“(...) Não falava direito(...),
Ele teve derrame. Tinha muitos amigos,
Levava até a fama de Dom Juan,
Mas hoje vive esquecido,
Puxa da perna
E não tem um benefício,
Que coisa horrível!
Ele teve derrame,
Ele teve derrame...”
(Rogério Skylab).
As estatísticas não nos deixam mentir. O acidente vascular cerebral (AVC) ou “derrame”, como é popularmente conhecido, é a principal causa de morte na população adulta do Brasil, segundo os dados obtidos pelo Ministério da Saúde, a partir das declarações de óbito feitas pelos médicos. Nos demais países, o AVC também aparece sempre entre as cinco principais causas de óbito. Nos Estados Unidos, é a terceira causa.
Como era de se esperar, o atendimento aos pacientes vítimas de AVC é uma situação rotineira nos serviços de pronto-atendimento, tanto no Brasil quanto no exterior. Um exemplo nacional que comprova esses números vem de um estudo feito por nosso grupo no pronto-socorro (PS) do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Cerca de 35 % dos atendimentos feitos pelos médicos neurologistas que atuam no PS do referido hospital – especialistas em doenças do cérebro, medula espinhal e nervos – são para pacientes que têm “suspeita de derrame”, a imensa maioria deles encaminhada por médicos dos postos de saúde e hospitais de Campinas (SP) e região, assim como pelos emergencistas clínicos do próprio PS do HC.
Em virtude desses números alarmantes, inúmeras repercussões naturalmente sobrevêm, a maioria delas já discutidas nas outras partes deste dossiê. Porém, destaco três tópicos, que serão o objetivo de discussão neste artigo, o qual enfatiza os aspectos educacionais do assunto AVC x pronto-socorro:
- Como reconhecer um paciente que está tendo um AVC ou derrame e o que fazer? Em outras palavras: pacientes e familiares estão aptos e informados o suficiente para reconhecer os sintomas de um possível derrame e providenciar o atendimento adequado?
- Atualmente, o paradigma das escolas de medicina no Brasil, assim como do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde, é a formação de médicos com amplo conhecimento generalista, ou seja, médicos capazes de reconhecer e tratar as doenças mais comuns que acometem a nossa população. Será que os médicos formados no Brasil estão, em geral, preparados para diagnosticar e tratar as doenças neurológicas mais comuns, e entre elas o AVC ou derrame?
- Quais as propostas pedagógicas existentes, na prática, nas faculdades de medicina do Brasil, suas vantagens e desvantagens? Onde está o erro na formação médica?
Como reconhecer um paciente que está tendo um AVC
Há estudos nacionais que evidenciam que a maioria da população brasileira não conhece os principais sintomas de um derrame e não sabe agir frente a essa situação emergencial. Interessante que os leigos, na imensa maioria dos casos, acionariam o número 911 se estivessem frente a um paciente com suspeita de derrame: esse número é da emergência nos Estados Unidos! Além disso, a população em geral desconhece se existe tratamento para essa condição. Esses fatos são alarmantes, e refletem, no meu ponto de vista, uma raiz educacional primária e secundária deficientes, além da mídia, que não tem compromisso com os aspectos educativos relevantes para a saúde pública do Brasil.
Nossas escolas de 1 o e 2 o graus ensinam conteúdo científico excessivo – que a maioria dos estudantes nunca irá usar na vida – em detrimento do ensino de situações corriqueiras, como noções de primeiros socorros, noções de direito, noções de economia, tributação, noções de computação. Olhando para trás, vejo que estudei detalhes da revolução russa e da geometria espacial – que não mudaram nada na minha vida, confesso! Porém, hoje tenho dificuldades para declarar meu imposto de renda e desconheço alguns princípios básicos do direito e da computação. Enfim, tenho dificuldades com fatos da vida cotidiana. Há alguns primórdios de atitudes para tentar resolver essa questão do ensino, como a proposta recente de adoção do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o ingresso nas universidades federais, visto que é um exame com enfoque cotidiano, e que poderia redirecionar o currículo do ensino médio nas escolas.
