Éramos mais felizes quando não sabíamos o tamanho exato do mundo? Na tradição oriental, enquanto Confúcio buscava educar o homem por meio do conhecimento por considerar que todo mal brotava da ignorância, Lao-Tse preferia que as pessoas permanecessem ingênuas e simples, como crianças.
Mudei de casa há mais ou menos dois meses. No novo quarto,
comecei a organizar numa das estantes abaixo da TV os CDs que andavam
escondidos embaixo de um armário do antigo apartamento. Ao fim da tarefa, fiz
uma peneira entre os CDs avulsos e as capas vazias, organizei o que ficou de pé
em uma ordem mais ou menos lógica e voltei a ouvir canções que andavam, se não
esquecidas, distantes do meu radar dos últimos anos, quando descobri sites,
programas e aplicativos de música.
Nos primeiros dias na casa nova, me sentia como se tivesse
aberto uma passagem para um período anterior à chegada da internet em casa.
Depois das músicas foi a vez de organizar os DVDs, e depois dos DVDs, os
livros.
Lembrei, então, como era ler, ouvir músicas ou assistir
filmes por escolha própria, baseado em desejo, memória afetiva ou interesse em
novas descobertas, e não a partir de sugestões criadas por algoritmos ou
conteúdo compartilhado por pessoas com quem tenho uma predisposição em seguir.
Eu poderia levar meses, anos, para percorrer tudo o que
havia naquelas prateleiras finalmente organizadas, mas era menos angustiante
pensar que no dia seguinte aquelas prateleiras não precisariam ser atualizadas
ou substituídas com enxurradas de novidades, como acontece quando abrimos o
aplicativo de filmes ou vídeos e passamos mais tempo escolhendo um título do
que assistindo qualquer coisa – e mais preocupados com a sensação de estar
perdendo alguma série do que concentrado na escolha.
Ter acesso a tanto conteúdo era algo impensável mesmo para
quem, ainda ao final do colegial, já substituíra as folhas de papel almaço e as
cartolinas pelas poderosas impressoras coloridas. Mesmo na faculdade, era
difícil imaginar outra ponta de lança das novas tecnologias que não estivessem
na sala de informática – onde, a pretexto de terminar ou imprimir algum
trabalho, aproveitávamos o tempo e a internet gratuita, ainda cara para
instalar em casa, para enviar e-mails para amigos, para a namorada ou atualizar
o status no Orkut.
Minha geração, nascida entre o fim dos anos 1970 e começo
dos 1980, sentiu o impacto de todas as mudanças nas formas de comunicação até
poder carregar o mundo em uma tela sensível de smartphone dentro do bolso.
As mudanças nas formas como nos comunicamos alteraram também
as formas como sentimos e pensamos, e a(s) consequência(s) disso ainda é(são)
uma (muitas) incógnita(s).
Aparentemente nos tornamos uma sociedade mais conectada com
o mundo e, portanto, mais ágil, mais crítica, menos propensa a provincianismos.
Antes disso tudo, quando próximos de completar 30 anos, tudo
o que meus pais poderiam almejar era um emprego fixo, uma boa casa, num bom
bairro, de preferência com piscina. Não faz muito tempo, todas as vivências
estavam circunscritas num limite espacial. Eles não viviam naquele bairro; eles eram aquele bairro, onde produziam, multiplicavam e cultivavam
suas redes de relacionamento mais ou menos como tentamos organizar nossas
prateleiras físicas de conteúdo audiovisual.
Na época – friso de novo, não faz muito tempo –
compartilhamento de conteúdo era colocar a cabeça para fora da janela e avisar
a vizinha de quintal que estava pronta a torta. Ao menos nos bairros das
pequenas e médias cidades, onde eu nasci e me criei, era assim que
compartilhávamos informação e conteúdo, sobretudo receitas.
Aqueles bairros tinham um som e um cenário muito próprios.
