Na política, a questão da ética está na ordem do dia e foi o mote dos debates e discussões políticas das eleições presidenciais que acabam de terminar. CPI dos Bingos, dos Correios, Sanguessugas, Mensalão retomaram um aquecido debate sobre o fisiologismo e o clientelismo tão arraigados na política nacional. Não faltam sugestões para moralizar o Congresso e diminuir os gastos indevidos do dinheiro público e, geralmente, elas passam pela mudança partidária, nepotismo, imunidade parlamentar e financiamento de campanhas. Para o cientista político da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Francisco Pereira de Farias, o clientelismo é o maior obstáculo a uma política mais ética, uma vez que motiva a individualização no sistema eleitoral em detrimento de um projeto partidário. “A lógica de mercado do processo socioeconômico capitalista foi incorporada pela política”, afirma Farias. “Longe de ser um desvio, o clientelismo é um fato normal ao interior de tal democracia”.
Historicamente o país conheceu o coronelismo, prática eleitoral comum da zona rural, em que o dono de terra negociava o voto de seus empregados em troca da manutenção dos postos de trabalho. Com o voto livre, explica Farias, há um sentimento de liberdade que comporta a possibilidade de negociá-lo em troca de benefícios. O cientista social, no entanto, discorda da corrente que vê uma herança colonial como fator determinante da presença do clientelismo na democracia moderna, uma vez que a prática pode ser identificada também em países desenvolvidos, ou seja, onde impera a democracia capitalista típica. “Tendo consciência de que as medidas tomadas pelo governo favorecem os interesses de alguns e não contemplam os de outros, os capitalistas se organizam para ter influência política. Eles tendem a encarar a despesa em política ‘como um investimento que deve, no devido tempo, proporcionar lucro’”, explica.
O clientelismo pode ser exemplificado no caso das Sanguessugas, esquema fraudulento de vendas irregulares de ambulâncias para mais de 100 municípios de cerca de 11 estados brasileiros. A Planam, empresa responsável por montar o esquema, negociava com parlamentares a entrega de ambulâncias antes do trâmite burocrático necessário, em troca da aprovação de emendas da área de saúde e de licitações a favor da empresa, que superfaturava os veículos em 110%, distribuindo os lucros entre os envolvidos.
A dança das cadeiras partidárias também pode ser considerada fruto desse clientelismo. Logo depois de eleitos, os candidatos negociam a mudança de partido, muitas vezes independente da ideologia. Pesquisa desenvolvida por Carlos Ranulfo Feliz de Melo, cientista social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostra que, no período de 1985 – quando a fidelidade partidária foi abolida – a 1998, nada menos que 686 deputados, entre titulares e suplentes, mudaram de partido, sendo que 118 o fizeram mais de uma vez dentro da mesma legislatura. Durante a década de 1990, algumas siglas chegaram a perder mais de 56% de seus deputados, como foi o caso do Partido Liberal (PL) (tabela 1). “O resultado é a instabilidade das bancadas em quase todos os partidos em qualquer legislatura que se analise”, conclui.
Partido | Deputados que abandonaram o partido entre 1985-1998 (%) | PL | 56,8 | PTB | 43,8 | PDT | 36,2 | PPR/PPB | 29,8 | PFL | 23,7 | PMDB | 23,6 | PSDB | 12,6 | PC do B | 5,9 | PT | 4,2 |
Tabela – Migração partidária na câmara dos deputados
na década de 1990. Adaptada de Melo (2000).
Restabelecer a fidelidade partidária, concordam os especialistas, seria uma forma de fortalecer os partidos. Atualmente, não é incomum o depoimento de eleitores que votam em pessoas e não em partidos, seja por entenderem que o partido representa pouco no quadro político ou por identificarem naquela escolha benefícios para a sua categoria profissional, comunidade ou grupo social, ou seja, pensando individualmente e não na coletividade. Francisco de Farias cita o modelo de fidelidade partidária seguido por alguns países europeus, em que a população vota não em candidatos, mas em listas pré-definidas por cada partido, o que tende a favorecer uma eleição espelhada no programa político.
A expectativa para que a reforma política seja posta em prática já no início do segundo mandato do governo Lula é grande. Francisco de Farias, da UFPI, acredita que há um amadurecimento de vários setores da sociedade para que a reforma aperfeiçoe o sistema político nacional e essa pressão faz com que nenhum partido hoje se coloque contrário a ela. “As práticas de democracia no Brasil ganharam mais consistência. O tema da ética ganhou mais visibilidade e foi transformada numa prática política”, aposta Farias.