Com relação à mídia, nem precisamos comentar muito. Sempre sensacionalista, visa o lucro pela audiência. Raramente encontramos programas educativos na TV, e desconheço se há algum programa das principais emissoras nacionais que ensine primeiros socorros e outros tópicos relevantes que todo cidadão deveria conhecer. O resultado óbvio, todos sabemos qual é: nossa população é extremamente desinformada e usa inadequadamente nosso sistema de saúde pública, o SUS. Isso traz consequências drásticas para a saúde dos pacientes e custos altíssimos para os cofres públicos. Por esses e outros motivos, nós, cidadãos brasileiros, pagamos a maior carga tributária do mundo – e, em geral, não conhecemos bem sobre tributos, conforme mencionado! Interessante, não?.
Finalmente, seria fundamental que o ensino público nacional e a mídia orientassem a população no sentido de reconhecer um AVC. Há regras simples que podem ajudar. Por exemplo: suspeitar de um derrame se a pessoa estiver com o rosto assimétrico, se houve perda súbita de força no braço e/ou alterações na linguagem; e saber que, frente a essa ou qualquer outra situação de emergência, o número a ser acionado é o 192 (nas cidades onde o SAMU existe), ou o número do corpo de bombeiros em locais onde esses profissionais são os responsáveis pela remoção hospitalar (193), ou o número do hospital, em cidades pequenas, que geralmente disponibilizam ambulâncias para captar os pacientes. E a chegada ao hospital não pode demorar: o médico tem no máximo 3 horas após o início dos sintomas para tratar o paciente com derrame, em raros casos, até 4,5 - 6 horas. E aí vem outro detalhe fundamental. Todo cidadão deveria aprender a usar o sistema de saúde, saber quando procurar um posto de saúde e quando procurar um serviço de emergência. Em um caso de suspeita de AVC, o paciente deve ser encaminhado a um hospital capaz de fazer tomografia, com equipe de neurologia treinada, e que disponha do medicamento capaz de reverter o caso. Portanto, não perca o tempo precioso de levar seu familiar a um posto de saúde ou hospital despreparado nessas horas! Que tal se informar sobre esses locais na sua cidade e região, e divulgar para sua comunidade?
Os médicos formados no Brasil estão preparados para diagnosticar AVC?
A resposta que temos, infelizmente, é não. Os médicos não neurologistas geralmente têm pouca intimidade com os quadros neurológicos que aparecem nas emergências. Esse fato foi também comprovado pela pesquisa feita pelo nosso grupo no PS do HC da Unicamp. Constatamos que os médicos não neurologistas têm enorme dificuldade ao avaliar pacientes potencialmente neurológicos. Só para termos uma ideia, a história clínica (entrevista médica) e o exame físico feitos pelos não neurologistas foram considerados inadequados para o diagnóstico em 83,9% e 86,3% dos casos em que havia suspeita de doença neurológica, respectivamente. Fica evidente, assim, que a graduação médica precisa abordar com maior ênfase as habilidades de entrevista médica e exame físico pertinentes a cada caso, ambos responsáveis pela imensa maioria (até 88%) dos diagnósticos. Os médicos, portanto, estão se formando sem competências básicas para o exercício da profissão.
Essas evidências indicam que os médicos gerais subdiagnosticam ou diagnosticam incorretamente inúmeros problemas neurológicos nos departamentos de emergência e em serviços primários, e muitos casos são referenciados à neurologia por incerteza diagnóstica do médico geral. As consequências são preocupantes. Os custos do sistema de saúde com consultas e exames desnecessários, tratamentos incorretos e internações, por exemplo, poderia ser drasticamente reduzido se nossos profissionais médicos tivessem capacidade de elaborar o diagnóstico correto em cada caso. Além disso, a formação clínica inadequada é uma das boas explicações para as filas intermináveis dos ambulatórios do SUS. Como diz um sábio médico, nem só de falta de recursos padece o nosso sistema público de saúde!
Em vista desses fatos alarmantes, devemos analisar o atual cenário da graduação médica brasileira. O que está errado? Será que as universidades, na busca obsessiva pela produção do conhecimento (pesquisa), não estão deixando de lado a formação de pessoal capacitado para o SUS? De que adianta a descoberta de conhecimentos novos se isso não é acessível para a imensa maioria dos pacientes? Ou seja, há uma distância enorme entre a pesquisa e a prática médica. Médico significa mediador, aquele que faz a ponte entre a linguagem das pessoas e a linguagem da ciência. O que notamos é que a formação médica está priorizando conhecimentos científicos, em detrimento do conhecimento de pessoas com suas “dores” – assim entendidas quaisquer queixas dos pacientes.
