A toda experiência sensitiva e emocional desagradável, relacionada à lesão real ou potencial dos tecidos, é dado o nome de dor, segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (Iasp, na sigla em inglês). Cada indivíduo aprende a usar esse termo a partir das suas experiências e de sua cultura. Experiências essas que, mergulhadas como estão em determinados estilos de vida, fazem surgir novas dores ou até novas doenças. Livrar-se da dor ou aliviar aquela sensação desagradável é uma das preocupações mais antigas da humanidade. Dizia Hipócrates, considerado o pai da medicina, que aliviar a dor é uma obra divina.
Uma das mais antigas substâncias utilizadas pelo homem para aliviar a dor é o ópio. Em “Uma breve história do ópio e dos opióides”, artigo publicado na Revista Brasileira de Anestesiologia, Danilo Freire Duarte, farmacologista da Universidade Federal de Santa Catarina, conta que Celso, médico romano que viveu no primeiro século da era cristã, recomendava o uso do ópio para o alívio da dor. Ele mesmo foi autor de várias formulações que continham essa substância como principal ingrediente. Parece certo, portanto, que a partir dos romanos, a propriedade analgésica do ópio passou a ser reconhecida. A partir dele são obtidas drogas como a morfina e a codeína, os opiáceos. É possível também fabricar sinteticamente substâncias que têm ação semelhante, que são os opióides.
“Os opióides têm mantido a sua posição como o grupo farmacológico que confere analgesia mais potente”, explica Duarte. São usuários desses medicamentos as pessoas que sofrem de dores muito intensas, como pacientes com câncer, com grandes queimaduras, politraumatizados etc. As principais discussões em torno do uso dos opióides giram em torno dos efeitos colaterais que eles provocam: paralisia do estômago, prisão de ventre (baseado neste efeito, eles também podem ser usados para combater diarréias). Em doses maiores, ocorre queda da pressão arterial, diminuição da frequência respiratória e o coração fica mais lento. Além dos efeitos colaterais, há ainda questões importantes a serem respondidas, segundo Duarte, entre elas se essas drogas são igualmente potentes como analgésicos para qualquer tipo de doença, e o risco de vício para pacientes com dores crônicas, que recebem esses medicamentos por tempo prolongado.
O farmacólogo explica que todos os efeitos dos opióides, inclusive os adversos, são decorrentes das interações que ocorrem entre essas drogas e receptores específicos do sistema nervoso, tanto os que transmitem quanto os que inibem a dor. “Os conhecimentos atuais de farmacologia clínica permitem selecionar o opióide a ser administrado, buscando obter o máximo de analgesia com o mínimo de efeitos colaterais. Essa relação custo-benefício se tornará ainda mais efetiva quando as pesquisas levarem a uma maior identificação de sub-tipos de receptores, a um maior esclarecimento da interação opióide-receptor e à síntese de novos opióides com ação mais seletiva ou mesmo específica”, conclui.
Cientes dos efeitos colaterais do uso prolongado de analgésicos e antiinflamatórios, os profissionais da saúde têm buscado combinar técnicas de tratamento convencional à medicina tradicional. A hipnose, a fitoterapia e a acupuntura são algumas delas. “Nos últimos anos a utilização de medicamentos fitoterápicos vem crescendo significativamente e isso se deve principalmente à comprovação, por meio de estudos clínicos, da segurança e da eficácia desses medicamentos”, acredita Marcos Korukian, médico do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Escola Paulista de Medicina. Ele participou da pesquisa que resultou no primeiro fitoterápico antiinflamatório tópico brasileiro, criado a partir do extrato da erva-baleeira, também conhecida como maria milagrosa. O produto é vendido pela Aché Laboratórios Farmacêuticos S/A com o nome de Acheflan e faz parte de uma linha de fitomedicamentos criada pela empresa, a Phytomedica.
O medicamento é indicado para o tratamento de traumas, dores musculares e tendinites. “Os estudos realizados mostram que os pacientes tratados com a pomada fitoterápica tiveram alívio mais rápido da dor e da inflamação. O tratamento foi, em geral, mais eficaz do que naqueles que utilizaram o diclofenaco dietilamônico, princípio ativo presente nos antiinflamatórios convencionais do mercado, com o mesmo perfil de segurança”, explica Korukian.
