Introdução
O
recente estudo divulgado pelo Painel Interministerial sobre Mudanças
Climáticas (IPCC) mostra que os impactos do aquecimento global podem
ser dramáticos. Ainda não se pode ter certeza sobre as conseqüências de
longo prazo, pois o período de observação ainda é muito curto, mas os
efeitos serão múltiplos, pois tudo está relacionado à temperatura,
chuva, nível do mar, biodiversidade e outros elementos que serão
diretamente afetados pela mudança climática.
Já
existe consenso sobre a irreversibilidade do processo e o máximo que se
conseguirá nas próximas décadas é evitar que as mudanças climáticas
sejam ainda mais dramáticas. Assim, a discussão sobre adaptação e
ajuste às mudanças começa a ganhar maior peso, já que antes o foco
estava quase inteiramente voltado para a questão de como evitar as
emissões. Não deixa de ser irônico que, agora, a natureza venha cobrar
o preço de séculos de abuso humano. Porém, infelizmente, essa “Vingança
de Gaia” está longe de obedecer qualquer critério de justiça: os países
tropicais, que são os menos responsáveis, serão os mais dramaticamente
afetados. Como o Brasil está situado em partes relativamente quentes do
planeta e tem dimensões continentais, os impactos serão consideráveis,
inclusive na economia, cuja discussão é o objetivo deste artigo.
Nova agricultura
O
setor econômico mais diretamente afetado deverá ser a agropecuária,
pois é dependente das condições de temperatura e precipitação. É
importante frisar que a previsão é de aumento não apenas na média da
temperatura, mas também em sua variância. Por isso, a incidência de
eventos extremos deve aumentar, como verões ou invernos
excepcionalmente chuvosos ou secos, quentes demais ou de menos. Essas
oscilações terão diferenças regionais importantes e, seguramente,
levarão a uma redivisão do mapa da produção agrícola.
Estudo
recente do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe) sugere que o
maior prejuízo tende a concentrar-se onde a temperatura já é muito
alta, que é o caso das regiões Norte e Nordeste. Segundo o estudo,
haverá um deslocamento de cultivos que não aceitam temperaturas muito
altas, para regiões como o Sudeste e o Sul. O documento explica ainda
que se os cenários mais pessimistas estiverem corretos, a Amazônia
sofrerá um dramático aumento de temperatura, tornando as regiões de
entorno mais áridas. Como a expansão da fronteira agrícola tem se
concentrado justamente nessas bordas, no chamado “arco do
desmatamento”, deverá ocorrer uma reversão da ocupação dessas áreas. A
queima de vegetações nativas tem sido a base para essa expansão, mas é
também a principal fonte de emissões de gases de efeito estufa no
Brasil. Ao tornar o clima mais árido, com a “savanização” da Amazônia,
a capacidade produtiva será fortemente atingida, podendo tornar ociosa
a expansão de infra-estrutura na região, um dos pontos mais polêmicos
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo Lula.
No
semi-árido nordestino, o problema das secas tende a ficar ainda mais
dramático, visto que a elevação da temperatura pode tornar a região
ainda menos chuvosa. Sem dúvida, os mais afetados serão os agricultores
familiares, em geral de subsistência, deixando as condições de vida nas
áreas rurais ainda piores. Isso poderá aumentar a dependência de
programas de assistência social para manter condições mínimas de vida
na região.
O
Centro-Oeste foi a região onde se concentrou a maior expansão da
agricultura. Mas essa tendência pode ser alterada se as previsões de
aumento de temperatura e redução de chuvas realmente aconteçam, gerando
importantes conseqüências sociais e demográficas.
O
Sudeste e principalmente a região Sul deverão ser menos afetados,
porque têm clima mais ameno e as práticas de irrigação são mais
difundidas. No entanto, o efeito líquido dependerá da natureza do
cultivo. Mas mesmo áreas que sofram aumento relativamente moderado de
temperatura poderão ser afetadas. Diversas bacias são abastecidas
direta ou indiretamente pelas caudalosas chuvas amazônicas, fazendo com
que a oscilação de temperatura e chuvas possa acontecer em qualquer
região. A incidência de eventos extremos, como ondas de calor ou
geadas, pode também trazer prejuízos para a atividade.
