É difícil imaginar o mundo que conhecemos sem a escrita. A maior parte dos avanços científicos e tecnológicos, ao longo da história, está direta ou indiretamente associada ao armazenamento e transmissão de informações. Mas a escrita não esteve sempre presente: considerando a história do Homo sapiens, que tem por volta de duzentos e cinquenta mil anos de existência, ela é uma invenção bastante recente. Com toda a certeza, a linguagem oral precedeu muito o início da expressão dos homens através de símbolos gráficos. A razão do hiato entre a fala e a escrita deve se relacionar ao alto grau de abstração exigido por essa forma de expressão.
Inicialmente, os elementos gráficos utilizados eram apenas desenhos que representavam diretamente aquilo que se queria expressar, como mostram as pinturas rupestres. Assim, uma cabeça de um boi, por exemplo, representava esse animal. Três cabeças de boi representavam três bois, e assim por diante. Entretanto, por mais simplório que isso possa parecer hoje, para se criar e reconhecer os pictogramas, como são chamados esses símbolos figurativos, foi necessária uma grande dose de abstração do homem primitivo. Afinal, esses desenhos são uma representação bastante diversa da realidade, colorida e em três dimensões. E apesar da alta exigência cognitiva, é possível que a escrita tenha se iniciado diversas vezes, em diferentes locais, em épocas próximas, como ocorreu com quase todas as grandes invenções humanas.
Atualmente, acredita-se que a escrita foi criada através de um processo de evolução lento, que levou milhares de anos e foi gerado a partir da ideia de registro de propriedade ou objetos. Segundo Marcelo Rede, professor da Universidade de São Paulo (USP) especializado em história da Mesopotâmia, a teoria da criação única da escrita, cuja difusão posterior teria derivado em todos os outros tipos, não é plausível. Para ele, não há apenas uma razão para o aparecimento da escrita, e sim inúmeros fatores, dentro de um contexto histórico específico, que levaram as sociedades pré-históricas a desenvolverem esse modo de expressão.
“De fato, sobretudo como mostraram as pesquisas da arqueóloga Denise Schmandt-Besserat, desde o período neolítico, em plena pré-história, portanto, desde nove ou oito mil anos a.C., várias populações do Oriente utilizavam sistemas de registros para efetuarem o armazenamento de informações ou se comunicarem”, explica o professor da USP. Inicialmente, isso se deu através de pequenos objetos moldados a partir da pedra ou da argila, cujo uso ajudava no controle de produção e circulação de bens. Os chamados token representavam diretamente o artefato em questão, como uma pequena escultura da cabeça de um boi ou uma planta. Entretanto, às vezes eles tinham uma representação mais abstrata como, por exemplo, uma pedra redonda representando um boi. Numa fase posterior, os tokens passaram a ser envoltos por esferas de argila, as bullae. Segundo Rede, esse foi um avanço no sistema de informações. “Isso sugere um acréscimo importante na complexidade do sistema de registro, pois as bullae permitem reunir em seu interior vários tokens, formando uma espécie de unidade de conta, um arquivo de informações”, explica o historiador. Às vezes, os tokens eram impressos na argila, determinando o que esta continha, denotando uma complexidade ainda maior entre a representação e o próprio objeto representado. Com o passar do tempo, as bullae esféricas também desapareceram e surgiram tabletes achatados e, ao invés dos tokens, passaram a ser utilizadas apenas as impressões destes nos tabletes de argila. Os símbolos iconográficos impressos nesses tabletes de argila constituíram os sinais proto-cuneiformes, pois já se assemelhavam à forma triangular, de cunha, da escrita cuneiforme.
