação do Procuradoria da República no Ceará (PR/CE). A obra tem um custo de 45 milhões de reais, financiados pelo governo federal via Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e hoje tem 3 das 18 trincheiras já abertas, sendo uma em funcionamento, e um prédio para triagem do lixo construído. A responsável pelo inquérito, a procuradora Nilce Cunha, conta que foram constatadas várias irregularidades na obra, entre elas: a construção em local inadequado, queima de lixo hospitalar, contaminação do rio que abastece a população local, proximidade das residências e o declive do terreno. “Eu recomendei à Semace Superintendência Estadual do Meio Ambiente – Ceará que não liberasse mais nenhuma trincheira e que fiscalizasse adequadamente para que a trincheira liberada fosse utilizada na qualidade de aterro e não de lixão”. A procuradora, pelos dados que a PR/CE já possui até o momento, acredita que a melhor medida neste caso será “o embargo da obra e sua retirada do local”.
No recente documento Diagnóstico do manejo de resíduos sólidos urbanos – 2005 , publicado em agosto de 2007 – produzido pelo Ministério das Cidades no âmbito do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) – os dados mostram como entre aterros e lixões, na prática, existem poucas diferenças: cerca de 46,8% das unidades (lixões, aterros controlados e aterros sanitários) funciona sem licença ambiental; 51,5% delas não têm impermeabilização de base; 10,6% não fazem recobrimento dos resíduos; apenas 21,6% fazem recirculação do chorume; e em 9,4% das unidades há moradias de catadores.
A legislação ambiental brasileira não permite a presença de catadores de lixo nos aterros sanitários. Nem catando lixo, muito menos habitando os aterros. Quando há pessoas não é considerado aterro, mas lixão. "Lixo não é lugar de gente, por isso a gente apóia os aterros. O problema está na forma como se tratam os catadores no reprocessamento do lixo. Como eles passam a ser aproveitados ou descartados no processo", avalia Alexandre Araújo, coordenador da organização ambiental mais antiga de Pernambuco, a Associação Pernambucana de Defesa do Meio Ambiente (Aspam). O Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) defende o fim dos lixões e a construção de aterros sanitários, já que estes prevêem a criação de galpões que permitem a separação dos materiais reciclados pelos profissionais em condições mais dignas. Entretanto, nem sempre os catadores conseguem ter seus direitos atendidos sem alguma forma de protesto e mobilização.
José Cardoso, presidente da cooperativa de catadores Pró-Recife e representante do MNCR em Pernambuco, lamenta que na capital do estado não exista nenhum aterro sanitário implantado. "Há um lixão em Recife que comporta 2 mil catadores. São crianças, velhos e adultos que disputam o lixo, diariamente, com toda a sorte de coisas ruins. Entre ratos, baratas, cachorros, doenças... São outros mundos. Mundos desconhecidos da maioria das pessoas, mas que existem espalhados pelo Brasil inteiro". A falta de apoio dos governos estadual e municipais é a maior reclamação dos catadores de Pernambuco, organizados em mais de 40 entidades. A Pró-Recife funciona sem o apoio da prefeitura, mas conta com o apoio da Petrobras, do Instituto Wall-Mart, da Aspam, do Fórum do Lixo e Cidadania e do MNCR.
Aterros: monitoramento e limite
Os aterros sanitários são considerados as instalações mais adequadas para armazenamento do lixo. Entretanto, para garantir que os aterros não provoquem maiores impactos ao ambiente a legislação exige que ele possua: um sistema de drenagem pluvial, para impedir infiltração da água de chuva; um sistema de drenagem de líquidos, para evitar contaminação com chorume (líquido tóxico gerado a partir da degradação do lixo); e um sistema de drenagem de gases, para coleta e aproveitamento do biogás (metano, gás carbônico e água). Além disso, os aterros precisam ser monitorados constantemente.
