Revistas
especializadas em regimes, dietas e “fitness”, convênios médicos para a
realização de cirurgias plásticas estéticas, aplicações de silicone e Botox,
academias, musculação, spas, programas de “transformação da aparência”
através de intervenções cirúrgicas, tanto nos canais pagos de televisão quanto
nos abertos. A beleza, no mundo contemporâneo, é sinônimo de obsessão pela
magreza e pela juventude, cada vez mais alimentada pela mídia e pela
publicidade. Em nome delas - e contra a flacidez da pele e a gordura - uma
série de novas tecnologias – médicas e cosméticas - encontram-se disponíveis
para que cada indivíduo possa melhorar a sua “imagem pessoal”, conseguindo,
assim, mais “auto-estima” e sucesso. O objetivo é se aproximar o máximo
possível das imagens dos corpos perfeitos vendidos pelos meios de comunicação
de massas.
Lipofobia
A
valorização da magreza suscita repugnância e preconceito em relação à gordura.
Um estudo da Universidade de Yale, divulgado em maio último, trouxe dados
bastante reveladores sobre o estigma da obesidade. Ao perguntar o que as
pessoas estariam dispostas a sacrificar em nome da garantia de nunca serem
gordas, dos 4 mil e 283 participantes que responderam à pesquisa, 46% abririam
mão de um ano de suas vidas para não serem obesos; 15% desistiram de 10 anos;
25% prefeririam ser estéreis do que obesos; 15% sofrer de uma depressão
profunda do que ser gordos; 14% prefeririam ser alcoólatras; e entre 4 a 5% dos
entrevistados aceitariam até mesmo perder um membro do corpo ou ficar cegos do
que viver com um peso muito acima do que acham que deveriam ter.
A
pesquisa revela, assim, o caratér moral que a idéia de gordura carrega nos dias
de hoje, possuindo uma série de conotações negativas. “Assim, por exemplo, o
sujeito que tem excesso de peso é reprovado por não ser um bom gestor de si e
por ser moralmente fraco, pois em um mundo comandado pelos ditames do mercado e
no qual vigora a administração individual dos capitais vitais, ‘só é gordo quem
quer’”, lembra a antropóloga Paula Sibilia.
“E
sendo óbvio que ninguém poderia mesmo querer tal coisa, supõe-se que só terá
excesso de peso quem não conseguir se autocontrolar – ou seja, quem for incapaz
de não ser gordo; quem é negligente, ineficaz, fraco”.
Cada
vez mais populares e acessíveis – por conta dos convênios de saúde, da
possibilidade de parcelamento financeiro das cirurgias e também das inovações
tecnológicas envolvidas nos próprios procedimentos médicos – as cirurgias
plásticas alimentam o discurso da beleza como o resultado da responsabilidade
individual pelo próprio corpo. A pressão social sobre aqueles que não conseguem
(ou não querem) emagrecer ou corrigir possíveis “defeitos” do corpo também é
grande porque recusar a beleza de um corpo magro torna-se sinal de negligência
para consigo próprio. Esse é o tipo interpretação feita por muitos
profissionais da área de recursos humanos nas empresas, responsáveis pela
seleção de novos funcionários, por exemplo. A falta de beleza passa a ser vista
como resultado de frustrações, problemas de auto-estima, enfim, como um
“problema psíquico”.
Para
Liliane Brum Ribeiro, antropóloga da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC), os valores que dão sentido à crescente procura pela cirurgia plástica
estariam atrelados a essa “psicologização” da experiência com o corpo que
transparece, segundo ela, nas justificativas mais comumente dadas pelas
mulheres para a realização de cirurgias: “sentir-se bem consigo mesma”,
“melhorar a auto-estima” ou “gostar do seu corpo”. Segundo Ribeiro, a ênfase
nos aspectos “interiores” e na idéia de bem-estar é recorrente, por exemplo, no
discurso do médico Ivo Pitanguy, referência mundial na cirurgia plástica.
“Nesse
sentido, ao mesmo tempo em que as práticas médicas apresentam à mulher a
possibilidade de realizar seu desejo de possuir um ‘corpo perfeito’, a
existência de uma cultura ‘psi’ que tende a explicar tudo a partir da
interioridade do sujeito, leva os indivíduos a encontrar na auto-estima um dos
modos de justificar a necessidade de se adequarem a modelos estéticos”, afirma
Liliane Brum Ribeiro, em artigo sobre a medicalização dos corpos
femininos.
