09/10/2009
Há cerca de 250 anos, Portugal e Espanha firmaram um acordo estabelecendo limites entre as respectivas colônias sul-americanas, buscando por fim a inúmeras disputas. Para assegurar esse acordo era preciso um trabalho de campo que realizasse cálculos de latitude e de longitude e observações que permitissem a elaboração de uma cartografia mais precisa. É nesse contexto que o historiador Carlos Francisco Moura retrata a saga dos matemáticos e astrônomos Ignác Szentmártonyi (1718-1793?) e Giovanni Angelo Brunelli (1722-1793) na Amazônia, além de descrever, de forma detalhada, os instrumentos e livros utilizados por eles e a trajetória de ambos ao regressarem a Portugal.
Moura é arquiteto e membro da Academia Portuguesa de História, da Academia de Marinha de Lisboa e sócio dos Institutos Histórico Geográfico do Mato Grosso e de Minas Gerais. Ele tem feito importantes contribuições para a compreensão do panorama cultural do Brasil e de Portugal graças a uma extensa pesquisa histórica. Entre elas se destaca A expedição de Lansdorff em Mato Grosso (UFMT, 1984), na qual revelou, pela primeira vez, desenhos e pinturas feitas há mais de 150 anos pelo naturalista alemão.
Em Astronomia na Amazônia no século XVIII (Tratado de Madri): os astrônomos Szentmártonyi e Brunelli – Instrumentos astronômicos e livros científicos , editado pelo Real Gabinete Português de Leitura (2008), o autor ressalta a importância de métodos de medição astronômica e geográfica desenvolvidos na segunda metade do século XVII e a preocupação do governo português de D. João V com a atualização dos estudos em Portugal e os desdobramentos dessas novas análises na demarcação dos limites das colônias portuguesas. Um desses métodos diz respeito à utilização de parâmetros astronômicos como eclipses lunares e a observação dos satélites de Júpiter para o cálculo da longitude. Assim, a obra oferece uma importante contribuição para compreendermos as relações históricas entre ciência e sociedade. Algo particularmente significativo a esse respeito é o resgate, com descrições e gravuras, dos instrumentos científicos empregados na expedição, como telescópios, quadrantes, grafômetros, barômetros, dentre outros. Muitos desses instrumentos eram feitos sob encomenda por renomados artesãos da época, como é o caso dos óculos e lunetas confeccionados pelo artesão francês Nicolas Bion.
Mas o destaque da obra de Moura é o estudo sobre os astrônomos. Ignác Szentmártonyi, jesuíta croata, e o clérigo bolonhês Giovanni Angelo Brunelli; os padres matemáticos, como eram chamados, encarregados de fazer as demarcações na Amazônia. O autor expõe pormenores sobre os processos de contratação, expostos através da correspondência entre as autoridades portuguesas e os cléricos. Com base em publicações e documentos históricos é possível perceber uma forte influência da Igreja nesse processo de contratação e nas decisões de Estado. Ao que tudo indica D. João V dava preferência a matemáticos e astrônomos jesuítas, como é o caso de Szentmártonyi. Brunelli só teria sido contratado porque outros padres jesuítas não quiseram se aventurar na Amazônia.
Entre as medições realizadas por eles encontram-se, possivelmente, as primeiras medidas de temperatura na Amazônia, feitas em 1753, com um termômetro Fahrenheit. No Brasil, os astrônomos também se encarregaram de ensinar seus ofícios a novos aprendizes, como foi o caso do tenente-coronel João Wilkens, aprendiz de Szentmártonyi, que mais tarde (1785) publicou A Muhraida, epopeia dos índios Muras do Alto Amazonas.
Szentmártonyi teve grande importância nos levantamentos feitos na Amazônia e foi designado para a demarcação do trecho de maior responsabilidade, ao longo dos rios Guaporé e Madeira. É dele o estabelecimento da longitude de Belém e a diferença de longitude entre Belém, Macapá e Mariuá, tendo como base a observação de eclipse lunar e a observação de satélites de Júpiter. Há três documentos de época reproduzidos no livro que evidenciam o trabalho desse croata. Eles compõem trechos de uma correspondência do próprio Szentmártonyi dirigida a Carvalho e Melo (que ficou conhecido, posteriormente, como Marquez de Pombal), que consta de três páginas que incluem: a) observações das latitudes; b) longitudes astronomicamente determinadas; c) variações da agulha; e d) termômetros e barômetro. Szentmártonyi teria sido injustamente encarcerado juntamente com outros jesuítas como parte da campanha do futuro Marquês de Pombal contra a Companhia de Jesus. Detido no Pará e enviado para as prisões do Forte de São Julião da Barra e de Azeitão, o astrônomo permaneceu preso por 17 anos, até ser libertado depois da morte do Rei D. José e a queda de Pombal. Não há consenso em relação ao ano de sua morte, se teria ocorrido em 1793 ou 1806.
Já Brunelli nasceu na Itália, provavelmente em Bolonha, e na época de sua contratação pela Coroa Portuguesa era considerado um astrônomo emergente e respeitado. No Brasil, fez diversas medições importantes para a cartografia e observou e descreveu vários eclipses. Quando voltou para Portugal foi contratado como professor de matemática do Real Colégio de Nobres de Lisboa, e traduziu, para o português, a obra Elementos, do grego Euclides (por volta de 300 a.C). Após seu falecimento, sua biblioteca de mais de 3.500 volumes com inúmeros manuscritos foi adquirida pela Real Biblioteca do Rio de Janeiro (atual Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), em 1818.
Apesar da dificuldade de publicação na área, ressaltada pelo autor na introdução, a obra reafirma a importância da pesquisa histórica em ciência e tecnologia e a popularização desse tipo de conhecimento. É de leitura agradável e apresenta uma riqueza de detalhes e embasamento documental que a torna uma ótima indicação de leitura para quem está interessado em conhecer detalhes de um momento importante de nossa história, no qual as fronteiras do país estavam sendo estabelecidas.
Por sua importância e consistência, o livro teve seu valor reconhecido, neste ano, pelo Instituto Português da História com o prêmio 8º Conde dos Arcos para Estudos de História Luso Brasileira.
Astronomia na Amazônia no século XVIII (Tratado de Madri): os astrônomos Szentmártonyi e Brunelli – Instrumentos astronômicos e livros científicos Carlos Francisco Moura Real Gabinete Português de Leitura, 2008 (p.186)
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