O último relatório do IPCC (International Pannel for Climate Change) apresenta os preocupantes problemas que a humanidade deverá enfrentar ainda neste século devido ao aquecimento global. E isto se deve, em grande parte, ao crescente aumento das emissões de CO2, CH4 e N2O provenientes, principalmente, do consumo de energias fósseis e da queima de florestas.
Há um grande consenso entre os especialistas que o uso da biomassa é uma das principais soluções, no curto, médio e longo prazo, para minimizar o impacto extremamente negativo dos gases de efeito estufa. A matriz energética do Brasil detém o maior percentual de uso de fontes de energia renovável do mundo, com uma participação de 44,5% do consumo de energia, enquanto a média mundial é de 13,1%. Se a comparação for com os países integrantes da OCDE (Organização para a Cooperação de Desenvolvimento Econômico) a diferença é ainda maior, uma vez que apenas 6,1% da oferta interna de energia desses países provêm de fontes renováveis.
No que diz respeito ao setor de transportes, o Brasil é o país que mais utiliza biomassa na produção de combustíveis líquidos. Embora seu uso tenha se iniciado na década de trinta do século passado, foi, em 1975, com o Programa Nacional do Álcool – o Proálcool –, que o país apresentou ao mundo o único programa consistente de substituição da gasolina, como resposta às crises de petróleo de 1973 e de 1979.
A produção de álcool combustível atravessou diversas situações após quase trinta e dois anos de implantação do Proálcool. Nos primeiros dez anos, vivenciou-se um total sucesso, com a produção de álcool etílico saltando de 611 mil m3, na safra 1975/76, para 11,8 milhões m3 na safra 1985/86. Na primeira safra, o álcool anidro representava 79% do total da produção de etanol, invertendo-se, após dez anos, o percentual para o álcool hidratado, 77,3%, graças à rápida penetração dos carros movidos 100% a álcool (hidratado) a partir do início dos anos 80.
Nos quinze anos subseqüentes, o país assistiria ao progressivo declínio do Programa, com a queda das vendas de carros a álcool e da produção de álcool hidratado. No entanto, esse declínio não significou a estagnação da agro-indústria da cana-de-açúcar. Esta prosseguiu expandindo-se por conta das exportações de açúcar e da introdução de constantes melhoras em suas técnicas de produção, que minimizaram seus custos de produção. Em 2003, novas perspectivas surgiram para o uso de álcool hidratado, com a introdução de uma nova tecnologia para a frota de veículos leves, os carros flex fuel, capazes de aceitar qualquer grau de mistura de etanol ou de gasolina.
Com a introdução dessa nova tecnologia, é de se esperar que a demanda de álcool hidratado no mercado interno continue aumentando, não colocando em risco a infra-estrutura de distribuição do país, que conta hoje com cerca de 30 mil postos de abastecimento do combustível renovável.
A seguir, apresenta-se uma projeção do crescimento da frota nacional de veículos leves, da demanda de combustíveis, com foco no álcool carburante.
Mercado interno
Elaborou-se uma projeção da evolução da frota de veículos leves para 2025, apresentada na tabela abaixo, com base nas seguintes premissas:
-
A frota de veículos leves cresce 4% ao ano, acompanhando a evolução do PIB do país.
-
As vendas de veículos leves aumentam 5% ao ano.
-
Os carros flex representam 85% das vendas de veículos leves até 2025
-
A taxa de sucateamento dos carros flex é de 3,5% nos cinco primeiros anos; 5% de 2007 a 2012 e 10% até 2025
-
A venda de carros que utilizam gás natural veicular (GNV) é de 200 mil unidades/ano e a taxa de sucateamento desses veículos é de 7% até 2012 e 10% até 2025.
Com cerca de 21 milhões de unidades, a participação dos carros flex no total da frota nacional de veículos leves representa 45% em 2025.
Quanto à demanda de combustível, especificamente de álcool combustível, partiu-se das seguintes premissas:
-
Um litro de álcool hidratado equivale a 0,7 litro de gasolina, o que corresponde ao atual rendimento dos carros flex fuel
-
Um litro de gasolina contém 0,25 litro de álcool anidro
-
Oitenta por cento dos carros flex utilizam álcool hidratado
O consumo de álcool combustível, somadas as necessidades de álcool anidro e hidratado em 2025, é de 43,9 milhões m3, conforme apresentado na tabela abaixo.
Veículo |
Gasolina (106 m³) |
Álcool Anidro (106 m³) |
Álcool Hidratado (106 m³) |
Gasolina |
24,5 |
8,2 |
0,0 |
100% álcool |
0,0 |
0,0 |
0,9 |
Flex fuel |
4,4 |
1,5 |
33,4 |
TOTAL |
28,9 |
9,6 |
34,3 |
Mercado externo
Interessados em uma abordagem prospectiva, o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos-CGEE do Ministério de Ciência e Tecnologia-MCT, solicitou, no início de 2005, à equipe do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Unicamp, coordenada pelo professor Rogério Cerqueira Leite um estudo sobre as “possibilidades e os impactos da produção de grandes quantidades de etanol visando à substituição parcial da gasolina do mundo” em um espaço temporal de vinte anos.
