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Artigo
Jovens em três tempos: mobilizações no Brasil ontem e hoje
Por Paulo Cesar Rodrigues Carrano
10/04/2015

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades...
(Luís Vaz de Camões)

Estabelecer comparações entre diferentes gerações é sempre operação arriscada e que deve ser realizada com adequada cautela. A dimensão de risco encontra-se no difícil estabelecimento de quadros empíricos concretos de cada uma das épocas e no diferencial de tempos históricos, condições materiais objetivas e ambiência cultural de cada uma das épocas que se quer colocar no jogo da comparação. Não é incomum se encontrar análises comparativas que supervalorizam o presente, considerando-o inaugurador de práticas e sentidos superiores de ação coletiva em comparação com o passado. Descuida-se, assim, de reconhecer que o hoje é resultado de múltiplas mediações daquilo que se processou no passado e que nos permitiu chegar onde hoje estamos e também de nossa contemporânea possibilidade de imaginar futuros. Da mesma forma desequilibrada, é possível sobrevalorizar processos e acontecimentos de um passado heroico que seria “fundador” de formas e conteúdos superiores de se fazer movimento social e política. É neste último sentido que se ancoram muitas das análises que enxergam a “apatia” dos “jovens de hoje” diante da energia mobilizada pelos “jovens de ontem” – ou os adultos de hoje – que enfrentaram, por exemplo, a ditadura militar.

Tendo este alerta em mente, é possível seguir com a proposta deste artigo, que é a busca por pensar comparativamente a participação política de três diferentes gerações de jovens brasileiros. Pensar a juventude é reconhecer que existem diferentes formas e situações objetivas que condicionam o fato de ser jovem – diferentes juventudes. Significa buscar compreender como cada sociedade divide e representa esse momento da vida ou de que forma cada grupo social específico atribui sentidos e valores para aqueles que ainda não estão plenamente integrados na esfera da vida produtiva e da tomada de decisões. Deve-se considerar que essas atribuições são variáveis segundo cada tempo histórico. É preciso também estar atento para como os próprios sujeitos que são considerados jovens representam, encaram e experimentam o tempo de juventude e as diferentes maneiras de se entrar na vida adulta que são variáveis segundo as origens sociais de cada um.

Marialice Foracchi (1972) analisou sociologicamente o conflito de gerações naquilo que se convencionou denominar de a “rebelião da juventude”, em função, principalmente, das mobilizações estudantis que sacudiram boa parte do mundo ocidental a partir do ano de 1968. A citada cientista social paulista dispensou especial atenção ao movimento estudantil por considerar que este se constituía na forma predominante do fenômeno da rebelião juvenil na sociedade moderna. Seu pressuposto era o de que a juventude representa a categoria social sobre a qual incide, de um modo bastante particular, a “crise do sistema” das sociedades modernas. Na juventude e em seus comportamentos singulares estariam contidas as omissões, as contradições e os benefícios de certa configuração social de vida histórica e transitória que, ao esgotar-se, dilapidaria seu potencial humano e nele investiria suas perspectivas de sobrevivência.

Nesse sentido, a “rebelião da juventude” dos anos 1960 seria uma resposta possível à crise da sociedade moderna – caracterizada pela não realização das promessas de ascensão social e desenvolvimento – e o movimento estudantil, um fenômeno paradigmático dessa rebelião. No caso específico brasileiro, os jovens, e em especial aqueles organizados nos movimentos estudantis, enxergaram no combate à ditadura militar um horizonte de enfrentamento à contradição fundamental que interditava a liberdade e o estado de direito democrático. Algo pelo qual valia a pena se organizar e lutar, a despeito de todos os riscos.

Vive-se, hoje, inusitados processos de transição para a vida adulta que nem de longe lembram a antiga dependência e subordinação dos jovens em relação a seus pais. Contudo, ainda que o campo de liberdade tenha se alargado, a dependência dos jovens, especialmente a econômica, se constitui em entrave real para a conquista da autonomia entendida como conclusão do processo de individuação, ou seja, do indivíduo que passa a ser sujeito de seu próprio destino. Ou ainda, como diriam nossos pais: “dono do próprio nariz”.