Outra aposta na pesquisa de novos medicamentos para conter a dor é o desenvolvimento de remédios a partir de toxinas de outros seres vivos. O Centro de Toxicologia Aplicada, CAT, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids), criados pela Fapesp em 2000, sintetizou a proteína enpak, sigla para endogenous pain killer, ou analgésico endógeno, obtida a partir do veneno da cascavel. Os testes mostraram que o enpak tem, em uma única dose, poder de analgesia 600 vezes superior ao da morfina. O efeito se prolonga por até cinco dias sem efeitos colaterais.
Agulhas no sistema único de saúde
Outra técnica tradicional para aliviar a dor, que tem sido alvo de pesquisas científicas é a acupuntura. Um exemplo é o trabalho da médica obstetra, especialista em acupuntura, Roxana Knobel, desenvolvido no Centro de Atendimento Integral à Saúde da Mulher, Caism, da Unicamp. Ela concluiu que a acupuntura contribui de maneira eficaz para aliviar a dor durante o processo de dilatação que antecede o parto propriamente dito. “As parturientes do grupo placebo receberam três vezes mais drogas, analgésicas e/ou tranquilizantes, do que as que receberam acupuntura. Embora a diferença entre a via de parto não tenha sido estatisticamente significativa entre os grupos, observou-se que no grupo controle houve praticamente o dobro de cesáreas que no grupo que utilizou a acupuntura, devido à intensidade da dor”, explica Knobel. A técnica também se mostrou segura, pois não houve nenhum efeito colateral para as mães e tampouco para os bebês.
O parto é dividido em três fases: a primeira, dilatação, vai do início das contrações uterinas até que o colo se dilate por completo. Segundo a médica, esta fase pode durar até oito horas e é muito dolorosa para a mulher. A segunda vai da dilatação completa até a saída do bebê. Demora 30 minutos. A terceira fase é a expulsão da placenta. “Mesmo atualmente, com os avanços das técnicas analgésicas e a possibilidade de alívio, a dor do parto ainda é tida como uma das mais intensas sentidas pelo ser humano e certamente é temida pelas parturientes, preocupando familiares e a equipe de saúde envolvida”. Uma opção são as drogas opióides, mas elas têm efeitos colaterais intensos, podendo causar depressão respiratória na mãe e no recém-nascido. Daí a importância de aliviar a dor no período da dilatação. No estudo a obstetra fez aplicações de acupuntura nas costas ou na orelha das parturientes. O grupo de controle recebeu tratamento simulado (leia mais sobre dor do parto nesta edição).
Os mecanismos pelos quais a acupuntura atua no controle da dor não estão totalmente esclarecidos, mas demonstrou-se que são intermediados pelo sistema nervoso central. Pesquisas realizadas na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostraram que a aplicação das agulhas promove a liberação ou o melhor aproveitamento da serotonina. A substância age como potente analgésico nos nervos periféricos, que se prolongam pelos braços, pernas e pelo tronco. Em entrevista para a revista Pesquisa Fapesp, o neurofisiologista Luiz Eugenio Mello disse que a acupuntura precisa da serotonina para funcionar. “Não sabemos como começa o processo, nem se a serotonina é produzida em maior quantidade ou apenas é melhor aproveitada pelos neurônios”, explicou. Já foi comprovado clinicamente que a técnica milenar chinesa baseada na aplicação de agulhas em pontos específicos do corpo, é eficaz também no combate à dor intensa e às náuseas provocadas pelo uso de medicamentos contra o câncer.
Há dez anos reconhecida como especialidade médica no Brasil, a acupuntura era acessível apenas para as pessoas que podiam pagar consultas particulares com especialistas. No entanto, a Secretaria de Sáude da prefeitura de Campinas, por meio da área de Saúde Integrativa, oferece tratamento com acupuntura pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "A idéia é tratar o paciente que se queixa de dor com acupuntura enquanto é feita a hipótese diagnóstica", explica William Hyppolito Ferreira, coordenador técnico da área de saúde integrativa da Prefeitura de Campinas. Tendinite, bursite, lombalgia, fibromialgia, depressão, distúrbios do sono, distúrbios de ansiedade, cefaléias e outras doenças, são tratadas com a terapia. O principal ganho, segundo ele é tirar o desconforto causado pelo quadro doloroso no paciente enquanto ele passa pela rotina normal de consultas, exames etc. "Melhora também a relação médico-paciente porque a pessoa passa a confiar mais no médico", acredita ele.