Eis a questão que, no meu ponto de vista, é a mais importante: os estudantes de medicina estão sendo treinados a conhecer doenças ou a lidar com sintomas de pacientes? Os modelos pedagógicos e reformas curriculares na graduação médica devem, antes de tudo, priorizar o aprendizado dos sintomas comuns e não das doenças. Ou seja, o médico deve saber elaborar o diagnóstico a partir do paciente, pois isso é a vida real! Pode parecer incrível, mas na imensa maioria das faculdades, os graduandos não são treinados a saber o que um paciente com fraqueza na perna pode ter, por exemplo. Mas sabem o contrário: citar os possíveis sintomas de um AVC. Por que isso acontece nas faculdades de medicina do Brasil? Vejamos o próximo tópico.
Quais as propostas pedagógicas existentes na prática nas faculdades de medicina?
No Brasil, a imensa maioria das faculdades adota o ensino tradicional, baseado, fundamentalmente, nas aulas expositivas, apesar das amplas críticas sobre a eficácia desse modelo. Seminários, palestras e similares são variantes de aulas, pois usam técnicas também expositivas. Outras propostas adotadas incluem o aprendizado baseado em problemas (ABP ou PBL, do inglês) e a sua variante, a problematização. Vejamos em que consiste cada modelo, bem como suas potenciais vantagens e desvantagens para a nossa realidade.
O modelo tradicional é aquele que a maioria conhece. O que acontece, geralmente, é que o professor é tido como o dono da verdade, e o aluno, um ser inerte que deve se sentar e aceitar o que lhe é passado através da aula expositiva. Tem as vantagens de ser bem aceito pela maioria, relativamente barato, tem alguma eficácia para o aprendizado de fatos, é pouco dependente de logística e de capacitação docente. Como desvantagens, é criticado por sua eficácia duvidosa na aquisição de habilidades e competências, e por desestimular a formação de um profissional crítico. Nesse modelo, um aluno de medicina é exposto ao tema “AVC”, em geral, com uma aula de duas horas sobre o tema e, às vezes, uma discussão de casos “clássicos de livro”. Na sequência, decora o caderno transcrito em sala de aula para fazer uma prova. Depois, eventualmente, vê alguns pacientes durante o internato. A formação geral e neurológica, nesse modelo, é, obviamente, ineficaz. Os dados comprovam.
O modelo PBL/problematização é encarado como uma saída mágica ao tradicional. Nesse modelo, o aluno estuda AVC da seguinte forma: há um encontro inicial com o “tutor”, em que uma situação lhe é apresentada (um “problema” sobre AVC). Após discussão dos tópicos que devem ser aprendidos, o aluno sai em busca do conhecimento (sem orientação sobre como e onde fazer isso). Em um segundo encontro, o caso é nova e amplamente discutido e fechado. O aluno é avaliado constantemente. Tem as vantagens teóricas de ser um método ativo de ensino-aprendizagem, que expõe o aluno a situações da prática médica e forma indivíduos “mais críticos” e ativos na busca do conhecimento. Porém, há desvantagens marcantes: igual eficácia na aquisição cognitiva em relação ao modelo tradicional, conforme estudo holandês. Além disso, chegou ao Brasil copiado do exterior – onde há outra cultura e outra formação primária e secundária –, e, por isso, é pouco aceito pelos alunos. E, ainda, envolve complexa questão logística: altíssimos custos, necessidade de salas especiais, bibliotecas preparadas, necessidade de mudança radical no curriculum para ser implantado, grupos pequenos de alunos. Outro ponto fundamental (e geralmente negligenciado) é que esse modelo está promovendo um desestímulo à formação de verdadeiros clínicos/docentes, dos quais a graduação médica tanto necessita. Ou seja, para ser um “tutor”, o indivíduo deve saber conduzir reuniões em pequenos grupos, mas não necessariamente precisa saber medicina! Pergunto a você, leitor: se você fosse aprender a pilotar um avião, gostaria de ter instruções com um piloto experiente que já tenha feito inúmeras viagens internacionais ou com um engenheiro mecânico que conhece detalhes do funcionamento das naves, porém nunca pilotou uma? Portanto, no modelo PBL o aluno é exposto a um problema (em geral fictício) sobre um paciente com possível AVC. O que ocorre na prática é que, em geral, o aluno lê sobre o assunto em sites pouco confiáveis ou livros obsoletos. Depois decora o caderno com as anotações da discussão para a prova. Ou seja, é um modelo que, para a graduação médica brasileira, mantém, na prática, quase a mesma linha do tradicional!
