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Reportagem
A sonhada beleza virtual
Por Carolina Cantarino
10/07/2006

Revistas especializadas em regimes, dietas e “fitness”, convênios médicos para a realização de cirurgias plásticas estéticas, aplicações de silicone e Botox, academias, musculação, spas, programas de “transformação da aparência” através de intervenções cirúrgicas, tanto nos canais pagos de televisão quanto nos abertos. A beleza, no mundo contemporâneo, é sinônimo de obsessão pela magreza e pela juventude, cada vez mais alimentada pela mídia e pela publicidade. Em nome delas - e contra a flacidez da pele e a gordura - uma série de novas tecnologias – médicas e cosméticas - encontram-se disponíveis para que cada indivíduo possa melhorar a sua “imagem pessoal”, conseguindo, assim, mais “auto-estima” e sucesso. O objetivo é se aproximar o máximo possível das imagens dos corpos perfeitos vendidos pelos meios de comunicação de massas.

Lipofobia

A valorização da magreza suscita repugnância e preconceito em relação à gordura. Um estudo da Universidade de Yale, divulgado em maio último, trouxe dados bastante reveladores sobre o estigma da obesidade. Ao perguntar o que as pessoas estariam dispostas a sacrificar em nome da garantia de nunca serem gordas, dos 4 mil e 283 participantes que responderam à pesquisa, 46% abririam mão de um ano de suas vidas para não serem obesos; 15% desistiram de 10 anos; 25% prefeririam ser estéreis do que obesos; 15% sofrer de uma depressão profunda do que ser gordos; 14% prefeririam ser alcoólatras; e entre 4 a 5% dos entrevistados aceitariam até mesmo perder um membro do corpo ou ficar cegos do que viver com um peso muito acima do que acham que deveriam ter.

A pesquisa revela, assim, o caratér moral que a idéia de gordura carrega nos dias de hoje, possuindo uma série de conotações negativas. “Assim, por exemplo, o sujeito que tem excesso de peso é reprovado por não ser um bom gestor de si e por ser moralmente fraco, pois em um mundo comandado pelos ditames do mercado e no qual vigora a administração individual dos capitais vitais, ‘só é gordo quem quer’”, lembra a antropóloga Paula Sibilia.

“E sendo óbvio que ninguém poderia mesmo querer tal coisa, supõe-se que só terá excesso de peso quem não conseguir se autocontrolar – ou seja, quem for incapaz de não ser gordo; quem é negligente, ineficaz, fraco”.

Cada vez mais populares e acessíveis – por conta dos convênios de saúde, da possibilidade de parcelamento financeiro das cirurgias e também das inovações tecnológicas envolvidas nos próprios procedimentos médicos – as cirurgias plásticas alimentam o discurso da beleza como o resultado da responsabilidade individual pelo próprio corpo. A pressão social sobre aqueles que não conseguem (ou não querem) emagrecer ou corrigir possíveis “defeitos” do corpo também é grande porque recusar a beleza de um corpo magro torna-se sinal de negligência para consigo próprio. Esse é o tipo interpretação feita por muitos profissionais da área de recursos humanos nas empresas, responsáveis pela seleção de novos funcionários, por exemplo. A falta de beleza passa a ser vista como resultado de frustrações, problemas de auto-estima, enfim, como um “problema psíquico”.

Para Liliane Brum Ribeiro, antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), os valores que dão sentido à crescente procura pela cirurgia plástica estariam atrelados a essa “psicologização” da experiência com o corpo que transparece, segundo ela, nas justificativas mais comumente dadas pelas mulheres para a realização de cirurgias: “sentir-se bem consigo mesma”, “melhorar a auto-estima” ou “gostar do seu corpo”. Segundo Ribeiro, a ênfase nos aspectos “interiores” e na idéia de bem-estar é recorrente, por exemplo, no discurso do médico Ivo Pitanguy, referência mundial na cirurgia plástica.

“Nesse sentido, ao mesmo tempo em que as práticas médicas apresentam à mulher a possibilidade de realizar seu desejo de possuir um ‘corpo perfeito’, a existência de uma cultura ‘psi’ que tende a explicar tudo a partir da interioridade do sujeito, leva os indivíduos a encontrar na auto-estima um dos modos de justificar a necessidade de se adequarem a modelos estéticos”, afirma Liliane Brum Ribeiro, em artigo sobre a medicalização dos corpos femininos. 

