Lojas de departamentos de vários andares, shopping centers que oferecem todos os tipos de serviços, boutiques finas que servem champanhe aos clientes, pequenas lojas que vendem toda sorte de produtos por menos de R$ 2,00. Há décadas consumir deixou de ser um simples ato de subsistência para ser identificado com uma forma de lazer, de libertação e até mesmo de cidadania. Homens e mulheres são levados a consumir, mesmo sem necessidade, apenas pelo simples ato de comprar. Para alguns pesquisadores, consumir é indispensável para fazer a economia girar e os países se desenvolverem. Para outros, o consumo desenfreado é uma grave doença moderna, com complicadas conseqüências para a sociedade e para o meio ambiente.
O consumo é considerado, por alguns economistas, como a "mola propulsora" da economia mundial. Consumir geraria demanda, que por sua vez geraria maior produção por parte das indústrias, estimulando o surgimento de novos empregos, o aumento de salários e até mesmo o investimento em novas tecnologias para aprimorar a produção. Isso significaria mais trabalhadores, com salários melhores, que também seriam levados a consumir, formando um ciclo que manteria a economia aquecida e contribuiria para o desenvolvimento dos países. Por muito tempo, essa foi uma corrente de pensamento econômico predominante nos países capitalistas. Mas esse modelo neoliberal, que tinha os Estados Unidos como seu principal representante, está sendo cada vez mais questionado.
A crise econômica que os Estados Unidos enfrentam atualmente coloca em dúvida esse modelo econômico fortemente baseado no consumo, pois evidencia sua instabilidade. A crise, desencadeada pelo setor imobiliário, levou os bancos norte-americanos a entrarem em colapso – muitos quebraram e outros precisaram pedir ajuda ao governo para seguirem ativos. Nesse cenário, as instituições financeiras tiveram que reduzir drasticamente o crédito ao consumidor, o que acarretou na queda do consumo e de toda a atividade econômica do país. Para conter a crise, o governo norte-americano lançou um pacote centrado no consumo da população. Uma das medidas do pacote determina a devolução de impostos à população como uma forma de injetar dinheiro na economia e esquentar o consumo. Se o baixo consumo representa um problema que agrava a crise nos Estados Unidos, no Brasil ocorre o exato oposto: o aumento do consumo da população está preocupando o governo, que teme a volta da inflação. Para evitar que isso ocorra, o governo brasileiro já está pensando em medidas que desestimulem o consumo e possam conter a alta dos preços. Mas não é só o Brasil e os Estados Unidos que enfrentam problemas econômicos relacionados ao consumo: o desemprego e a alta dos preços são sinais de desgaste do modelo que já despontam em diversos países da Europa, enquanto a desigualdade social conseqüente desse sistema mostra que ele está ficando cada vez mais inviável para os países da América Latina e da África.
“Estas relações geram impacto visível na economia, mas há um impacto ainda maior e mais grave na sociedade e sobre o meio ambiente”, aponta Aloísio Ruscheinsky e Mariana Ocaña Madruga, sociólogos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) . Segundo os pesquisadores, um dos principais impactos que esse estímulo ao consumo causa é o distanciamento entre ricos, que podem “consumir mais”, e pobres, que lutam para poder consumir o mínimo. “Esse fenômeno, por ironia da história tem como decorrência o aumento das desigualdades e do contingente da população na faixa da pobreza”.
“As relações sociais escravizaram-se pelo dinheiro e pelo poder de consumo”, afirma Valquíria Padilha, socióloga da USP e a utora do livro Shopping Center: A catedral das mercadorias . A socióloga explica que o cidadão foi reduzido a consumidor através de uma série de estratégias que construíram o capitalismo e o neoliberalismo. Como parte dessa estratégia, o Estado liberal foi deixando ao mercado responsabilidades que deveriam ser suas, como fornecer saúde, lazer, educação e infra-estrutura de qualidade. A conseqüência disso é um número cada vez maior de pessoas, principalmente de classe média, pagando, além dos impostos, planos de saúde privados, escolas privadas, pedágios e segurança privada. “Os ricos e endinheirados podem comprar conforto, segurança (ou ilusão de segurança), educação, saúde e lazer, mas os pobres morrem nas filas de hospitais públicos, ficam adultos analfabetos ou semi-analfabetos, não têm esgoto, água encanada, dentista, boas escolas”, declara. E conclui: “Quem não tem dinheiro não tem cidadania”.
Dessa forma, o consumo acabou se tornando um fator importante de construção de representações sociais. Ao comprar, não apenas se adquire um produto ou um serviço, mas define-se o status, e mesmo a identidade, de um indivíduo. É o “compro, logo existo”, uma forma do indivíduo se posicionar – e se diferenciar - dentro da sociedade através do que consome. “Aquilo que você veste, come e bebe define socialmente quem você é, onde você está e até onde pode ir. Desta forma, cria-se um mito cultural: aquele que maiores condições financeiras obtiver ‘irá mais longe'”, destaca Ruscheinsky. “ Os impactos psicossociais dessa lógica de vida são bastante complicados, porque o valor do ser humano é reduzido ao seu poder de compra. Quem tem carro importado é melhor, quem se veste com roupas da moda é gente de respeito e assim por diante”, concorda Padilha.
