Há décadas, estudiosos tentam definir e avaliar a inteligência. Dessas tentativas, várias correntes surgiram, sendo as principais a psicométrica, a desenvolvimentista e a cognitivista. O surgimento das correntes psicométrica e desenvolvimentista coincide com o início dos estudos sobre inteligência, no início do século XX. Já a teoria cognitivista é muito mais recente e abrange ferramentas e conhecimentos de áreas como neurociências, linguística, biologia, informática e psicologia.
Mesmo sendo contemporâneas, as correntes desenvolvimentista e psicométrica são contrastantes. A desenvolvimentista fundamenta-se, sobretudo, nas ideias dos pensadores Jean Piaget e Lev Vygotsky, que possuem até hoje grande influência nas teorias sobre educação e aprendizagem. Para eles, a inteligência é vista como uma construção social que ocorre em etapas, a partir da assimilação de estímulos externos, sua organização e a recepção de novos estímulos.
Já para a corrente psicométrica, as aptidões mentais de um indivíduo têm fundamentação biológica e podem ser medidas e avaliadas por meio de testes. É dentro desse contexto de quantificação da inteligência que surge o termo Quociente de Inteligência (QI), bastante popularizado - apesar de controverso.
A origem dos testes
A história por trás da construção do conceito de QI, bem como de sua popularização, revela-se nebulosa e com deturpações em certos períodos de nossa história recente. Em 1905, o psicólogo Alfred Binet e o médico Theodore Simon criaram um teste de inteligência com o intuito de aplicá-lo em crianças francesas em idade escolar. A princípio, os resultados auxiliariam na adequação das estratégias de ensino das crianças com dificuldade de aprendizagem, visando uma educação apropriada.
Binet defendia que a hereditariedade não era um componente determinante para a inteligência e, portanto, os resultados obtidos não eram deterministas e poderiam ser melhorados por meio da assistência aos alunos ou do emprego de métodos especiais de educação e prática de estudo. Contudo, apesar das ressalvas feitas por Binet, os propósitos de seu teste foram deturpados, e ele acabou sendo utilizado como ferramenta de distinção racista.
Em meados de 1910, o psicólogo americano Henry Goddard traduziu o teste de Binet para o inglês e passou a aplicá-lo em imigrantes que almejavam entrar nos Estados Unidos. O teste difundiu-se em diversos círculos eugenistas - corrente criada, em 1883, pelo cientista inglês Francis Galton com o propósito de aplicar aos seres humanos as novas descobertas de Charles Darwin, Herbert Spencer e Gregor Mendel sobre hereditariedade e melhoramento de espécies de plantas, a fim de desenvolver uma sociedade com indivíduos "superiores".
Esses círculos cresciam e ganhavam cada vez mais adeptos, ao mesmo tempo em que o teste de Binet traduzido por Goddard passava a ser usado indiscriminadamente na população daquele país. Nesse momento, segundo Edwin Black, em seu livro A guerra contra os fracos, a forte política eugenista do início do século XX ganhava uma ferramenta potente e com aparente base científica para justificar as atrocidades realizadas com imigrantes, negros e pobres. Assim, os resultados obtidos com o teste serviam de justificativa para o estudo genealógico do indivíduo, sua esterilização sem consentimento e, em casos extremos, extermínio.
Ilustração de estudo genealógico feito por Henry Goddard e publicado em seu livro eugenista The Kallikak family: a study in the heredity of feeble-mindedness (1912).
Embora seu enfoque tivesse sido corrompido, o teste de inteligência continuou a ganhar força entre estudiosos nos Estados Unidos. Ao longo das décadas, modificações foram feitas tanto no cálculo do QI quanto nos parâmetros usados para sua determinação. O psicólogo David Wechsler teve grande influência nesse processo ao propor, em 1939, uma avaliação da inteligência por componentes verbais e não verbais, alterando o enfoque dos testes de inteligência, antes baseados somente na avaliação do raciocínio lógico e matemático. Sua contribuição foi tamanha para a psicometria que sua escala é usada até hoje, estando em constante processo de revisão e adequação de parâmetros.
Principais críticas
Mesmo assim, tanto o teste de QI quanto as escalas propostas por Wechsler ainda encontram resistência entre psicólogos e uma parte da população. Em seu artigo "A crítica desinformada aos testes de inteligência", a pesquisadora Carmen Elvira Flores-Mendoza Prado, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (Fafich-UGMG), fala sobre as principais críticas em relação ao uso do Quociente de Inteligência.
Uma das desconfianças mais marcantes é que os testes de inteligência não mediriam aquilo que se propõem a medir. Prado rebate essa ideia afirmando que os principais críticos dos testes psicológicos desconhecem as técnicas de análise fatorial, método usado para quantificação dos diversos parâmetros considerados nos testes de inteligência.
"A análise fatorial, como outras técnicas, tem sido aperfeiçoada com o passar dos anos, permitindo o desenvolvimento de formas de análise cada vez mais poderosas", escreve a pesquisadora. A autora do artigo ainda pondera dizendo que a inteligência é passível de ser medida por ser uma variável psicológica estável, ou seja, por estar presente em maior ou menor grau em diferentes atividades humanas.