A escrita cuneiforme representa o mais antigo sistema de escrita de que se tem registro. Ela apareceu na região da Mesopotâmia – atual Iraque – e, para alguns estudiosos, estaria associada a uma língua única, o sumério, tendo sido criada para expressar os elementos linguísticos de maneira literária, narrativa. Por essa razão, muito estudiosos insistem em uma criação pontual ou única da escrita. “É uma visão que repercute muito e exagera a ideia de que o surgimento da escrita foi um verdadeiro divisor de águas, marcando o fim da pré-história e o início da história propriamente dita”, afirma Rede. Dentro dessa perspectiva, o historiador explica que, apesar de a maioria dos estudiosos acreditar que os hieróglifos egípcios sejam resultado de um processo local, alguns ainda acreditam que houve uma importação da ideia do registro da Mesopotâmia.
Embora não haja consenso quanto à forma como a escrita se originou, o mesmo não se dá para a invenção do alfabeto, que surgiu depois. “No caso do sistema alfabético, o processo de difusão funcionou largamente: originado, ao que tudo indica, na região do Levante (entre a costa de Gaza e a Turquia), as várias formas de alfabeto foram se derivando umas das outras e espalharam-se por todo o Mediterrâneo antigo, da Fenícia a Roma, passando pela Grécia. Assim sendo, as razões que levaram ao aparecimento da escrita variam conforme os contextos históricos e não há uma resposta única”, completa o professor da USP. Quando o alfabeto foi inventado, as formas escritas passaram a representar não mais coisas, mas os sons da língua falada. Segundo ele, o registro de uma língua não pode se esgotar na representação pictográfica, pelo simples fato de que nem todas as coisas podem ser representadas em símbolos pictóricos. Como Rede explica, em relação à escrita suméria: “Como dizer, a partir de uma imagem semelhante, o verbo “du” (“falar”) ou “gu” (“gritar”)? E como distinguir “gritar” (verbo) de “grito” (substantivo)? Ou “boca” de “palavra” (“inim”)? Do mesmo modo, como inserir as flexões de pessoa: eu falo, tu falas etc? Ou, ainda, como indicar tempo: eu falava, eu falo, eu falarei? Para tudo isso, um sistema puramente pictográfico se presta mal; é necessário introduzir sinais de abstração de vários tipos”.
Segundo Margarida Salomão, linguista e professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), na história da escrita ocidental, existiu um momento em que os sinais ideogramáticos, os hieróglifos egípcios, se convencionalizaram e, a partir disso, existiu uma simplificação. Os ideogramas simplificados passaram a ser interpretados foneticamente na escrita fenícia e, depois, na grega, que é basicamente a que perdura até os dias de hoje. “A escrita é baseada na significação. O primeiro período da escrita ocidental foi ideogramático, escrevia-se uma representação da significação. E depois, para obter-se mais capacidade expressiva, para evoluir-se tecnologicamente, é que de fato passou-se a fazer análise fônica, e hoje, tem-se a escrita fonética, que é a mais prática de todas”, explica Salomão. Para a linguista, a invenção da escrita conferiu uma dimensão de poder aos povos que a possuíam, pela perspectiva de avanço tecnológico advinda dela. “A partir do momento que se tem a escrita, passa-se a ter uma memória social. E, na verdade, os avanços tecnológicos obtidos foram pautados ou tiveram como patamar a sistematização e organização dos conhecimentos, que passaram a ser, inclusive, coletivamente partilhados. E quanto maior a disseminação dessa memória social, mais rápida e mais violenta se tornou a evolução tecnológica e científica”, completa.
Historicamente, junto com a escrita e logo no seu início, formou-se um grupo de especialistas da escritura, os chamados escribas. A cultura escribal foi uma das características das sociedades do antigo Oriente Médio. Para Marcelo Rede, da USP, foi a classe dos escribas que conferiu grande longevidade à escrita cuneiforme, que perdurou por mais de três milênios. Mas, enquanto parte deles se dedicava ao registro das coisas cotidianas, como contabilidade e correspondência, outros se especializavam em textos de áreas específicas do saber, como textos literários, textos em medicina, matemática e astronomia. “Não é, portanto, apenas uma questão de ler e escrever, mas de domínio de um campo de saber”, completa Rede. Tal saber não era totalmente difundido pela população, mas privilégio de poucos. Ainda assim, para além dos textos específicos redigidos pelos escribas, a sociedade mesopotâmica parece ter tido um grande número de pessoas capazes de registrar a vida cotidiana, que está muito bem documentada nos escritos cuneiformes. “A tal ponto que os textos cuneiformes formam o maior conjunto unitário de registros escritos antes da invenção da impressão por Gutemberg”, explica o professor da USP.