Ouvia-se rádio pela manhã (aos domingos, a Fórmula 1). Os jornais (geralmente
locais, feitos por quem desenvolvia na cidade afetos e referências locais) eram
colocados debaixo dos tapetes. As cadeiras se espalhavam pelas ruas. O toque de
telefone era quase um sinal de emergência. Um chamado com a importância do
valor do interurbano.
Fico imaginando qual seria a nossa reação, naquele bairro
onde pais, avós e filhos repetiam rotinas, se alguém contasse que, num futuro
muito próximo, poderíamos conhecer o amor das nossas vidas por meio de
aplicativos que nos aproximariam até mesmo a partir de visões políticas. E que
poderíamos construir intimidades, puxar conversa, ouvir a voz e mandar nudes
para pessoas que – pasmem – jamais pisaram em nosso bairro, mais ou menos como
o sobrinho de Clara, a protagonista de Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho, quando apresenta à família de Recife a namorada do
Rio. Clara, de certa forma, representa uma forma de vivenciar experiências
dividida entre o assombro e o encanto diante do novo mundo que se ergue na
alegoria de um novo padrão de habitação – vigiado, supostamente seguro, no
entanto mais asséptico, sem contato com o desencontro das ruas e enclausurado
na falsa ideia de paraíso das varandas gourmet.
Para um nativo digital, o mundo não está no bairro, mas na
potência da conexão. É ela que produz afetos, diminui distâncias e escancara,
ou deveria escancarar, janelas. Os efeitos, de imediato, são as mudanças de
referências. Sai o padre, o chefe e o delegado locais e entram os gurus de
redes sociais que nos explicam, em textões ou sentenças em 140 caracteres, a
origem da vida e o sentido da morte. A plateia do professor pop é agora uma
multidão digital. Ele compete com a youtuber. Com o apresentador dito
politizado e seus milhões de seguidores. E não tem nada que não possamos fazer
em casa, da montagem da estante à receita da torta, que não nos ensinem pelo
YouTube.
Em algumas horas atualizamos tudo o que (não) precisamos
saber sobre a vida de qualquer pessoa sem precisar de perguntas indiscretas
àquele primo da cunhada que encontramos por acaso na fila do banco. Tudo porque
um gênio contemporâneo percebeu que era possível transformar aquele aviso pela
janela de que a torta estava pronta no botão “compartilhar” – e nossos gostos e
subjetividades expressas no botão “curtir”, o dispositivo que colocou abaixo
tudo o que até então sabíamos sobre propaganda, aquela bala de canhão disparada
em horário nobre para atingir as moscas chamadas público-alvo específico.
Antes que este texto chegue à linha final, é possível que
muitas das novidades tecnológicas citadas aqui já tenham sido destronadas por
outras novidades e atualizações de sistemas. Mas a transição entre o mundo
analógico e o mundo digital, que nos transformou em sujeitos passivos dos
algoritmos mas ativos no posicionamento, parece, mal e mal, estabelecida – ou
na fase final do loading.
Os impactos disso começam a ser sentidos e estudados, e
podem servir como peças-chaves para a compreensão de algumas de nossas crises
ainda não nomeadas como sofrimento. A econômica, por exemplo. Aqui, o caso Uber
serve como exemplo evidente dos desafios: um aplicativo capaz de localizar o
automóvel mais próximo coloca o cliente em contato direto com o motorista e
solapa na base um serviço tão antigo quanto o automóvel. O corte de
intermediários (a central de rádio, o aluguel do ponto, o dono do automóvel)
reduziu os custos de operação e causou celeuma entre taxistas que mal aceitam
pagamentos por cartão. Ao mesmo tempo, está longe de conferir uma remuneração
justa a quem resolve aderir ao serviço como motorista sob o atrativo de que
agora é o patrão de si e faz o horário que quiser, quando quiser.
O encurtamento de distâncias, a facilidade de comunicação e
as ferramentas de trabalho incorporadas às máquinas de uso pessoal prometem
alterar a dinâmica do trabalho. Não é à toa que mobilidade se tornou uma
palavra-chave dos dilemas contemporâneos, sobretudo quando temos ao fundo uma
discussão complexa sobre aquecimento global e descarbonização da economia.