Os “filhos da liberdade”, segundo feliz expressão do sociólogo Ulrich Beck (1989), voltaram a atenção para valores como a paz, o ambiente, os direitos humanos, dos animais, a autorealização, a liberdade de expressão e a cotidianidade. Estes também desconfiam das instituições e buscam se envolver em processos sobre os quais percebem que podem controlar diretamente sem delegar a representação política para terceiros. Alguns coletivos juvenis emprestam novos sentidos ao político e elaboram, com outras lógicas e sensibilidades, múltiplas formas e conteúdos de ação coletiva na experimentação da esfera pública. É preciso ampliar as investigações para que se possa aprofundar a compreensão sobre as maneiras pelas quais jovens participam da construção de novas esferas públicas comunicativas, ocupam o espaço público e contribuem para a redefinição dos sentidos da política.

Bringel (2013, p.48), enuncia dois grandes ciclos de ação coletiva que representariam padrões diferenciados de relações entre o Estado e sociedade:

(....) O primeiro emerge na década de 1970 e tem como inflexões importantes a alta intensificação do conflito de finais dos setenta, a queda dos militares e as Diretas Já, concluindo com o impeachment de Collor de Mello. O segundo ciclo acontece no início dos anos 1990, com novos atores e perspectivas de atuação. Enquanto o primeiro tende ao conflito, à ação coletiva menos institucionalizada e à autonomia e crítica ao Estado, o segundo busca mais a cooperação, a ação mais institucionalizada, uma aproximação maior entre movimentos sociais e Estado.

Breno Bringel (idem) ressalta ser ainda cedo para dizer qual o padrão de ator coletivo e movimento social que irá emergir das manifestações recentes, em especial, naquilo que diz respeito às relações sociedade-Estado.

De qualquer forma, as manifestações que tomaram as ruas e praças do Brasil em 2013, guardando nossas especificidades nacional e regionais, integram um amplo e diferenciado espectro do ciclo de protestos ocorridos em diferentes partes do mundo. O fenômeno, pela sua atualidade, e do qual ainda não podemos extrair todas as consequências, parece sinalizar para uma redefinição do espaço público sob o forte protagonismo de jovens que emitem sinais nem sempre claros, sem uma agenda coletiva comum, mas que se dirigem criticamente contra sistemas sociais, econômicos e políticos e, notadamente, para as precariedades da vida nas grandes cidades. Em alguma medida, pode-se dizer que no referido ciclo de protestos, jovens emitiram sinais antagonistas aos sistemas que interditam a vida no presente, constrangem a participação na vida pública e fazem do futuro um campo de incerteza.

Junto com as manifestações que ocuparam o espaço público das ruas e a esfera pública das diferentes mídias, chegaram também interpretações de perplexidade sobre o que se compreendeu como uma surpresa. Afinal, aonde estavam esses jovens que não se mobilizavam tão massivamente desde o impeachment do presidente Collor? Entre a visibilidade dos caras pintadas dos anos 1990 e as jornadas de junho de 2013 parece ter havido um abismo de envolvimento juvenil na vida pública. Em verdade, o que aconteceu foi a miopia do visível (cf. Melucci, 1989) que não permite compreender as ações coletivas e movimentos sociais para além de seus efeitos aparentes. É preciso olhar não apenas para os lugares tradicionais de participação social e política aos quais nos acostumamos a procurar os jovens engajados. O desafio é encontrar as redes submersas dos engajamentos e compreender os seus sentidos no presente para não nos tornarmos reféns desse efeito de ofuscamento que produz análises sobre movimentos apenas por aquilo que é evidente.

O estopim dos ciclos de mobilizações de rua em 2013 foram os protestos e interdições do trânsito organizados pelo Movimento do Passe livre (MPL) em São Paulo, que dramatizou uma das mais sensíveis dimensões da cotidianidade hoje, a mobilidade urbana. Não seria exagero dizer que esses protestos deram visibilidade à crise sistêmica do modelo neoliberal de desenvolvimento, ainda que, no caso brasileiro, este tenha sido atenuado com políticas sociais compensatórias e alguma mobilidade econômica e social das classes mais empobrecidas.

Uma outra dimensão comum dos protestos que eclodiram em 2013 foram as expressões de ativismos horizontalizados, que investem em tomadas de decisão por consenso e na visibilidade da presença dos corpos nos espaços públicos das ruas, praças e redes sociais da internet. As muitas imagens que circulam sobre os protestos evidenciam dispositivos de amplificação das críticas e que se manifestam na forma de múltiplas mensagens em cartazes, em tambores que marcam a presença dos corpos e a cadência dos protestos, em metáforas eloquentes de coletivos que projetam imagens em prédios e de velas que, acessas no espaço público, parecem querer iluminar o caminho e visibilizar indignações múltiplas.1 Os jovens contribuíram para gerar um espaço público mais democrático com suas destrezas e manejos das redes sociais e outras ferramentas da internet (blogs, twitter, streammings etc). Essas formas de comunicação alargaram e construíram dissidências no espaço público midiático dominado pelas grandes corporações midiáticas.