Mudanças na infra-estrutura
Se
o regime de chuvas for alterado, todas as atividades relacionadas aos
corpos hídricos serão afetadas. O Brasil é um país fortemente
dependente de hidreletricidade, e onde ocorrer redução de chuvas haverá
problema na geração de energia. A captação de água pode ser
prejudicada, sendo necessário aumentar investimentos em saneamento para
evitar transbordamento dos sistemas de captação e tratamento de esgoto em casos de cheias.
Isso indica que provavelmente será
necessário expandir a capacidade da construção civil, pois a maior
incidência de eventos climáticos extremos resultará em maior número de
acidentes – inundações, deslizamentos, erosão – cuja prevenção ou
mitigação irá exigir obras significativas. O relatório do IPCC,
divulgado em fevereiro, indica que haverá aumento de chuvas e ventos no
litoral brasileiro, bem como da intensidade das tempestades
extratropicais, fenômeno que atinge as regiões Sul e Sudeste. Em 2004,
o desastre do Catarina, primeiro furacão observado no Atlântico Sul,
mostra que os danos para a infra-estrutura podem ser enormes, bem como
a necessidade de serviços de assistência para calamidades.
A
demanda por serviços de construção civil aumentará porque a elevação do
nível do mar provocará a realocação de populações costeiras, obrigando
um novo desenho do mapa dessas áreas. Os efeitos mais dramáticos
deverão ocorrer nas regiões próximas a deltas de rios e outras áreas
que já sofrem variações consideráveis de maré.
Outros setores
O
setor de saúde pode sofrer um grande efeito, pois o que se espera é o
aumento de incidência das doenças tropicais. Deverão se alastrar, por
exemplo, doenças tropicais transmissíveis por vetores, como malária e
dengue, além de doenças de veiculação hídrica. Surtos epidêmicos estão
associados a desastres naturais, como enchentes, visto que o
abastecimento de água tratada e a coleta de esgoto ficam comprometidos.
O
mapa do turismo também pode sofrer modificações, especialmente nas
áreas costeiras, que concentram a maioria dos turistas. Isso vai gerar
efeitos de encadeamento em diversos setores de serviços associados (hospedagem, alimentação, transporte, entre outros).
Mesmo
setores que aparentemente estão distantes do mundo natural acabarão
sendo afetados. Um exemplo é o setor de seguros: a maior incidência de
desastres levará à necessidade de se precaver contra o aumento de
sinistros. Não é por acaso que as empresas de resseguro (que são as
“seguradoras das seguradoras”) estão investindo fortemente em estudos
sobre conseqüências esperadas do aquecimento global.
Possibilidades de mitigação: projetos de desenvolvimento limpo
Efeitos
econômicos positivos podem ser esperados em função dos investimentos
visando reduzir emissões de gases de efeito estufa. O Brasil já se
destaca como líder em projetos de gerenciamento de lixo para obter
créditos de carbono através da redução de emissões de metano, através
do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). O metano (CH4) possui um poder de aquecimento global muitas vezes maior que o dióxido de carbono (CO2)
resultante de sua combustão. Por isso, a queima do biogás, que escapa
dos depósitos de lixo (muito rico em metano) reduz o aquecimento
global, além de poder gerar eletricidade. Investimentos na gestão de
resíduos sólidos podem gerar aporte financeiro importante para ajudar a
resolver um problema que tem forte apelo social, melhorando as
condições de vida da população e ao mesmo tempo gerando energia e
soluções de desenvolvimento.
Projetos
de conversão de plantas industriais visando reduzir emissões de gases
de efeito estufa resultantes da atividade manufatureira, como óxido
nitroso (N2O) e hidrofluorcarbonos (HFCx) deverão
atrair projetos de desenvolvimento limpo. Esses gases têm grande poder
de aquecimento global, e a redução nas suas emissões podem gerar grande
volume de créditos de carbono.
Uma
outra possibilidade são projetos de reflorestamento que podem capturar
carbono na atmosfera através de fotossíntese. Esse princípio é válido
tanto para vegetações nativas quanto exóticas, e, por isso, atividades
que já investem em silvicultura poderão se beneficiar de créditos de
carbono. Mas pelo regimento estabelecido pelo Protocolo de Quioto, há
limitações para a quantidade de créditos de carbono que podem ser
gerados dessa forma. No caso brasileiro, ações que reduzam o
desmatamento seriam as que mais contribuiriam para diminuir emissões de
gases de efeito estufa. Contudo, esse tipo de atividade não é
considerado elegível para obtenção créditos de carbono, gerando sérias
dificuldades para financiar projetos privados voltados para a
conservação florestal. Por isso, o setor público deverá continuar
liderando os programas de detenção de queimadas e criação de áreas de
conservação.