Hoje a prefeitura conta com 114 médicos especialistas em acupuntura, num universo de cerca de mil médicos. O Saúde Integrativa também realiza cursos para formação de médicos da rede pública que queiram aprender a técnica. Um estudo da área apontou diminuição de 12,5% ao mês no uso de antiinflamatórios à base de diclofenaco. Ferreira ressalta que, mais importante que reduzir os gastos públicos com esse tipo de remédio, é a ausência de efeitos colaterais proporcionada pela acupuntura. Este estudo será apresentado no Congresso Mundial de Acupuntura Médica que acontece no mês de junho em Barcelona, na Espanha.
Mudando o foco
Segundo a Sociedade Brasileira de Hipnose esta técnica abrange qualquer procedimento que venha causar, por meio de sugestões, mudanças no estado físico e mental, podendo produzir alterações na percepção, nas sensações, no comportamento, nos sentimentos, nos pensamentos e na memória. Uma das indicações do uso da hipnose é para analgesia. Ela funciona de maneira a desviar a atenção do paciente, de modo que o cérebro não perceba o problema da dor ou o interprete de maneira diferente. Na fibromialgia a hipnose é frequentemente usada para diminuir a sensação desagradável. “No nosso cérebro, os centros que interpretam a intensidade da dor e o quanto ela é desagradável estão em lugares diferentes. A hipnose pode, de maneira segura, dissociar esses dois aspectos da dor, para benefício do paciente”, explica o reumatologista Eduardo dos Santos Paiva, chefe do ambulatório de fibromialgia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Segundo ele, utilizando exames em tempo real que mostram as áreas do cérebro sendo ativadas ou desativadas, já foi demonstrado que a dor pode ser modulada para mais ou para menos utilizando a hipnose.
Quando o controle da dor esbarra na lei
Das formas alternativas de tratamento da dor, talvez uma das mais controversas seja o uso da maconha. Isso ocorre principalmente pelo fato de grande parte da discussão se sustentar mais em paixões e preconceitos do que no conhecimento científico. Esta é a crença do farmacologista Elisaldo Carlini, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que há 50 anos estuda os princípios ativos da Cannabis sativa e sua colaboração à medicina. Em uma conferência na 58ª reunião anual da SBPC, em julho de 2006, Carlini apresentou estudos sobre as propriedades terapêuticas da erva e comentou sobre a legalização de seu uso medicinal.
Segundo Carlini, há cinco mil anos os chineses já faziam uso da maconha como anestésico em cirurgias. Em 1964, ao isolarem a estrutura química da C. sativa, foram encontradas cerca de 500 agentes químicos. Outros estudos comprovaram a eficácia da droga no controle das dores neuropáticas, comum em pacientes que sofrem de esclerose múltipla. No tratamento dessa doença, pacientes que fizeram uso do cigarro da maconha alegaram ainda a redução das dores musculares e da fraqueza nas pernas, e também na ansiedade, depressão e sobre as dores crônicas.
Em vários estados norte-americanos e países europeus, como Holanda e Bélgica, o uso terapêutico da maconha é permitido para o tratamento de câncer, aids e esclerose múltipla. Para Carlini, a medicina como um todo ganharia se essa regra valesse também para o Brasil. Segundo ele, é muito comum a depressão em profissionais da saúde que convivem diariamente com o sofrimento de pacientes terminais. Reduzir os sintomas dos doentes também ajudaria a melhorar a qualidade de vida de médicos e enfermeiros. “É insensato se preocupar se o paciente terminal que usar a maconha vai ficar viciado ou não, ele tem apenas alguns meses de vida”, disse Carlini na ocasião. “Nosso trabalho é fazer com que ele tenha um fim de vida digno”, acrescenta.
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