10/05/2008
Há 20 anos, o diretor Robert Zemeckis inovou o gênero de filmes infantis, ao mesclar desenho animado e atores reais em Uma cilada para Roger Rabbit. Imagine uma mescla como essa, mas com traços de quadrinhos adultos em estilo underground, um filme escuro, praticamente sem cores, inspirado num drama psicológico do porte de Crime e castigo (Dostoievski, 1866). Assim é Nina, primeiro longa-metragem do diretor Heitor Dhalia, lançado em 2004 e vencedor de prêmios internacionais como o da Crítica, no Festival de Moscou; o de Melhor Direção, no Festival de Nova York; e o de Melhor Fotografia no Festival de Lima.
Apesar da ousadia da proposta e da aclamação em festivais, é bom frisar que o próprio diretor reconhece não ter tido a pretensão de adaptar Crime e castigo, e considera seu filme uma espécie de “caderno de anotações” sobre essa obra de Dostoiévski. Quem amarra a trama em Nina é a personagem Eulália. Segundo a atriz Myriam Muniz, que rouba a cena ao interpretá-la, Eulália é a encarnação de um dos sete pecados capitais, a avareza. Ela povoa os pesadelos da protagonista Nina com diferentes versões de como poderia ser assassinada. É aí que entram os desenhos, feitos pelo autor de quadrinhos adultos e sombrios Lourenço Mutarelli. Eles pontuam no filme os momentos em que o ódio alimenta as alucinações de Nina, ela própria também desenhista. A velha Eulália, que aluga um quarto para Nina, está sempre cobrando o pagamento do aluguel atrasado e impede que sua inquilina consuma os produtos de sua geladeira sem que contribua com as despesas.
Pode-se dizer que Nina vive uma espécie de tormento, de castigo, que precede o seu crime (e em tese, só cessaria com ele): ela sofre a punição de ser humilhada por Eulália, por sua escolha de não se enquadrar às regras e aos padrões da sociedade contemporânea. Um exemplo disso é quando abandona um emprego de garçonete em uma lanchonete, ao não suportar as exigências de clientes que vê como porcos em sua mente ainda perturbada pela noite não dormida e agitada em uma festa com drogas e música eletrônica. Algo tão underground quanto seus sonhos e desenhos – os dela e de Mutarelli. O seu castigo após o crime – o sentimento de culpa e de auto punição que está no cerne de Crime e castigo – é diluído nessa personagem próxima da fronteira com a loucura, de quem só temos um recorte de sua vida, com fragmentos do passado em meio às suas alucinações.
Quando esses delírios não recaem sobre a figura de Eulália e as possíveis formas de matá-la, eles distinguem-se da realidade pelo preto e branco (quase sépia) das imagens. Nessas cenas, aparecem ora homens espancando um cavalo – pesadelo que afligiu o jovem estudante Raskolnikóv, protagonista de Crime e castigo – ora uma menina, supostamente Nina em sua infância, e outras pessoas que talvez tenham feito parte de sua história, à qual o espectador não tem acesso. Não se sabe, por exemplo, se essa recordação está ligada a algum trauma de infância, já que não há nenhuma pista sobre isso no filme. Assim como não sabemos o que levou Nina a se tornar inquilina de Eulália e se sujeitar a toda a humilhação pela qual passa. Sabemos apenas que ela recebe eventualmente ajuda financeira da mãe – confiscada pela sua credora –, assim como a mãe de Raskolnikóv o ajuda como pode.
A falta de dinheiro também atormenta Raskolnikóv; mas seu propósito de matar a velha mesquinha e sovina Alena Ivanovna, equivalente à Eulália na obra de Dostoievski, não é apenas para se livrar de um problema pessoal, como a cobrança de uma dívida e a necessidade de matar a fome, a qual, no caso de Nina, só aumenta com a interdição da geladeira. O crime de Raskolnikóv tem motivações altruístas: ele espera corrigir um erro no equilíbrio do mundo ao eliminar Alena, que explora sua irmã Isabel Ivanovna. Com o dinheiro da velha, que planeja roubar após o assassinato, ele pensa poder dispensar a ajuda da mãe e da irmã para continuar os estudos e conseguir meios para servir à coletividade, para ser útil aos outros.
Nina também tem seu altruísmo, baseado em uma certa amoralidade: ela abre mão de finalmente saciar a sua fome e ajuda uma prostituta que estava sendo humilhada por um taxista – cena inspirada em um ato semelhante de Raskolnikóv. Porém Nina a ajuda com o dinheiro que roubou de um cego com quem fez sexo, após ter se recusado a aceitar a sugestão de uma amiga de vender seu corpo para resolver seu problema financeiro, por achar que ninguém pagaria para vê-la nua. (Nesse pensamento torto, pode-se supor que para Nina, o cego poderia pagar pelo sexo com ela, já que não veria seu corpo; mas o que ocorreu entre eles não foi um acerto, e sim um roubo).
Em relação ao assassinato das velhas (a Eulália, no filme, e Ivanovna, no livro), a auto punição dos protagonistas têm suas distinções: enquanto Raskolnikóv se tortura, não por arrependimento, mas na tentativa de convencer a si próprio, pelo raciocínio lógico, de que não cometeu um crime – o que não o liberta do sentimento de culpa; Nina se auto aprisiona na casa de Eulália, com medo de que alguém descubra o assassinato. E paradoxalmente ela parece encontrar sua redenção somente quando uma amiga/amante encontra uma suposta confissão em seu caderno de desenhos e anotações – inspirado no diário de Raskolnikóv. Já o protagonista de Crime e Castigo redime-se pelo amor a uma prostituta e em reflexões filosóficas acerca de sua leitura do evangelho.
O fundo moral e religioso que está na base de toda forma de punição, inclusive o auto flagelo, é uma ausência significativa no filme de Heitor Dhalia. Para o representante do realismo russo Dostoiévski, isso não entrou em sua obra por acaso e faz parte de sua própria história de vida. Ainda adolescente, ele experimentou um sentimento de culpa semelhante ao de Bentinho, protagonista de Dom Casmurro, no capítulo “Um pecado” desse romance do também realista Machado de Assis. Forçado a se internar em um seminário contra sua vontade, como pagamento de uma promessa da mãe, Bentinho recebe no internato a notícia de que sua mãe estava doente e queria vê-lo em casa; por um instante tão breve quanto um relâmpago, ele pensa “Mamãe defunta, acaba o seminário”, mas logo se penitencia com 2 mil padres-nossos (que, contudo, não cumpre).
Na infância de Dostoiévski, a brutalidade de seu pai o fez desejar que ele morresse; e quando, adolescente, recebeu a notícia de que o pai havia sido assassinado por camponeses e sentiu-se responsável pelo crime e por ter desejado a sua morte. Anos mais tarde, não tanto por sua obra, mas por ter participado de um grupo socialista revolucionário, foi preso e condenado à pena de morte. O imperador Nicolau I amenizou a sentença e enviou os detentos para a Sibéria, para onde Dostoievski levou apenas um evangelho e onde conviveu com a variedade e a humanidade de criminosos. Eis a base do livro que inspirou Nina.
Filme: Nina Direção: Heitor Dhalia Brasil, 2004
|