As redes sociais de internet são dispositivos que possibilitam a instantaneidade da resposta por agentes individualizados ou coletivos que possuem grande agilidade para produzir conteúdos mobilizadores que as mídias clássicas e corporativas, produtoras de conteúdos jornalísticos, tais como a televisão e os jornais, não têm. Através de publicações rápidas, comentários e mesmo o simples “like” do Facebook, se constroem cumplicidades entre diferentes atores envolvidos nos protestos e mobilizações.

O chamado midiativismo foi responsável pela elaboração de contra-relatos sobre as imagens negativas que as mídias hegemônicas e as autoridades se apressaram em construir sobre os jovens participantes dos protestos iniciados em junho de 2013. Esses contra-relatos velozes, possibilitados pelos aparatos tecnológicos e redes de comunicação da internet, foram capazes de atingir redes específicas e significativas de formadores de opinião que não estavam presentes nas insurgências estudantis e juvenis dos anos de 1968. É preciso reconhecer que há uma dimensão lúdica dos protestos recentes que já se fazia notar nos anos 1960 e 1970, como convergência entre radicalização da luta política e a contracultura da época (cf. Ryoki e Ortellado, 2004). Contudo, novas formas de expressão emergiram, disputando tanto a busca de atenção das mídias hegemônicas quanto criando seus próprios canais de visibilidade social e política. Esse é um fato que confere às mobilizações contemporâneas novidade que ainda nos cobra análises sobre seus alcances societários e consequências na esfera pública, que somente com o tempo poderemos equacionar.

As manifestações foram produtoras de empoderamentos pessoais significativos. Não necessariamente no sentido narcísico, mas na direção da percepção de que “a minha atuação” pode fazer diferença na política sem que “eu” necessite delegar para um representante o poder de atuação. A realidade parece dizer “meu corpo tem poder”, “minha voz pode ser ouvida” e “eu posso influenciar” na construção de mudanças. Os jovens percebem que mobilizar-se é algo que faz sentido, que influencia e que pode mesmo atemorizar as autoridades. E que individual e coletivamente é possível interromper o fluxo do cotidiano e alterar o ritmo da vida nas cidades. Há, sem dúvidas, inúmeras tensões entre os coletivos que precisam combinar os sentidos das novas expressividades na esfera pública e a necessidade de deliberar e organizar a luta política em bases horizontais. Contudo, parece haver entre jovens militantes de hoje a consciência de que uma nova sociedade está se fazendo aqui e agora, como cantou Elis Regina na música “Redescobrir”, de Gonzaguinha: no “suor dos corpos na canção da vida, o suor da vida no calor de irmãos”.

Paulo Carrano é doutor em educação e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordena o grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF e integra a diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd). E-mail: pc.carrano@gmail.com

Referências bibliográficas

Beck, Ulrich (ed.). Hijos da la libertad. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1999.
Bringel, Breno. “Miopias, sentidos e tendências do levante brasileiro de 2013”. Insight Inteligência (Rio de Janeiro), v. 62, p. 42-53, 2013.
Foracchi, Marialice M. A juventude na sociedade Moderna. São Paulo: Livraria Pionêra Editora, 1972, pp.19-32.
Melucci, Alberto. “Um objetivo para os movimentos sociais”. Revista Lua Nova – SP – junho, 1989, n. 17.
Ryoki, André e Ortellado, Pablo. Estamos vencendo! Resistência global no Brasil. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004.


1 Velas foram acessas na Cidade do México e mensagens foram projetadas em prédios públicos e residências de políticos no Rio de Janeiro. Esta última forma de protesto foi utilizada pelo “coletivo projecionista” no que se convencionou chamar de “Ocupa Cabral”, ocupação que se montou em frente à casa do governador do Rio de Janeiro Sergio Cabral, em 2013, para exigir o aparecimento do pedreiro Amarildo torturado e sequestrado por policiais militares na favela da Rocinha. E também para exigir a renúncia do governador frente à repressão dos protestos de rua no Rio de janeiro. O “Coletivo Projetação”, formado por 15 jovens, se destacou no cenário dos protestos. A página desse coletivo está disponível no seguinte endereço da internet: http://projetacao.org/