Entretanto, o aparecimento e a evolução da escrita não foi, e não é, uma característica de todas as sociedades humanas. Mesmo com o aparecimento e a evolução de diversos tipos de escrita, ainda hoje temos muito mais línguas faladas (cerca de 7000), do que línguas escritas, que são algumas centenas. Com certeza, questões históricas se encontram na base da discrepância entre o número de línguas escritas e faladas, em especial a estrutura da sociedade em que a língua escrita é usada. O linguista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), José Pereira da Silva, explica que apesar de as razões para o surgimento da escrita não estarem totalmente esclarecidas, um dos fatores em comum na maioria das sociedades foi a existência da agricultura, da permuta ou do comércio, o que exigia um alto grau de complexidade de governança, em que havia uma necessidade prática do registro. “Esses primeiros documentos eram, quase sempre, registros de bens e indicação dos seus proprietários e herdeiros. A contabilidade foi, de início, a atividade mais documentada por escrito”, completa. Por isso, os povos cujas sociedades eram menos complexas, como os índios americanos, que antes da chegada dos europeus eram coletores e caçadores, não desenvolveram a escrita – afinal, não havia uma grande necessidade da mesma. E isso se repete para os povos coletores e caçadores ainda existentes no mundo.
Se, por um lado, fatores históricos parecem predominantes para a invenção da escrita em uma sociedade, por outro lado, o grande número de línguas faladas com relação às escritas demonstra o grau de dificuldade da construção de um sistema de representação da fala. Na verdade, nossa expressão plena em um idioma exige habilidades distintas. A linguista Margarida Salomão, da UFJF, explica que o fato de sabermos ler em uma determinada língua, não significa que saibamos nos comunicar por ela escrevendo ou falando, ou que possamos compreendê-la através da audição. Ou seja, a escrita, a leitura, a fala e a audição são habilidades cognitivas distintas, muito embora relacionadas. Para termos competência em cada uma delas, é necessária a prática das diferentes habilidades.
Além da exigência de diferentes habilidades cognitivas, e talvez por isso mesmo, as línguas faladas e escritas também evoluem por caminhos diversos: é fato que em nenhuma língua há total concordância entre sons e letras. Para Margarida Salomão, enquanto a fala, que é a experiência cognitiva primária, evolui no tempo morfológica e fonicamente, a escrita fica presa à sua história, depende da ortografia vigente, que normalmente é conservadora. Sendo assim, a escrita sempre “fica para trás”, numa versão mais antiga da língua, o que gera a discrepância entre fala e escrita. “A escrita é datada historicamente. Como a língua prossegue mudando, do ponto de vista fônico, do ponto de vista morfológico, então a escrita é sempre uma versão mais velha da língua que se fala, e daí tem-se esse desacordo”, completa.
Em relação à língua escrita, podemos dizer que, historicamente, as línguas escritas nem sempre “evoluíram” de uma forma pictórica para uma forma abstrata, como em uma série de etapas pré-determinadas que foram alcançadas paulatinamente. Em especial, podemos dizer que a história da escrita no Ocidente, da qual viemos falando até então, não reflete necessariamente a história de todas as línguas escritas. “A evolução do pictórico para os símbolos concretos dos hieróglifos, por exemplo, para os abstratos que representam os sons, não é tão generalizada como nos parece. Pois, no Oriente, a escrita ideográfica ainda permanece”, diz José Pereira, da UERJ. E, certamente, em países como Japão, China, as Coreias do Norte e do Sul, entre outros, a escrita ideográfica ainda é utilizada.