Imagem pessoal
Injeção
de toxina botulínica (como o Botox) ou de outras substâncias nas técnicas de
preenchimentos de rugas, injeção de gordura nos lábios, lipoaspiração de
gordura (até mesmo do rosto), implantes de silicone no seios. Para Paula
Sibilia, tanto essas intervenções estéticas quanto a a obsessão por músculos
definidos dos fisiculturistas- dos quais um dos mais famosos ainda é Arnold
Schwarzenneger – seriam a expressão do desejo de se alcançar um corpo “liso”,
“polido”, “esticado”, livre de rugas e outras marcas da pele, cada vez mais
próximos, assim, da beleza plástica das imagens digitalizadas presentes na
mídia. Não é por acaso que programas de edição gráfica como o Photoshop, o
Illustrator e o Indesign desempenham papel fundamental na construção de imagens
publicitárias que expõem “corpos belos” dos quais todos os “defeitos” são
eliminados, retocados ou corrigidos por esses “bisturis de software”: “É
precisamente esse modelo digitalizado – e, sobretudo, digitalizante – que
extrapola as telas para impregnar os corpos e as subjetividades, pois as
imagens assim editadas se convertem em objetos de desejo a serem reproduzidos
na própria carne virtualizada”, afirma Sibilia.
A
busca pela modificação da aparência através de dietas, ginástica e intervenções
cirúrgicas seria, portanto, uma tentativa de aproximação com os corpos
perfeitos das imagens virtuais. Por isso, para Elaine Zancaela, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, a tecnologia presente nos procedimentos estéticos se
encontra na mesma ordem da tecnologia das imagens gráficas, compartilhando uma
força em comum: a importância dada à visualidade na sociedade contemporânea na
qual os indivíduos, cada vez mais preocupados com a aparência, estariam se
construindo também como imagens.
Zancaela
explica que, desde o surgimento da fotografia, as tecnologias da imagem
passaram a ter um papel importante na criação de uma cultura que valoriza a
aparência. Inspirada pelo trabalho de Susan Sontag, Zancaela lembra que vivemos
num “mundo-imagem” no qual a relação entre imagem e realidade, entre virtualidade
e materialidade foram invertidas: passa-se a atribuir às coisas reais as
qualidades das imagens. “Essa inversão entre imagem e realidade denota uma
grande valoração do aspecto visual na percepção humana inerente ao convívio com
enorme profusão de imagens. Portanto, como a mídia digital continua a ser um
meio visual expresso através de tecnologias de interfaces gráficas, técnicas
como a computação gráfica, fotografias digitais inseridas em celulares, pdas e fotologs,
há um reforço da importância da imagem como ocorre desde a invenção da
fotografia. E isso, conseqüentemente, destaca a valorização da aparência visual
nesses meios”.
É
através das imagens dos corpos perfeitos (tratados digitalmente) das modelos e
de outros ícones da cultura pop, da TV e do cinema que um padrão estético -
baseado na perfeição, na magreza e na juventude - é disseminado pela mídia e
alimentado pela indústria da beleza. Padrão impossível de ser alcançado porque
irreal, virtual, segundo a antropóloga Fabiana Jordão Martinez, doutoranda em
ciências sociais (Unicamp): “O corpo, hoje, é visto como um projeto, um devir,
um sacrifício para se alcançar o desejo do que se quer ser e se sentir
satisfeito. O problema é que esse projeto nunca é finalizado, é uma promessa
impossível de ser alcançada porque o modelo ideal de beleza é virtual e, por
isso, perfeito”. Por conta desse padrão estético inatingível é que as clínicas
estéticas estão repletas de clientes: tratam-se de freqüentadores assíduos,
sempre em busca de novidades. “A tendência de quem começa a fazer essas
intervenções no corpo é a compulsão, é não parar mais”, lembra a antropóloga.
Lapidação da imagem
Ícones
da beleza mas também da confusa relação entre aparência, subjetividade,
materialidade e virtualidade que caracteriza o mundo contemporâneo, a carreira
das modelos profissionais é marcada por um conjunto de práticas relativas à
produção simultânea de imagens e corporalidades. Em sua dissertação de mestrado
intitulada “Espelho de Narciso: corpos e narrativas de consumo”, Fabiana
Martinez descreve o processo de “lapidação da modelo”, através do qual sua
imagem pessoal vai sendo construída. Através da aparência física (e dos
“cuidados” com o corpo, principalmente através de dietas), da imagem virtual
(um complexo trabalho de fotogenia e produção fotográfica) e da transformação
da sua própria subjetividade, a modelo vai sendo transformada numa mercadoria e
aprendendo como vender a imagem de si própria.
As
adolescentes que entram nesse mercado possuem entre 12 e 16 anos. Segundos os profissionais
das agências de modelos (os “agentes”), essa faixa etária é a preferida porque
as iniciantes ainda estão em fase de desenvolvimento - tanto físico como
psicológico - o que facilitaria a assimilação das regras e práticas que a
profissão requer: como se alimentar, o que vestir, quais comportamentos se deve
ter diante dos clientes. “Cuide de sua aparência: ela é o seu capital” é uma
das advertências constantes numa cartilha distribuída às chamadas new faces por
uma agência paulistana. Um padrão estético, baseado na altura e na magreza,
impõem as medidas corporais que qualquer modelo deve ter: no mínimo, 1 metro e
70 centímetros de altura, 90 centímetros de busto, 60 de cintura e 90
centímetros de quadril.