Novas teorias
Em 1983, o psicólogo cognitivo Howard Gardner já havia levantado a bandeira contra a medição da inteligência ao propor em seu livro Frames of mind: the theory of multiple intelligences (Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas) a existência de diferentes formas de inteligência. Suas proposições ficaram conhecidas como "Teoria das Inteligências Múltiplas" e defendiam que as inteligências eram potenciais ativados ou não mediante determinado contexto cultural e, sendo assim, não poderiam ser quantificadas.
Gardner descreveu nove tipos de inteligência, sendo que cada uma se relacionava especificamente com uma habilidade ou forma de interação com o mundo. Eram elas: a inteligência emocional, musical, lógico-matemática, intrapessoal, interpessoal, espacial, cinestésica, naturalista e existencialista (estando as duas últimas publicadas em suas obras mais recentes). Pela diversidade de manifestações de comportamento inteligente seria impossível, para Gardner, que um teste conseguisse mensurar todas essas capacidades.
Atualmente, outra vertente da psicologia endossa as ressalvas feitas aos testes de inteligência. Trata-se da neuropsicologia cognitiva - corrente de pensamento que vem ganhando força nos últimos anos por meio dos avanços das neurociências e das ferramentas de estudo do cérebro. Seu objetivo é investigar as regiões cerebrais ativadas em diferentes circunstâncias e tarefas.
"Os métodos utilizados na avaliação neuropsicológica trazem ao profissional a questão do cérebro em funcionamento, dos mecanismos cerebrais que estão na base dos processos cognitivos e a consequência de uma lesão ou doença na esfera cognitiva, da personalidade e motivação. Os testes de inteligência não são úteis para esse fim", diz a psicóloga Mônica Carolina Miranda, pesquisadora do Núcleo de Atendimento Neuropsicológico Infantil da Universidade Federal de São Paulo (Nani-Unifesp).
Os estudos neurocognitivos envolvem ferramentas modernas, como a ressonância magnética, e possibilitam a visualização das regiões cerebrais que respondem a determinados estímulos. É por meio desses estudos que se pode avaliar o funcionamento do cérebro em atividade - possibilidade não abrangida pela psicometria. Outra ferramenta bastante promissora usada nos estudos de cognição é o teste neuropsicológico NEPSY - developmental neuropsychological assessment (avaliação neuropsicológica do desenvolvimento).
Publicado em 1998, essa bateria é composta por 27 testes, os quais pretendem avaliar cinco domínios cognitivos: atenção/função executiva, linguagem, função sensório-motora, processamento viso-espacial e memória/aprendizagem. De acordo com Miranda, no teste, analisa-se o desempenho para cada área do desenvolvimento da criança. "Isso é muito semelhante à bateria introduzida por Binet (escala Stanford-Binet), que avaliava as crianças com provas diferentes para cada faixa etária e estabelecia a idade mental, que seria a idade da criança no teste. Mas, infelizmente, já na primeira revisão substituiu-se essa análise pelo QI", explica.
O futuro dos testes
Mas por que, mesmo com diversas teorias e novas ferramentas, os testes que se utilizam do conceito de QI ainda mantêm sua popularidade? Prado, da UFMG, explica que os testes de inteligência capturam processos mentais importantes para a sobrevivência e desenvolvimento da espécie humana e que, desde o desenvolvimento da medição intelectual por meio dos testes de inteligência, há mais de um século, diversos estudos continuam a apontar a existência de uma forte associação entre o desempenho do indivíduo nesses testes e certos resultados em seu cotidiano social.
"A inteligência (medida pelos testes psicológicos) associa-se positivamente ao rendimento escolar, desempenho no trabalho, liderança, saúde mental, saúde física, longevidade etc. A inteligência é uma variável em princípio de forte determinação biológica. Não é uma construção social ou estatística", afirma.
Mas de acordo com Miranda, da Unifesp, "algumas baterias de inteligência, cujo resultado global é o Quociente de Inteligência, refletem um composto do desempenho em diferentes habilidades, mas devido à multiplicidade das funções cognitivas, o QI não é útil em descrever o desempenho cognitivo de uma pessoa, mas, sim, em auxiliar a presumir se há déficit global ou específico". Dessa forma, o QI seria uma ferramenta de auxílio para o estudo da inteligência, mas de maneira nenhuma poderia ser utilizado como único determinante dessa habilidade humana.
O debate entre as correntes persiste, mas existe consenso quanto à ideia de que cada análise tem seu valor e utilidade dentro dos estudos da inteligência. Uma pesquisa rápida em bancos de artigos científicos mostra inúmeras publicações que buscam estabelecer relação entre diferentes enfermidades e déficit de inteligência, usando para isso testes que expressam seus resultados por meio do Quociente de Inteligência.
"Diversos autores têm enfatizado que a avaliação psicológica tem objetivos e propósitos bem definidos (avaliação clínica, psicodiagnóstico, avaliação educacional, entre outros) que vão além da simples aplicação de testes, sendo parte de um processo", observa Miranda. "Mas trata-se apenas de um dos recursos da avaliação", conclui. O fato é que os estudos sobre inteligência e suas formas de medição ainda são um campo fértil para discussões científicas e filosóficas, as quais tendem a aumentar de acordo com o desenvolvimento de novos métodos e tecnologias para esse fim.
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