A celebração do
Ano Internacional da Química visa construir uma nova imagem da química junto à
população que a traduz como uma ciência para iniciados, a qual está associada a
materiais tóxicos, responsáveis pela poluição e por grandes desastres
ambientais. Neste ano, os químicos do mundo inteiro estão desenvolvendo ações
para demonstrar como o seu trabalho tem contribuído para
a qualidade de vida, o desenvolvimento econômico e a redução de problemas
ambientais. Essa preocupação tem sido compartilhada pelos educadores químicos
que, nos últimos cinquenta anos, têm desenvolvido pesquisas em educação
química, buscando desmistificá-la como ciência inacessível e popularizando o
seu conhecimento para um uma vida melhor.
As pesquisas em
educação química têm identificado as dificuldades no processo de ensino e
aprendizagem dessa disciplina e, a partir de referenciais teóricos, têm
desenvolvido propostas de atividades pedagógicas que se demonstraram eficientes
no processo de aprendizado. Assim, têm sido desenvolvidas práticas de ensino
que rompem com o método tradicional de ensino baseado quase exclusivamente na
apresentação oral, pelo professor, da linguagem química, por meio de fórmulas
desenhadas no quadro negro, as quais se apresentam demasiadamente abstratas
para as pessoas que não conseguem traduzir o significado dessa simbologia.
As práticas
pedagógicas que vêm sendo desenvolvidas com as pesquisas de ensino de química
são centradas na apresentação de atividades simples de processos químicos em
que, a partir da observação dos estudantes, os professores os auxiliam a
elaborar modelos explicativos. Partindo da observação macroscópica, os
estudantes constroem modelos microscópicos que explicam os fenômenos
observados. Esse processo é feito por meio de uma linguagem com a qual os
estudantes vão aprendendo a representar as substâncias e os seus constituintes.
Esse ensino se inicia também a partir das ideias dos alunos que são exploradas
e reelaboradas, incorporando a linguagem química. Isso significa substituir
aulas monótonas, centradas nos professores, por aulas em que os estudantes são
ativos e interagem com o professor, construindo o seu conhecimento.
Para evitar
dificuldades no aprendizado de química, busca-se uma linguagem mais precisa,
evitando-se analogias animistas, que tratam átomos e moléculas como seres
vivos; além disso, evitam-se cálculos complexos e a memorização de nomes,
números e processos que facilmente podem ser consultados em livros e tabelas.
Isso torna o ensino menos complicado. Para tanto, os pesquisadores em educação
química têm se dedicado na produção de materiais didáticos, evitando abordagens
que dificultam a aprendizagem da química e usando linguagens apropriadas que a
facilitem.
Mas para
aprender química, não basta ter atividades experimentais, aulas interativas e
livros didáticos bem escritos. É preciso que os estudantes compreendam também
como o conhecimento químico tem sido produzido nos laboratórios. Para isso,
entendemos que as aulas de química apresentem a história dessa disciplina, de
modo a evidenciar que ela foi construída coletivamente, em contextos sócio-históricos
que favoreceram o desenvolvimento de algumas teorias em detrimento de outras,
motivadas por demandas sociais. Essa visão histórica visa desenvolver uma
imagem da química que não seja dogmática, neutra e linear. Identificar o
caráter histórico, provisório e social da ciência é demonstrar que ela não é um
conhecimento privativo de iniciados e nem superior aos demais conhecimentos. Ao
contrário, o que se pretende é demonstrar que essa ciência tem limites e que o
seu saber é acessível também a outras pessoas.
O que se
pretende com essas metodologias de ensino não é que os estudantes dominem
plenamente a linguagem química, nem boa parte dos seus conceitos e das suas
teorias, afinal, a grande maioria dos estudantes não vai necessitar de
conhecimentos químicos específicos no exercício de suas profissões. Todavia,
todos continuarão a utilizar diariamente produtos químicos e serão solicitados
a emitir opinião sobre algum assunto relacionado à química. Nesse sentido, as
pesquisas em educação química também têm contribuído para ajudar os professores
a selecionarem conceitos fundamentais dessa ciência, essenciais para o seu
ensino nas escolas de ensino fundamental e médio.
Na seleção dos
conteúdos, os pesquisadores em ensino buscam não só os conceitos fundamentais,
mas a compreensão da revolução tecnológica que a química tem produzido. Com
isso, tem sido defendido um ensino renovado, que substitui os conteúdos
tradicionais de química descolados da vida dos estudantes por conteúdos
significativos, em que eles possam compreender as transformações que essa
ciência tem produzido. Assim, têm sido incluídos no currículo escolar temas
tecnológicos da química, o que faz com que os estudantes compreendam o seu
papel social.
