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Resenhas
Sob fogo cerrado
Filme sobre a revolução na Nicarágua retrata dilema de jornalistas entre se distanciar ou tomar parte no conflito que reportam
Susana Dias
10/10/2006

1979. Rafael, o líder da maior revolução popular democrática na Nicarágua – a Revolução dos Poetas – está morto. O presidente ditador Anastasio “Tacho” Somoza vai à televisão e aos jornais para dizer que a morte do líder anuncia o fim da revolução e sua vitória. Os revolucionários sandinistas, que há 50 anos lutam pela liberdade do país, pedem ao fotógrafo Russel Price (Nick Nolte) e à jornalista Claire Stryder (Joanna Cassidy), correspondentes da revista Times, que dêem vida ao líder, fabricando uma matéria que mostre que Rafael vive. Os dois jornalistas enfrentam, por algumas horas, o dilema de inventar ou não a notícia. Capitão Cinco explica aos jornalistas que, se o governo estadunidense achar que o líder está morto, enviará para Somoza US$ 25 milhões em armamentos. “Sou jornalista”, tenta argumentar Price, mas logo é interrompido pelo Capitão, que diz: “Não se trata de jornalismo. Precisamos mantê-lo vivo mais alguns dias. Quando a guerra terminar nada disso vai importar”.

O fotógrafo reluta em aceitar a proposta, diz que não manipula a realidade, apenas tira fotos. A repórter pensa no furo jornalístico que vai perder. Os dois conversam sobre a paixão pela causa dos revolucionários que os tomou durante a cobertura da guerra. “O que estamos fazendo aqui?”, pergunta Claire. Ninguém responde. Eles optam por produzir a matéria e assistimos à cuidadosa construção da prova de vida de Rafael: dois guerrilheiros, com seus rostos protegidos por máscaras, apóiam o líder; um deles segura o jornal La Prensa com a manchete “Somoza diz: Rafael está morto”. A foto ilustra a matéria “Rafael vive: eis a prova” e ganha capa de vários jornais. O líder, que nunca havia sido fotografado, tem suas imagens lançadas de avião no solo nicaraguense. Crianças correm pelas ruas, becos e vielas carregando fotos de Rafael aos gritos: Rafael vive! Ele voltou! O povo nicaraguense, o povo estadunidense, são convencidos de que o líder vive. Alimentados por essa chama de verdade os revolucionários persistem na luta. A verdade em si parece não interessar, mas sim a verdade inventada, negociada, que produz ressonâncias, porque estava viva na alma do povo da Nicarágua. O efeito de verdade, a potência da verdade jornalística, vai além dos fatos em si. A apresentação, a seleção, a organização dos fatos, das falas, das imagens produz uma verdade que precisa convencer. Esse é o momento de Sob fogo cerrado em que a noção de simulação do real e participação do jornalismo nessa simulação, ganha mais intensidade. Quando a potência no jornalismo em afirmar verdades múltiplas, verdades incompatíveis (o líder vivo e morto), se torna mais visível. Não são versões diferentes para o mesmo fato, mas fatos diferentes.

É o filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) que nos fala sobre essa noção da realidade como multiplicidade e do homem como vontade de potência. Potência como afirmação da criação de uma pluralidade de mundos, sempre inacabados, em ruínas. Uma construção incessante. Gilles Deleuze (1925-1995), inspirado em Nietzsche, cria o conceito de potência de simulação associando-o à linguagem e buscando reverter o conceito de simulação-simulacro de Platão. Para Deleuze, a linguagem, seja escrita, falada, fotográfica, não se opõe à realidade, antes a cria. Com esses conceitos, esses filósofos questionam as divisões entre verdadeiro e falso, original e cópia, essência e aparência. Para eles, o que interessa é o jogo de forças que se dá entre as múltiplas afirmações que existem no mundo. É interessante pensar a história de Sob fogo cerrado a partir desses conceitos.

A relação entre a morte as produções jornalísticas marca o filme. O diretor Roger Spottiswood usa a morte dos objetos fotografados por Price para provocar o pensamento sobre a relação entre o jornalismo e as noções de realidade-ficção- verdade. O foco de Sob fogo cerrado é mais intenso na fotografia que, mais do que o texto, produz um efeito de realidade, sendo usada no jornalismo como documento, como prova do real. Em meio aos bombardeios nas ruas destruídas de Manágua, Price carrega sua máquina em punho como um soldado, um revolucionário. A aproximação entre os jornalistas e soldados, revolucionários e espiões, compõe a trama. Os jornalistas aparecem como personagens da guerra, que nela também atuam, que a inventam, que a mantém, que colaboram no desenrolar dos acontecimentos. A guerra de informações. Price arrisca-se para obter as melhores imagens, para levar ao mundo fotos de guerras desconhecidas, desconsideradas por outros mundos. Atira seus cliques sobre pessoas, fatos, eventos. Os disparos da máquina produzem, literalmente, a morte dos objetos fotografados. A morte dos objetos, entretanto, não é o fim, mas o antes do nascimento. As fotografias geram o nascimento de outros-novos objetos, eventos, fatos, pessoas, realidades, mundos que não são mais os mesmos fotografados. A fabricação é inevitável. Russel Price vive a todo tempo o dilema de assumir ou não a interferência e a invenção da realidade com sua presença na guerra, com seus registros fotográficos. Assumir a construção da realidade não parece ser fácil, porque o desejo é ser verdadeiro. Entretanto, Sob fogo cerrado provoca ao mostrar que assumir a invenção do real não é fantasiar, imaginar, antes se opõe a essas possibilidades. A simulação do real, da qual a fotografia e a escrita jornalística participam, precisa convencer os leitores, mesmo quando as matérias são produzidas com base em “fatos reais”.