“É
uma angústia permanente. As dietas não são saudáveis porque tudo em gira em
torno de um trabalho que nunca se sabe quando vai aparecer, que é inconstante e
imprevisível e para o qual é preciso perder peso rapidamente. As modelos sempre
estão controlando a alimentação e apostando nessa incerteza”, afirma Fabiana
Martinez. Por isso, nas vésperas da realização de um teste para um trabalho, o
jejum é a prática mais recorrente. E todo esse processo é facilitado porque,
geralmente, são pré-adolescentes que estão morando sozinhas em São Paulo, distantes
da família e mesmo da escola, tendo que aprender a se comportar como adultas
dentro de uma profissão, vivendo só da expectativa em relação ao sucesso.
Muitas relatam transtornos alimentares como a anorexia e a bulimia.
Mas
a “lapidação da modelo” não se resume à sua aparência corporal: ela se estende
também para a produção de sua imagem. Durante o período inicial da profissão
também é preciso “descobrir a imagem da modelo”, ou seja, o que ela está apta
para vender, quais as suas potencialidades de representação. A modelo passa,
então, por um período de testes de fotogenia, sendo enviada para fotógrafos e
produtores, para que também se torne conhecida no meio. As respostas do mercado
é que determinarão o que ela vai ser: uma modelo comercial (direcionada para
campanhas publicitárias em revistas ou TV) ou de moda (realização de desfiles e
editoriais fashion).
Por
conta do diálogo entre aparência corporal e imagem, a realização de cirurgias
plásticas não é uma prática muito recorrente entre as modelos. “Ao mesmo tempo
em que existe a imposição de um padrão estético, existe também a valorização de
uma ‘beleza natural’, dos atributos ‘naturais’. O mais comum são as próteses de
silicone, entre as modelos comerciais, que costumam fazer campanhas
publicitárias como as de lingerie ou de cerveja”. Fabiana Martinez conta a
história de uma modelo bem-sucedida que possuía diversas cicatrizes pelo corpo
por ter sofrido um acidente quando ainda era criança. As marcas não eram um
problema porque “o Photoshop corrige tudo”. “Esse diálogo entre o
auto-conhecimento que elas possuem do próprio corpo e da sua imagem é
constante. Faz parte desse mercado conhecer as potencialidades de sua própria
imagem, que pode ser corrigida pela computação gráfica. As intervenções
cirúrgicas, nesse caso, não são tão ostensivas por conta dessa possibilidade de
construção da imagem”.
O
potencial da modelo depende da sua capacidade de vender imagens de produtos e,
ao mesmo tempo, de vender a imagem de si própria. “Eu sempre pergunto para os
agentes e fotógrafos: o que é mais importante, a modelo real ou a sua
fotografia? Eles dizem que, em primeiro lugar, é a fotografia, mas a modelo não
pode se afastar muito dessa imagem”, conta Martinez.
Para
corresponder à imagem construída de si própria (a “mulher sensual”, a
“bonequinha”, a “beleza clássica”, a “exótica”, a “mulher com personalidade e
atitude”), muita disciplina é exigida, não só em relação ao corpo – que é
sempre a principal preocupação - mas também com a própria subjetividade. “Sobra
muito pouco tempo para elas serem elas mesmas, podendo exercer a sua
individualidade, já que elas entram muito cedo na profissão. Para muitas delas,
o sonho é ter uma ‘vida de verdade’, ser uma ‘mulher normal’”, afirma a
antropóloga.
Para
reproduzir a imagem de si próprias, seja na fotografia ou fora dela, as modelos
vivem sob constante vigilância – dos agentes e de si próprias. As expectativas
em relação à transformação do próprio corpo – comuns em qualquer adolescente –
são vividas com mais angústia e ansiedade: é um processo tenso, em que cada
detalhe do corpo é acompanhado, porque dele é que depende o sucesso ou o
fracasso na carreira: é preciso, pelo menos, crescer e ganhar a altura
desejada. Engordar, jamais. Por conta do cotidiano da profissão – pontuado pela
realização de testes para campanhas publicitárias e desfiles e pela
concorrência acirrada – é exigido das adolescentes que elas saibam lidar com a
rejeição dos clientes por conta dos seus “defeitos” apontados sem piedade: um
“nariz muito grande” ou alguns centímetros a mais no quadril.
Por
outro lado, a profissão de modelo muitas vezes funciona como um drible numa
história de rejeição que sofreram no passado. Muitas meninas, durante a
infância, eram alvos de piadas na escola, por serem muito altas. Ao tornaram-se
modelos, ganham o reconhecimento e a aceitação social de sua aparência. “A
profissão de modelo é pontuada por uma série constante de contradições:
satisfação e angústia, gratificação e pressão. Mesmo sendo ícones de beleza,
por estarem sob o constante julgamento dos outros e de si próprias, essas
mulheres, contraditoriamente, são as que se sentem mais feias”, lembra a
antropóloga.
|