O monitoramento de metais pesados no chorume coletado nos aterros sanitários, por exemplo, é considerado prioritário nos programas de promoção da saúde em escala mundial, pois todas as formas de vida podem ser afetadas direta ou indiretamente pela presença de metais pesados. Muitos metais são essenciais para o crescimento de todos os tipos de organismos mas em baixas concentrações, porque em altas concentrações podem danificar os sistemas biológicos, especialmente por serem acumulativos. É o que explica um artigo publicado em 2007, no Caderno Saúde Pública , pelas pesquisadoras Marina Smidt Celere, Aline da Silva Oliveira, Tânia Maria Beltramini Trevilato e Susana Inés Segura-Muñoza, da Escola de Enfermagem e Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto.
O chorume coletado nos aterros sanitários brasileiros é transportado para as estações de tratamento de esgoto e lançado novamente nos rios que abastecem as populações das cidades. Daí a preocupação das pesquisadoras em monitorar os níveis de metais pesados e outras substâncias no chorume. Os resultados desse estudo mostraram que os valores médios de cádmio, cromo, cobre, manganês e mercúrio encontram-se dentro dos limites máximos permitidos pela referida Resolução No. 357/2005 do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Já os valores médios de chumbo e zinco apresentam-se acima dos limites especificados e merecem atenção.
Com o devido monitoramento e uso de tecnologias adequadas estima-se que os aterros durem cerca de 20 a 30 anos. No ano passado o Aterro Bandeirantes, situado na cidade de São Paulo, foi considerado esgotado. No início deste ano, foi a cidade de Nápoles que amanheceu debaixo de lixo devido ao mesmo problema. Mesmo consistindo em alternativas “adequadas” ao destino do lixo, os aterros sanitários estão longe de ser a solução dos problemas, antes podem se tornar o foco dos problemas. Especialistas advertem que o lixo deve ser reduzido ao máximo, por meio da seleção dos materiais reutilizáveis e recicláveis, antes de ser destinado aos aterros.
A última avaliação censitária brasileira, feita pelo Ministério das Cidades a partir da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2000, indicou que apenas 8,2% dos municípios brasileiros têm programa de coleta seletiva. O artigo “Política da dádiva, educação ambiental e representações de coleta seletiva em Curitiba”, de Rafael Ginane Bezerra da Universidade Federal do Paraná, analisando o programa de coleta seletiva e reciclagem "Câmbio Verde", de Curitiba, traz à tona como a população compreende o programa de coleta seletiva como “dádiva”, uma espécie de ajuda das prefeituras, e não como direito. "Como esta configuração foge à função obrigatória da prefeitura, que se resume a garantir a coleta regular, o programa é visto como ajuda", analisa. Os moradores ajudam a prefeitura que, por sua vez, ajuda os moradores, ou seja, o programa seria uma concessão da prefeitura. O risco, para Bezerra, está na confusão entre direito e dádiva, que reduziria a atuação cidadã dos moradores, impossibilitando uma participação política efetiva, com reconhecimento dos seus direitos ligados ao destino dos resíduos sólidos.
Bezerra destaca também que "no Brasil o gerenciamento do lixo urbano não é organizado através de uma política em âmbito nacional. Trata-se de uma responsabilidade que recai isoladamente sobre os municípios. Assim o problema adquire contornos expressivos". A cidade de São Paulo, por exemplo, ganhou no início dos anos 1990, pela primeira vez, um programa de reciclagem, implantado em escala experimental no terceiro ano da gestão Luiza Erundina (PT). Mas o programa foi deixado de lado pelos seus sucessores.
A ausência de uma política nacional para resíduos sólidos acarreta descontinuidade nas políticas e falta de recursos. A consolidação de uma política nacional é, para movimentos sociais, organizações não-governamentais e representantes das comissões que atuam no governo com resíduos sólidos, um dos desafios para o ano de 2008.
Concessões...