Como contornar essa situação aqui, no Brasil? Infelizmente, essa pergunta ainda não tem resposta. Há uma metodologia pedagógica para a graduação médica que foi criada por um médico educador brasileiro. Essa metodologia tem um componente teórico (que é uma alternativa ao modelo tradicional e ao PBL) e um componente prático. Estamos atualmente buscando a validação do componente teórico (usando o “AVC” como tema), que consiste basicamente em duas ferramentas: um caso real editado sem qualquer viés (os casos tradicionais e do PBL, em geral, têm inúmeros vieses!), da forma como o paciente apareceu no consultório (o caso foi batizado de “decisões clínicas”). Aqui, o docente é quem levanta os tópicos para discussão, e há sugestões de leitura baseadas nas melhores evidências científicas disponíveis sobre os assuntos envolvidos. Esse caso serve para despertar o interesse do aluno para um determinado tópico (por exemplo, diagnóstico diferencial do AVC). O aluno, então, faz uma leitura preliminar geral (referenciada) sobre o tópico. Comparece, então, ao segundo encontro para a realização da “oficina diagnóstica”. Aqui o aluno recebe um roteiro impresso feito pelo docente, constando de inúmeras situações corriqueiras apresentadas em ordem crescente de dificuldade (“estações”). Cada estação contém um ou mais recursos audiovisuais que permitem responder às perguntas (gráficos, sons de ausculta, tabelas, trechos de artigos, imagens de tomografia, etc). Cada um deve passar individualmente, pois temos um ritmo de aprendizado diferente. Ao final, há um gabarito detalhado com inúmeras pós-referências sobre o assunto, e cada um faz as leituras que achar conveniente. Estamos obtendo excelentes resultados com essa proposta, de 80 a 90% de aprovação subjetiva em todos os quesitos. O estudo para verificar a aquisição cognitiva em relação ao tradicional está em andamento, com resultados promissores. As vantagens potenciais desse modelo são: boa aceitação discente, criado no Brasil para a nossa realidade, baixo custo, estimula o aprendizado ativo, exposição a evidências científicas e a bons periódicos de forma mais direta e objetiva (estimula a prática informativa e até avaliativa do exercício profissional). Além disso, estimula a formação de verdadeiros clínicos/docentes e não necessita mudança radical curricular como no PBL, podendo ser feito em uma ou mais disciplinas ou módulos. Tem as desvantagens de depender de algumas questões logísticas (grupos pequenos, acesso aos periódicos mais importantes) e de exigir motivação docente irrestrita na formulação e constante atualização do material de estudo. Por que não tentar?
Acho que todo o exposto evidencia que a formação médica geral atual está muito aquém do ideal no Brasil, e, consequentemente, os médicos geralmente têm pouca habilidade com a área neurológica, assim como com as demais áreas. O problema do AVC é apenas mais um tópico entre inúmeros outros, e dificilmente irá ser resolvido sem que as questões aqui discutidas sejam realmente levadas a sério. Reformas curriculares nas faculdades de medicina não podem se resumir a mudar nomes e criar novas disciplinas...
Lucas Vilas Bôas Magalhães é médico formado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), fez residência médica em neurologia clínica pela Unicamp e pós-graduação em ciências médicas, área de concentração em neurologia, subárea educação médica (FCM/Unicamp). Contato: Rua José Luiz Camargo Moreira, 120, ap 21, bloco 2. CEP 13087-511. Campinas / SP. E-mail: lucvbmag@yahoo.com.br.
|