Segundo explicação da linguista e professora da USP, Leiko Morales, a primeira aparição da escrita ideográfica ou logográfica chinesa é datada de meados do século VII, e tal maneira de registrar foi, depois, “importada” pelo Japão, onde apareceu na literatura japonesa do século VIII. Para Morales, as principais causas que levaram ao aparecimento da escrita no Japão foram a necessidade de desenvolvimento e de ser reconhecido como uma nação pela China, o grande centro cultural asiático da época. “No começo, era apenas um emprego fonético dos logogramas, respeitando-se o som chinês; mas à medida que os japoneses iam dominando e compreendendo o significado dos logogramas, começaram a atribuir leituras para os símbolos e, a partir daí, começa toda a complexidade”, explica a pesquisadora. “A partir do século IX a X, já surgem os hiragana e katakana, que são fonogramas, conhecidos como silabários, pois cada letra representa um som”, continua.
Nesse caso, a escrita ideográfica não foi nunca substituída, mas outros símbolos foram sendo acrescidos, conforme a necessidade. “Os pictóricos fazem alusão direta aos desenhos, depois estes passam a constituir partes de outros ideogramas ou logogramas mais complexos, mas não desaparecem em definitivo. Eles foram preservados e são utilizados até hoje”, completa. Dessa forma, no Japão, existiram desde o princípio múltiplas leituras dos mesmos ideogramas, por conta das traduções dos logogramas chineses. Na própria China, entretanto, as leituras dos logogramas podem ser diferentes, dependendo da época ou da região. Como ressalta Morales, “mesmo os sons chineses são vários, uma vez que houve incorporação de leitura de regiões e épocas diferentes, o que fez aumentar a multiplicidades de leitura sobre o mesmo ideograma”.
Certamente, a evolução da língua escrita é um tema de grande interesse. Nós, hoje, vivemos em um mundo cada vez mais dominado pela tecnologia e pela escrita, onde os relacionamentos, tanto pessoais quanto profissionais, vão muitas vezes se limitar ao contato via internet e onde as pessoas se “falam” apenas escrevendo. Além disso, os recursos da web oferecem uma grande oportunidade de disseminação e difusão da informação escrita. Nas palavras da professora Margarida Salomão, existe o “potencial para a universalização do conhecimento”. Entretanto, falar e escrever não são a mesma coisa. Enquanto vivemos em sociedade, todos aprendemos a falar, ainda bem jovens, tendo como instrutores as pessoas próximas junto às quais crescemos. Por outro lado, a escrita tem que ser ensinada, normalmente em escolas, por pessoas que também foram treinadas para tal. Existe uma “formalidade” na aquisição da escrita, uma intencionalidade, uma vez que não aprendemos a escrever simplesmente convivendo com quem escreve. Essa intencionalidade também existiu na criação das línguas escritas e em sua evolução, para acompanhar o ritmo das sociedades e as várias modificações que a própria língua falada foi sofrendo.
Não há dúvida de que a invenção dessa forma de expressão delineou a história do mundo desde a sua criação e propagação até alcançar a nossa condição atual, de “aldeia global”, na qual pessoas de culturas diversas e regiões muito distantes geograficamente entre si, podem se comunicar através do mesmo tipo de escrita numa mesma língua, que por sua vez também foi ainda mais disseminada. Dos desenhos pictóricos à era da informação, a história da escrita é um capítulo fundamental na história da humanidade. Tudo que conhecemos hoje, que transforma e valoriza nosso mundo, os livros, os filmes, a internet, a ciência, entre tantas outras coisas, só existe devido ao sucesso dessa ferramenta. “Eu considero que a invenção da escrita tenha sido a mais importante de todas as evoluções tecnológicas da humanidade, porque sem ela, é muito difícil imaginar que as outras tivessem acontecido”, conclui Salomão.
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