Comprando felicidade
Não é preciso apenas consumir para existir, mas é preciso consumir para ser feliz. Nessa lógica, vale tudo para se realizar um sonho de consumo: fazer horas-extras, “bicos” ou prestações a perder de vista. “É como se os objetos fossem capazes de propiciar o bem-estar social e a segurança que tanto se reclama e proclama”, aponta Ruscheinsky. Assim, busca-se a realização pessoal e a felicidade através do consumo. A sociedade de consumo vende a satisfação dos desejos individuais, mas desperta nos consumidores a cada momento novos desejos a serem satisfeitos, fazendo-os querer (e consumir) sempre mais. “O vazio existencial cavado pela complexidade dos relacionamentos psicossociais não se preenche facilmente com bolsas, celulares e carros. Se a felicidade prometida pela sociedade de consumo fosse real, nós não estaríamos vivendo uma sociedade tão violenta como a nossa. A violência física e simbólica são frutos da desigualdade e da perversidade da sociedade de consumo que elege os endinheirados como os sortudos da ilha da fantasia ”, alerta Padilha.
Para compreender a dimensão do consumo na vida moderna, é preciso vê-lo como uma prática social e cultural complexa e importante. “O acesso aos bens de consumo são parte das lutas pela eqüidade e das lutas pela qualidade de vida, em especial, as lutas pelo direito de escolha do tipo de vida que queremos viver. Nesse sentido, consumo e cidadania são inseparáveis, já que ambos criam e fortalecem sentimentos de pertencimento a um grupo social”, explica Fátima Portilho, socióloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro do grupo de pesquisa Sociedades e Culturas de Consumo e autora do livro Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania . A partir dessas considerações, não é mais possível pensar o consumidor como uma simples vítima manipulada pela propaganda, ou como uma pessoa superficial e alienada. Ao contrário, a tendência atual é que o consumo seja, cada vez mais, associado ao desejo de “fazer alguma coisa” e de participar da vida e dos problemas coletivos. “Ninguém quer apenas sobreviver biologicamente consumindo ‘produtos indispensáveis', mas viver, ou seja, ter prazer, ter uma identidade, escolher, se expressar... E quem definirá o que é ‘consumir para sobreviver', o que é supérfluo, o que é necessário, o que é indispensável?”, diz a socióloga.
“O consumo é indispensável na vida de todos os cidadãos. O que está em discussão é a tipologia, o significado e o montante do consumo. Principalmente no que diz respeito às produções que envolvem matérias-primas há uma crescente preocupação. A finitude dos recursos naturais é evidente, e é agravada pelo modo de produção regente, que destrói e polui o meio ambiente.”, diz Ruscheinsky. “O consumo é indispensável e cumpre diversas funções sociais, mas, nos níveis e padrões atuais, e em expansão, precisa ser modificado em direção a formas mais sustentáveis, tanto do ponto de vista social quanto ambiental”, concorda Portilho.
Repensando o modelo
O modelo da sociedade de consumo está tão enraizado na sociedade contemporânea que alguns pesquisadores já chegaram a afirmar que ele é irreversível. Porém, Padilha discorda: “Nada é irreversível quando se pensa em sociedade”. Para a pesquisadora, a atual crise nos Estados Unidos é um sinal de que esse modelo deve começar a ser repensado. “O produtivismo e o consumismo desenfreados são insustentáveis por mais tempo. O primeiro e mais importante limite dessa cultura do consumo, que estamos testemunhando hoje, são os próprios limites ambientais. O planeta não suportaria se cada habitante tivesse um automóvel, por exemplo. Psicológica e sociologicamente também não será suportável por muito mais tempo essa lógica de produção e consumo destrutivos a que estamos sujeitos hoje”, afirma.
“O espaço para discussão sobre o modo de produção e hábitos de consumo tem crescido muito atualmente, mesmo que ainda não tenha atingido a abrangência desejada e os resultados necessários para processos sustentáveis e processos reversíveis de uso dos recursos naturais”, declara Ruscheinsky. Porém, apesar de estar sendo colocada em cheque, ainda é preciso muita discussão e reflexão para se mudar a sociedade de consumo. Esse modelo possui uma estrutura complexa e precisaria da ação de vários atores para se alcançar uma mudança significativa. De acordo com os pesquisadores, é preciso trabalhar em vários níveis – do consumidor, da empresa e do Estado – para que haja uma alteração no sistema. Os consumidores precisam ser informados e conscientizados, buscando promover uma “mudança de hábito” que controle os efeitos do consumo desenfreado. As empresas, igualmente, devem procurar agir rumo a uma produção sustentável. E o Estado, através da promoção de políticas públicas, deve exercer diversas funções regulatórias, inclusive com as chamadas políticas de consumo sustentável (eliminação de subsídios, compras sustentáveis, políticas de estímulo ao transporte coletivo etc.).
Apesar de ainda não existir um modelo alternativo forte que possa substituir a sociedade de consumo, existem caminhos diversos que podem ajudar a torná-la mais sustentável. Portilho afirma: “ A ‘alternativa' parece ser uma tendência à consideração do papel dos diversos atores (Estado, empresas, consumidores individuais, mídia, ONGs) que interagem no mercado e da redução das desigualdades de poder entre eles, em especial o consumidor, que nada mais é do que o cidadão nas relações com o mercado em expansão. Assim, embora não seja possível atribuir toda a responsabilidade pela resolução dos problemas ambientais a um só lado da equação (o consumidor), a atividade de consumo pode oferecer importantes possibilidades de ação política e exercício da cidadania”.
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