Imagem pessoal

Injeção de toxina botulínica (como o Botox) ou de outras substâncias nas técnicas de preenchimentos de rugas, injeção de gordura nos lábios, lipoaspiração de gordura (até mesmo do rosto), implantes de silicone no seios. Para Paula Sibilia, tanto essas intervenções estéticas quanto a a obsessão por músculos definidos dos fisiculturistas- dos quais um dos mais famosos ainda é Arnold Schwarzenneger – seriam a expressão do desejo de se alcançar um corpo “liso”, “polido”, “esticado”, livre de rugas e outras marcas da pele, cada vez mais próximos, assim, da beleza plástica das imagens digitalizadas presentes na mídia. Não é por acaso que programas de edição gráfica como o Photoshop, o Illustrator e o Indesign desempenham papel fundamental na construção de imagens publicitárias que expõem “corpos belos” dos quais todos os “defeitos” são eliminados, retocados ou corrigidos por esses “bisturis de software”: “É precisamente esse modelo digitalizado – e, sobretudo, digitalizante – que extrapola as telas para impregnar os corpos e as subjetividades, pois as imagens assim editadas se convertem em objetos de desejo a serem reproduzidos na própria carne virtualizada”, afirma Sibilia.

A busca pela modificação da aparência através de dietas, ginástica e intervenções cirúrgicas seria, portanto, uma tentativa de aproximação com os corpos perfeitos das imagens virtuais. Por isso, para Elaine Zancaela, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a tecnologia presente nos procedimentos estéticos se encontra na mesma ordem da tecnologia das imagens gráficas, compartilhando uma força em comum: a importância dada à visualidade na sociedade contemporânea na qual os indivíduos, cada vez mais preocupados com a aparência, estariam se construindo também como imagens.

Zancaela explica que, desde o surgimento da fotografia, as tecnologias da imagem passaram a ter um papel importante na criação de uma cultura que valoriza a aparência. Inspirada pelo trabalho de Susan Sontag, Zancaela lembra que vivemos num “mundo-imagem” no qual a relação entre imagem e realidade, entre virtualidade e materialidade foram invertidas: passa-se a atribuir às coisas reais as qualidades das imagens. “Essa inversão entre imagem e realidade denota uma grande valoração do aspecto visual na percepção humana inerente ao convívio com enorme profusão de imagens. Portanto, como a mídia digital continua a ser um meio visual expresso através de tecnologias de interfaces gráficas, técnicas como a computação gráfica, fotografias digitais inseridas em celulares, pdas e fotologs, há um reforço da importância da imagem como ocorre desde a invenção da fotografia. E isso, conseqüentemente, destaca a valorização da aparência visual nesses meios”.

É através das imagens dos corpos perfeitos (tratados digitalmente) das modelos e de outros ícones da cultura pop, da TV e do cinema que um padrão estético - baseado na perfeição, na magreza e na juventude - é disseminado pela mídia e alimentado pela indústria da beleza. Padrão impossível de ser alcançado porque irreal, virtual, segundo a antropóloga Fabiana Jordão Martinez, doutoranda em ciências sociais (Unicamp): “O corpo, hoje, é visto como um projeto, um devir, um sacrifício para se alcançar o desejo do que se quer ser e se sentir satisfeito. O problema é que esse projeto nunca é finalizado, é uma promessa impossível de ser alcançada porque o modelo ideal de beleza é virtual e, por isso, perfeito”. Por conta desse padrão estético inatingível é que as clínicas estéticas estão repletas de clientes: tratam-se de freqüentadores assíduos, sempre em busca de novidades. “A tendência de quem começa a fazer essas intervenções no corpo é a compulsão, é não parar mais”, lembra a antropóloga.

Lapidação da imagem

Ícones da beleza mas também da confusa relação entre aparência, subjetividade, materialidade e virtualidade que caracteriza o mundo contemporâneo, a carreira das modelos profissionais é marcada por um conjunto de práticas relativas à produção simultânea de imagens e corporalidades. Em sua dissertação de mestrado intitulada “Espelho de Narciso: corpos e narrativas de consumo”, Fabiana Martinez descreve o processo de “lapidação da modelo”, através do qual sua imagem pessoal vai sendo construída. Através da aparência física (e dos “cuidados” com o corpo, principalmente através de dietas), da imagem virtual (um complexo trabalho de fotogenia e produção fotográfica) e da transformação da sua própria subjetividade, a modelo vai sendo transformada numa mercadoria e aprendendo como vender a imagem de si própria.

As adolescentes que entram nesse mercado possuem entre 12 e 16 anos. Segundos os profissionais das agências de modelos (os “agentes”), essa faixa etária é a preferida porque as iniciantes ainda estão em fase de desenvolvimento - tanto físico como psicológico - o que facilitaria a assimilação das regras e práticas que a profissão requer: como se alimentar, o que vestir, quais comportamentos se deve ter diante dos clientes. “Cuide de sua aparência: ela é o seu capital” é uma das advertências constantes numa cartilha distribuída às chamadas new faces por uma agência paulistana. Um padrão estético, baseado na altura e na magreza, impõem as medidas corporais que qualquer modelo deve ter: no mínimo, 1 metro e 70 centímetros de altura, 90 centímetros de busto, 60 de cintura e 90 centímetros de quadril.