Não
existem restrições para projetos de energia renovável. O problema é que
a matriz energética brasileira já apresenta uma elevada participação de
hidreletricidade e por isso o espaço para substituir fontes
termelétricas é relativamente limitado a sistemas isolados que se
encontram, em sua maioria, em áreas remotas. A expansão da geração
hidrelétrica tem como barreira a crescente preocupação sobre os
impactos ambientais de novas usinas e linhas de transmissão, em
particular sobre biodiversidade e populações deslocadas.
Do
mesmo modo, o Brasil também dispõe de alta participação de combustíveis
renováveis de origem vegetal, principalmente álcool combustível. Existe
espaço para aumento na participação de biocombustíveis no mercado
doméstico, especialmente se o preço do petróleo continuar elevado e o
governo federal mantiver o biodiesel como prioridade. Mas as
expectativas de crescimento de demanda de biocombustíveis são motivadas
principalmente pela crença no aumento das exportações para países
desenvolvidos que queiram reduzir suas emissões de combustíveis
fósseis. Entre as possíveis vantagens, aponta-se o apoio à produção
familiar no programa do biodiesel, a contratação de mão-de- obra para
corte da cana e a geração de divisas com a expansão das exportações.
Diante
deste cenário deve-se ter muito cuidado com os reais impactos da
produção dos biocombustíveis em larga escala. O aumento previsto de
produção requer um incremento considerável das áreas de cultivo,
podendo resultar em aceleração do desmatamento – o que agravaria o
aquecimento global, ao invés de reduzi-lo. Mesmo que tal expansão se
localize em áreas já desmatadas, pode ocorrer um processo de incremento
no preço da terra, deslocando outras atividades para a fronteira
agrícola. Por exemplo, uma pastagem pode ser convertida em plantação de
cana para etanol ou de soja para biodiesel (o que, a princípio,
ajudaria a reduzir o consumo de petróleo), mas o resultado final pode
ser a queima de florestas para abrigar o rebanho deslocado, ou seja,
emitindo muito mais do que se espera reduzir com os biocombustíveis. É
bastante comum ouvir dos defensores do etanol e do biodiesel que há
muitas áreas já desmatadas que podem ser utilizadas para esses
combustíveis, mas não existe nenhum plano de ação para impedir o
“vazamento” do desmatamento na fronteira agrícola, nem mesmo menção aos
possíveis efeitos indiretos do crescimento do preço da terra. Se
for comprovado que a produção do biocombustível está associada ao
desmatamento (e também à redução da biodiversidade), é muito provável
que a esperada explosão de demanda externa não se verifique, e o setor
entre em crise.
Do
mesmo modo, há outros problemas que costumam ser omitidos quando são
apresentados os benefícios dos combustíveis “verdes”. É muito pouco
provável que a pequena produção familiar produza oleaginosas em escala
suficiente para atingir as metas programadas pelo governo, e o “grosso”
da produção de biodiesel deverá ser oriunda de grandes plantações
mecanizadas. Há muitas dúvidas sobre o apelo “social” do biodiesel e,
se as condições atuais de financiamento e apoio ao agricultor forem
mantidas, o resultado final pode ser ainda mais concentração fundiária.
Também há sérias dúvidas sobre o apelo social da cana, visto que sua
produção é concentrada em grandes propriedades e o corte manual deverá
ser abolido com o tempo, não só pelas duras condições de trabalho mas
também porque a pré-queimada (necessária para facilitar a entrada
humana no canavial) gera poluição atmosférica numa extensa região em
torno da plantação, causando danos à saúde de trabalhadores e moradores
de áreas próximas.
Desenhar
instrumentos de certificação que atestem que o biocombustível foi
obtido de forma ambientalmente e socialmente adequada é uma estratégia
que deve ser pensada desde agora para evitar problemas futuros sobre a
efetiva contribuição para a redução do aquecimento global. Mas é
ilusório supor que a expansão de monocultivos em larga escala (seja de
cana, soja ou mamona) levará o Brasil a uma trajetória de
desenvolvimento sustentável.
Carlos Eduardo Frickmann Young é professor associado do Instituto de Economia – UFRJ e Priscila Geha Steffen é jornalista
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