Com esse tipo
de ensino, os estudantes passam a compreender que a nossa vida atual no planeta
tem uma enorme dependência em relação à química, a qual tem contribuído para o
aumento tanto da expectativa quanto da qualidade de vida. Pesquisas da química no
desenvolvimento de combustíveis têm contribuído para aumentar a eficiência
energética. Na produção de alimentos, a química tem provocado um aumento da
produtividade agrícola. O desenvolvimento de técnicas de diagnóstico, de
cirurgias, de fármacos e da engenharia biomédica é derivado de vários campos
conectados com a química, como a bioquímica, a biologia molecular e estrutural,
a fisiologia celular e a farmacologia. Os avanços da medicina também estão associados
à química de produtos naturais, cujas pesquisas têm produzido novos fármacos,
cosméticos e agroquímicos. O desenvolvimento de novos materiais tem sido o
alicerce para novas tecnologias com aplicações em diversas áreas, como em
materiais esportivos, por meio da confecção de bolas, redes, calçados, asas-deltas,
veleiros etc. A revolução da indústria eletrônica, com o processo de
miniaturização, ocorreu com o desenvolvimento de transistores, de baterias, de
placas com materiais semicondutores, como silício e germânio. A química tem
contribuído ainda no desenvolvimento de técnicas para reduzir o impacto
ambiental da ação humana, com o desenvolvimento de fontes alternativas de
energia, como os biocombustíveis. Aos poucos, as indústrias químicas têm se
tornado menos poluentes, aderindo a programas de proteção ambiental, com o
desenvolvimento de técnicas mais eficientes energeticamente e que reduzem a
emissão de resíduos.
Apesar de a química
ter contribuído de forma significativa para o aumento da qualidade de vida e
ter gerado empregos e desenvolvimento econômico, o modelo de desenvolvimento
tecnológico mundial no processo de globalização vem aumentando a concentração
de renda e a desigualdade social e provocando grandes acidentes. A química
aparece, nesse contexto, como vilã, sendo poucas vezes lembrada pela população
em geral como a responsável pelos avanços que tem produzido. De certa forma, a
população hoje tem concepções conflituosas que precisam ser clarificadas. O grande
impacto do desenvolvimento científico e tecnológico no século passado gerou nas
pessoas o mito de uma confiança cega na ciência e na tecnologia que traria a
esperança de uma vida melhor. Ocorre que esse desenvolvimento ocasionou sérios
problemas ambientais que contribuíram para a construção de uma imagem de visão
temerária em relação à química.
Grandes
acidentes propagados pela mídia, que envolveram a morte de milhares de pessoas,
contribuíram para essa visão temerária da química. Um exemplo foi a
contaminação por mercúrio na Baía de Minamata, no Japão, na década de 1950, que
levou ao registro de mais de mil óbitos dentre mais de doze mil pessoas
contaminadas. Outro exemplo ocorreu na Itália, em 1976, em Seveso, com o
vazamento de herbicida de dioxina, que provocou a evacuação de centenas de
habitantes da localidade. O vazamento de isocianato de metila, em 1984, em
Bophal, na Índia, matou 2.800 pessoas e deixou aproximadamente 200 mil feridos.
O incêndio na fábrica da Sandoz, na Suíça, em 1986, produziu nuvens tóxicas que
ameaçaram quatrocentas mil pessoas e a água usada para apagar o incêndio
arrastou para o rio Reno trinta toneladas de produtos químicos, matando a
população aquática do rio em uma grande extensão, incluindo países vizinhos.
Ainda em 1986, o acidente nuclear de Chernobyl obrigou a evacuação de 135 mil
pessoas da cidade, provocou a morte de 4 mil pessoas e contaminou 75% da
Europa.
Acidentes como
esses, que marcaram o final do século passado, bem como milhares de outros em
comunidades locais, por meio de vazamento de gases e efluentes em rios,
continuam a ser notícia diária em todo o mundo no presente século. O vazamento
de petróleo no Golfo do México em 2010 e os acidentes da usina nuclear de Fukushima,
no Japão, em 2011 são exemplos dos riscos tecnológicos que continuamos
enfrentando em nosso dia a dia.
A dependência
da química em nossas vidas faz com que ela seja essencial na formação da
cidadania, que é outro foco de atenção dos pesquisadores em educação química.
Essa dependência vai desde a utilização diária de produtos químicos até as
inúmeras influências e impactos no desenvolvimento dos países, nos problemas
referentes à qualidade de vida, nos efeitos ambientais das aplicações
tecnológicas e nas decisões que os cidadãos precisam tomar. Vivemos em uma sociedade tecnológica mergulhada na química
e dela dependemos em praticamente todas as atividades humanas. Assim, as
práticas dessa ciência, que afetam e determinam o nosso modo de vida, não podem
ser conduzidas de forma neutra, isolada da sociedade, sem a participação dos
cidadãos.
Uma educação
científica comprometida com a cidadania precisa considerar que o
desenvolvimento tecnológico da química tanto tem trazido inúmeras contribuições
para o aumento da qualidade de vida como tem aumentado o risco e as
desigualdades sociais. Os cidadãos precisam compreender os avanços e
potencialidades da química para incentivarem investimentos na área, para lidarem
com os seus avanços e para repensarem o seu desenvolvimento de forma a diminuir
riscos e reduzir desigualdades.
A educação
científica que se tem defendido para popularizar a química significa engajarmos
os cidadãos em discussões críticas sobre ela. Toda a história da humanidade tem
mostrado que não basta o conhecimento técnico específico para que se possa
construir um novo modelo de vida social. Se nos limitarmos a celebrarmos os
benefícios da química, sem uma análise crítica de suas implicações sociais,
certamente pouco contribuiremos para a formação de cidadãos informados que
façam com que a química transforme o contexto global de dominação da sociedade
moderna.
Wildson Luiz
Pereira dos Santos é professor do Instituto de Química e da Faculdade de
Educação da Universidade de Brasília (UnB).
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