Os aterros sanitários podem render muitos milhões no mercado de créditos de carbono para empresas e prefeituras que investirem em tecnologias limpas e conseguirem registrarem os empreendimentos na Organização das Nações Unidas (ONU). Arthur Moraes, diretor executivo da Carbotrader (empresa de consultoria sobre mercado de créditos de carbono), explica como: o metano, emitido intensamente pelos aterros sanitários devido a decomposição da matéria orgânica, é um dos gases estufa mais perigosos e sua redução está nas metas estabelecidas pelo Protocolo de Quioto. O registro dos aterros sanitários, que envolve tramites burocráticos bastante complexos e os atendimentos das exigências da Organização, permite a criação de uma conta na ONU em que se acumulam pontos a cada tonelada de gás que deixa de ser emitido. Esses "pontos" são a nova moeda em jogo: os Certificados de Emissões Reduzidas (CERs) de carbono. Os maiores interessados em comprar os créditos são os países ricos do Anexo 1, que assumiram compromissos de reduzir suas emissões de carbono até 2012 para cumprir as metas estabelecidas em Quioto. Em São Paulo já existem pelo menos três aterros sanitários – Bandeirantes (público), São João (parceria público-privado) e Caieiras (privado) – que estão inseridos no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). (leia mais).
Para Stefania Barichello e Luiz Bonesso de Araújo, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o MDL promoverá "atração de investimento internacional e transferência de tecnologia dos países desenvolvidos para os países do Mercosul, bem como a melhoria da gestão ambiental em atividades produtivas". Ressaltam, entretanto, no texto do painel “A política de créditos de carbono e seus impactos nos países do Mercosul” apresentado em outubro de 2007 na Anpocs (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), a velha crítica ao MDL: trata-se de um mecanismo que cria flexibilizações através das quais os países ricos podem promover a redução fora do seu território e continuar poluindo, e alertam que: "é muito provável que quando se iniciar a segunda fase do Protocolo de Quioto, em 2012, países como Brasil, China e Índia venham a ser obrigados a reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa".
Veronica Korber Gonçalves, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que apresentou o artigo A construção social do risco das mudanças climáticas e a resposta jurídica internacional: o Protocolo de Quioto , no mesmo evento, destaca que para os críticos de Quioto "os mecanismos, ao flexibilizarem as obrigações, refletem os interesses de valorar economicamente os gases, tornando-os, de acordo com a lógica capitalista, objetos de troca". Como a sustentação dos mecanismos de flexibilização apóia-se na necessidade de preservar o meio ambiente e frear a alteração climática sem prejudicar o desenvolvimento econômico, ao invés de buscar o desenvolvimento econômico sem prejuízo ao meio ambiente, tem-se uma inversão da noção de desenvolvimento sustentável constituída pelos movimentos ambientalistas e sociais. Acompanhar os impactos dessa inversão é a recomendação que os estudos no campo das ciências humanas têm apontado.
Leia mais:
- Entrevista com Aruntho Savastano Neto da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb), de São Paulo, companhia que controla, fiscaliza, monitora e licencia as atividades geradoras de poluição em São Paulo, Estado que gera 30 mil toneladas de lixo por dia.
Lixões e aterros
Lixão - Local em que os resíduos sólidos urbanos, de todas as origens e naturezas, são simplesmente lançados, sem qualquer tipo ou modalidade de controle sobre os resíduos e/ou sobre seus efluentes.
Aterro controlado – Instalação destinada à disposição de resíduos sólidos urbanos, na qual alguns – ou diversos – tipos e/ou modalidades objetivas de controle sejam periodicamente exercidos, quer sobre o maciço de resíduos, quer sobre seus efluentes. Admite-se, desta forma que, o aterro controlado se caracterize por um estágio intermediário entre o lixão e o aterro sanitário.
Aterro sanitário - Instalação de destinação final dos resíduos sólidos urbanos através de sua adequada disposição no solo, sob controle técnico e operacional permanente, de modo a que nem os resíduos, nem seus efluentes líquidos e gasosos, venham a causar danos à saúde pública e/ou ao meio ambiente.
Definições do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
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