A piora da ética
Octaciano Nogueira, cientista político e ex-professor da Universidade de Brasília (UnB), questiona a necessidade de um Código de Ética dentro da política, uma vez que não se trata de uma profissão, como no caso da medicina e do direito. Mesmo sem a existência de um código, lembra o pesquisador, os políticos eram punidos por violação de decoro, ou seja, um procedimento considerado indigno ou anti-ético da condição de representante do povo, de quem se espera austeridade, dignidade e probidade. “O que impede a ética na política é o corporativismo”, justifica. Para Nogueira, não adianta o Código determinar regras, quando na política se faz vistas grossas para elas, como no caso da proibição do artigo 4º do item II do Código de Ética que determina que “dirigir ou gerir empresas, órgãos e meios de comunicação, considerados como tal pessoas jurídicas que indiquem em seu objeto social a execução de serviços de radiodifusão sonora ou se sons e imagens”. Não é segredo que boa parte dos parlamentares é dona de concessões de meios de comunicação, a exemplo do atual ministro das Comunicações Hélio Costa, que possui concessão de emissora da rede Globo, onde atuou como repórter. Segundo levantamento realizado pela Agência Repórter Social, um terço dos senadores e mais de 10% dos deputados eleitos para o mandato de 2007 a 2010 controlam rádios ou televisões. “Os mecanismos éticos, à medida que o país se sofisticou, foram se transformando em recursos meramente protelatórios. Evidentemente o conselho de ética hoje já não existe mais. De que vale esse código, senão como demonstração explícita de ostensiva hipocrisia?”, desafia Nogueira.
O primeiro Código de Ética da política nacional surgiu em 1977 e o então presidente do senado, Humberto Luciano, que assinou o código foi também o primeiro a ser cassado. Seu crime foi ter usado a gráfica do Senado para fazer material de campanha, prática comum até hoje. O senador acabou absolvido pelo Congresso que votou uma lei de anistia. “De lá pra cá, à medida que o código foi evoluindo, as questões de ética foram piorando”, avalia o ex-professor da UnB. Atualmente, o processo de cassação foi dificultado e precisa passar por cinco instâncias: a Mesa diretora recebe o pedido de instauração de processo e o encaminha para a Corregedoria Parlamentar. Caso a defesa apresentada não seja suficiente para inocentar o acusado, o processo segue para o Conselho de Ética e Decoro Parlamentar para apuração dos fatos, assegurando defesa do acusado; se irregularidades são constatadas, a Mesa pode incluir a matéria no Plenário Parlamentar para deliberação ou até pedido de cassação de mandato. O deputado acusado pode ainda recorrer em todas as fases do processo e, quando a representação for considerada leviana ou ofensiva a sua imagem ou a da câmara, o processo é encaminhado à Procuradoria Parlamentar, para que tome as providências necessárias.
Ainda está em suspensão o momento em que a reforma política será concretizada, mas não há dúvidas de que o momento é propício. Francisco de Farias acredita que a reforma atenuará o clientelismo, “mas eliminá-lo é praticamente impossível nessa sociedade mercantil”. Ela é o ponto-chave da mudança da conduta ética na política, mas também depende da politização da sociedade e sua organização, além do papel educativo do legislativo e executivo em colocar questões a serem discutidas pelos políticos e pela sociedade. José Edgard Amorim, advogado e fundador da ONG Mãos Limpas (2003) que lida com o combate à corrupção, também acredita que tem havido amadurecimento da cidadania em relação às questões políticas, mas ainda é preciso melhorar a educação popular e modificar a estrutura atual que favorece a falta de ética. A vigília, segundo a organização, deve ser permanente e contribuir para ampliar a discussão sobre a maneira de organizar a sociedade “na luta por um país mais ético, transparente e justo”. O atual momento político impôs uma pressão de forma que nenhum partido se coloca contra a reforma. Resta saber quando e em que nível a Reforma Política será executada.
Leia mais:
- Mensalão oficial, artigo de Claudio Weber Abramo para a ComCiência
- Lobby e democracia no Brasil, Wagner Pralon Mancuso
- Dossiê sobre Democracia da ComCiência
- Entrevista com o filósofo Roberto Romano, da Unicamp, sobre ética na política (UOL News, 29/10/06).
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