No início do filme, os jornalistas presenciam um ataque em uma boate. As imagens dos corpos despedaçados não são suficientes para uma matéria internacional, que quer denunciar a existência de uma guerra na Nicarágua completamente ignorada pela mídia dos EUA. O jornalista e âncora de TV, Alex Grazier (Gene Hackman), lamenta que mais uma visita do papa ao Egito ganhe espaço enquanto que a guerra na Nicarágua continua escamoteada. É preciso “provar” que a guerra está acontecendo, diz a repórter Claire na redação a uma nicaraguense, que lembra que eles vivem há mais de 50 anos nessa situação e ninguém faz nada.

Escrever, fotografar, é fazer escolhas. Todo o filme de Spottiswood levanta essa questão. Quando um espião francês da CIA está prestes a ser executado por jovens guerrilheiros todos pedem que Price fotografe a cena. “Registre a foto dele com uma bala na cabeça”, diz um dos jovens. “Tire a foto, tire a foto”, diz outro, nervoso. O espião francês pede que Price fotografe a cena. O fotógrafo se recusa. O francês grita “Sim. Sim. A foto de Rafael foi brilhante, mas eu estou vivo e inteiro. Um francês bonito de rosto simpático é assassinado a sangue frio enquanto lutava pela Europa e pela América”, diz. “Ganhará outra capa Price”, incita. “Vai tirar a foto da bala entrando no meu crânio ou saindo?”, provoca. Price dá as costas ao francês que ainda diz: “É só uma matéria”. Nesse diálogo a força da imagem que faz nascer uma outra/nova realidade ganha potência. Realidade que Price se recusa a fabricar.

No filme A montanha dos sete abutres, Billy Wilder também leva ao extremo a idéia da fabricação do real e a forma como os jornalistas participam nessa fabricação. Entretanto o jornalista Charles Tatum (Kirk Douglas) assume um posicionamento bem diferente dos jornalistas de Sob fogo cerrrado. Tatum (ou Chuck) é um jornalista sem escrúpulos, que deseja subir na vida e voltar aos grandes jornais. Assume-se como um grande mentiroso, que manipula, seduz, compra vários outros personagens para dar a notícia que deseja, quer chamar a atenção de outros veículos para sua matéria. Na primeira fotografia que tira do homem soterrado na montanha, a morte do “objeto” da notícia é anunciada. Em dois dias, no máximo, o homem poderia ser retirado dos escombros, mas o jornalista consegue aumentar a durabilidade do espetáculo, tempo necessário para atrair os “abutres” de outras redações e emissoras.

Mas a oposição entre os jornalistas desses dois filmes não é tão simples. A idéia de que os jornalistas tomam partidos diferentes, opostos, é abalada com a figura do soldado estadunidense (Ed Harris) no filme Sob fogo cerrado. Esse soldado sem nome inquieta, incomoda, não pela sua monstruosidade, mas pela sua estranha humanidade. Humanidade que toca Price, que não consegue denunciá-lo em inúmeras oportunidades que teve tanto na África, quando o soldado “pega carona” com a frente revolucionária, como nos conflitos na guerra da Nicarágua. “Bem vindo ao açougue de Somoza”, diz o soldado apontando para os corpos dos sandinistas. “Sem fotos, pega mal”. “É pago por hora ou por corpo?” pergunta indignado o jornalista. “Sou pago da mesma forma que você”, provoca. Price se revolta, agride o soldado e o deixa falando sozinho: “Queriam o quê? Nós estamos perdendo”. A imparcialidade aparece como outra idéia que mexe com as opções de Price no filme. Embora os jornalistas de Sob fogo cerrado pareçam assumir o “lado dos revolucionários” no decorrer do filme, chegam ao final sem delatar o soldado. Por vezes vivem a angústia de terem feito as “escolhas erradas” ou a dúvida de não saberem se fizeram as “escolhas certas”. O filme parece sugerir a dificuldade de perceber apenas dois lados nos conflitos, nas realidades, e tomar uma postura fechada, extrema, quando se entra de corpo inteiro numa matéria, como acontece com Clair e Price. O controle sobre o destino da produção, os usos que dela poderão ser feitos, também inquieta ao vermos que as fotos que o jornalista tirou dos revolucionários, quando assumiu sua vontade de ajudá-los na guerra, foram usadas para identificá-los e eliminá-los.