Nascia então o Projeto Etanol que, na sua primeira fase, tinha como meta estudar a viabilidade da expansão da produção de etanol para exportar cerca de seis vezes a produção atual, o que significaria substituir 5% da demanda mundial de gasolina em 2025. Para alcançar essa meta, estabeleceram-se as principais premissas do estudo:
-
Expansão da produção de cana-de-açúcar em áreas não ocupadas por florestas (Amazônia e Mata Atlântica) ou em reservas ambientais e terras indígenas
-
Desconcentração da produção de cana-de-açúcar e de etanol
Para conhecer o potencial de expansão da produção de cana-de-açúcar no país, o Projeto Etanol contratou especialistas que elaboraram, em função do solo e do clima, um mapa das áreas potenciais para a cultura da cana, com e sem irrigação, excluindo-se aquelas com restrição ambiental e com declividade acima de 12%, em decorrência da meta 100% de mecanização na colheita. O estudo utilizou o mapa das terras com potencial para produção de cana-de-açúcar sem irrigação, ao qual foram acrescentadas as reservas ambientais, tais como reservas indígenas, parques ecológicos, militares e outras, conforme apresentado na Figura 1.
FIGURA 1: POTENCIAL DE PRODUÇÃO DE CANA DE AÇÚCAR NO BRASIL – SEM IRRIGAÇÃO
Atualmente, a produção de cana-de-açúcar e etanol está excessivamente concentrada na região Sudeste do país. Acredita-se que a desconcentração, visando minimizar as diferenças regionais, seja possível se forem empreendidas ações de planejamento e de pesquisa em áreas que hoje detêm potencial quanto ao solo, clima e declividade, mas que carecem de tecnologias específicas, como, por exemplo, variedades adaptadas de cana-de-açúcar.
A primeira fase do estudo, concluída em dezembro de 2005, selecionou doze áreas com potencial para produção de cana-de-açúcar. Definiu-se uma destilaria “padrão” e a formação de clusters, o que viabiliza a infra-estrutura necessária para o escoamento de grandes quantidades de etanol. O estudo incluiu os impactos sociais e econômicos, considerando-se a geração de energia elétrica disponível através da co-geração.
O estudo prosseguiu com a fase dois, que foi concluída em março de 2007. Nesta fase, duplicou-se a meta de produção de etanol para substituir 10% da demanda mundial de gasolina, também em 2025. Para isto, o Projeto Etanol selecionou mais cinco novas áreas e projetou uma destilaria “modelo” que maximizasse os ganhos na área agrícola e industrial, além de abordar alternativas para o escoamento do álcool das áreas produtoras até os principais portos do país.
Na área agrícola, destacam-se os estudos de melhoramento genético da cana-de-açúcar, de colheita e plantio mecanizado, técnicas de fertilização, tratos culturais e outros. Entre as novas tecnologias estudadas, na área industrial, merece destaque a introdução da hidrólise ácida e enzimática com o uso do bagaço e da palha.
A cana-de-açúcar ocupa atualmente cerca de seis milhões de hectares do país, sendo que praticamente a metade é destinada à produção de etanol. Quanto ao uso da terra, o estudo identificou 53 milhões de hectares com potencial alto e médio para a produção de cana-de-açúcar. Para atingir a meta de 205 milhões de m3, seriam necessários cerca de 40 milhões de hectares, se forem mantidos os parâmetros atuais de produtividade, e sem considerar avanços tecnológicos na área agrícola e industrial.
A segunda fase do Projeto Etanol dinamizou a demanda de terras de cana-de-açúcar, considerando também a necessidade de atender ao mercado interno de etanol e aos mercados interno e externo de açúcar.
Prosseguindo com a visão de longo prazo, a terceira fase do Projeto Etanol, que deverá ser concluída este ano, contempla estudos de sustentabilidade, no que diz respeito à manutenção e melhorias na produção de etanol na área agrícola e industrial bem como os requisitos de excelência no uso do solo, diminuição e controle de água, tratamento do vinhoto e outros. Essa fase contempla ainda estudos sobre a legislação de possíveis países compradores e do marco regulatório nacional.
O Projeto Etanol busca garantir a sustentabilidade de toda a cadeia produtiva e de escoamento, contemplando o desenvolvimento das comunidades locais, com educação, saúde, emprego, além de prever um sistema de produção ecologicamente sustentável. Para isso é indispensável a atuação do Estado como órgão coordenador desse desenvolvimento, integrando o setor público e privado.
Com a implantação de um projeto dessa magnitude, o Brasil manteria e ampliaria sua posição de país líder de fontes renováveis de energia de modo competitivo e sustentável. Contribuiria ainda com a redução de gases de efeito estufa, principalmente o CO2, através da substituição do uso de combustíveis fósseis pelo uso de etanol proveniente de biomassa.
Mirna Ivonne Gaya Scandiffio é pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Unicamp e André Tosi Furtado é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências, da Unicamp.
|