“É uma angústia permanente. As dietas não são saudáveis porque tudo em gira em torno de um trabalho que nunca se sabe quando vai aparecer, que é inconstante e imprevisível e para o qual é preciso perder peso rapidamente. As modelos sempre estão controlando a alimentação e apostando nessa incerteza”, afirma Fabiana Martinez. Por isso, nas vésperas da realização de um teste para um trabalho, o jejum é a prática mais recorrente. E todo esse processo é facilitado porque, geralmente, são pré-adolescentes que estão morando sozinhas em São Paulo, distantes da família e mesmo da escola, tendo que aprender a se comportar como adultas dentro de uma profissão, vivendo só da expectativa em relação ao sucesso. Muitas relatam transtornos alimentares como a anorexia e a bulimia.

Mas a “lapidação da modelo” não se resume à sua aparência corporal: ela se estende também para a produção de sua imagem. Durante o período inicial da profissão também é preciso “descobrir a imagem da modelo”, ou seja, o que ela está apta para vender, quais as suas potencialidades de representação. A modelo passa, então, por um período de testes de fotogenia, sendo enviada para fotógrafos e produtores, para que também se torne conhecida no meio. As respostas do mercado é que determinarão o que ela vai ser: uma modelo comercial (direcionada para campanhas publicitárias em revistas ou TV) ou de moda (realização de desfiles e editoriais fashion).

Por conta do diálogo entre aparência corporal e imagem, a realização de cirurgias plásticas não é uma prática muito recorrente entre as modelos. “Ao mesmo tempo em que existe a imposição de um padrão estético, existe também a valorização de uma ‘beleza natural’, dos atributos ‘naturais’. O mais comum são as próteses de silicone, entre as modelos comerciais, que costumam fazer campanhas publicitárias como as de lingerie ou de cerveja”. Fabiana Martinez conta a história de uma modelo bem-sucedida que possuía diversas cicatrizes pelo corpo por ter sofrido um acidente quando ainda era criança. As marcas não eram um problema porque “o Photoshop corrige tudo”. “Esse diálogo entre o auto-conhecimento que elas possuem do próprio corpo e da sua imagem é constante. Faz parte desse mercado conhecer as potencialidades de sua própria imagem, que pode ser corrigida pela computação gráfica. As intervenções cirúrgicas, nesse caso, não são tão ostensivas por conta dessa possibilidade de construção da imagem”.

O potencial da modelo depende da sua capacidade de vender imagens de produtos e, ao mesmo tempo, de vender a imagem de si própria. “Eu sempre pergunto para os agentes e fotógrafos: o que é mais importante, a modelo real ou a sua fotografia? Eles dizem que, em primeiro lugar, é a fotografia, mas a modelo não pode se afastar muito dessa imagem”, conta Martinez.

Para corresponder à imagem construída de si própria (a “mulher sensual”, a “bonequinha”, a “beleza clássica”, a “exótica”, a “mulher com personalidade e atitude”), muita disciplina é exigida, não só em relação ao corpo – que é sempre a principal preocupação - mas também com a própria subjetividade. “Sobra muito pouco tempo para elas serem elas mesmas, podendo exercer a sua individualidade, já que elas entram muito cedo na profissão. Para muitas delas, o sonho é ter uma ‘vida de verdade’, ser uma ‘mulher normal’”, afirma a antropóloga.

Para reproduzir a imagem de si próprias, seja na fotografia ou fora dela, as modelos vivem sob constante vigilância – dos agentes e de si próprias. As expectativas em relação à transformação do próprio corpo – comuns em qualquer adolescente – são vividas com mais angústia e ansiedade: é um processo tenso, em que cada detalhe do corpo é acompanhado, porque dele é que depende o sucesso ou o fracasso na carreira: é preciso, pelo menos, crescer e ganhar a altura desejada. Engordar, jamais. Por conta do cotidiano da profissão – pontuado pela realização de testes para campanhas publicitárias e desfiles e pela concorrência acirrada – é exigido das adolescentes que elas saibam lidar com a rejeição dos clientes por conta dos seus “defeitos” apontados sem piedade: um “nariz muito grande” ou alguns centímetros a mais no quadril.

Por outro lado, a profissão de modelo muitas vezes funciona como um drible numa história de rejeição que sofreram no passado. Muitas meninas, durante a infância, eram alvos de piadas na escola, por serem muito altas. Ao tornaram-se modelos, ganham o reconhecimento e a aceitação social de sua aparência. “A profissão de modelo é pontuada por uma série constante de contradições: satisfação e angústia, gratificação e pressão. Mesmo sendo ícones de beleza, por estarem sob o constante julgamento dos outros e de si próprias, essas mulheres, contraditoriamente, são as que se sentem mais feias”, lembra a antropóloga.