Muitos já não precisam se deslocar até uma sede para bater
ponto na empresa. Podem se organizar e enviar trabalhos e relatórios de casa.
Podem se graduar, inclusive, sem precisar transportar os próprios corpos para
uma sala de aula armada apenas de lousa e giz (os laboratórios de informática,
imaginamos, viraram peças de museu).
E os donos de lojas, que empregam atendedores e pagam
aluguel do espaço na rua principal, nunca estiveram tão ameaçados pelos
programas que colocaram o cliente a um clique do produto sobre o qual ele já
pesquisou, já pediu referências, já mediu os prós e os contras.
Tudo isso coloca em risco sistemas consagrados de produção,
geração e manutenção de emprego e desafia governos nacionais, sobretudo em
países cujo PIB, em muitos casos, não é superior ao faturamento de gigantes da
tecnologia que estão em todo lugar e não estão em lugar algum. Das dez maiores
marcas da atualidade, as sete primeiras são ligadas à tecnologia.
Até aqui, a democratização da informação não é acompanhada
pelo ajustamento das distâncias entre ricos e pobres. Pelo contrário, seguimos
desiguais. Nos países mais ricos, os filhos se ressentem porque não terão uma
casa com piscina, emprego para toda a vida e dois carros, a exemplo dos pais.
Os padrões de consumo provavelmente serão mais modestos. Ao mesmo tempo, será
cada vez mais plausível enquadrar o universo num aparelho do tamanho de uma
casca de noz.
A tecnologia desafia, portanto, todas as cartilhas que
imaginávamos consagradas até pouco tempo, e isso tem alterado a lógica de
hierarquias que atravessaram imunes a modernidade. Aparentemente está aqui a
causa de tanto desconforto em um mundo de referências simbólicas
desarticuladas.
Um dos desafios da ordem do dia é lidar com a ansiedade de
uma época em que não nos falta informação, mas sim capacidade de articular
ideias, compreender contextos, filtrar o que é verdade, o que é mentira e o que
é pós-verdade num mundo em que dividimos, no mesmo grupo de WhatsApp da
família, atenções com notícias de portais confiáveis e pegadinhas sobre a
próxima capa da revista que vai provar a ligação do papa com as Farc, o partido
político odiado e o vírus da Zica na mesma corrente.
Em parte como consequência dessa aceleração e ansiedade, esta
época tem produzido formas de sintomas que não cabem nas velhas cartilhas sobre
certo e errado, crime e pecado, ordem e desordem.
Para o bem ou para o mal, as redes revolucionaram a
capacidade de mobilização – seja para articular a reunião de uma multidão para
pedir o retorno de militares ao poder, seja para deixar claro que as violências
naturalizadas por estruturas hegemônicas já não são toleradas porque as vozes
que se rebelam contra elas estão unidas.
Tudo isso tem ajudado a delimitar inclusive o rosto de
ideias que dificilmente estavam em pauta naquele mundo delimitado pelo bairro
onde morávamos – quando tudo o que sabíamos poderia dormitar tranquilamente
como as referências contidas na estante de livros, CDs e DVDs/VHS, um espaço
delimitado do conhecimento por uma condição física.
Descobrimos, assim, que aquela tia racista é uma multidão.
Que aquele vizinho xenófobo agora é presidente dos EUA. Que aquele primo
homofóbico tem bandeiras políticas. E que aquele amigo misógino já não arrota e
bate no peito entre os seus, mas sim diante de um público de seguidores
igualmente desorientados e desconfortáveis com um mundo que se desorganizou,
alterou alguns status e agora pena para se reorganizar.
Em qualquer roda de conversa, muitos se perguntam se não era
melhor viver como antes: uma vida sem tantas referências, regrada, repleta de
contenções, de sabedorias identificáveis no paletó do professor ou na ladainha
de domingo do padre.
Os antigos, que encerraram o turno sem perceber que a velha
máquina de escrever tinha ficado obsoleta após a chegada do PC 386, costumam
recorrer a uma velha ordem para lembrar de um tempo em que sentiam ter o
controle das coisas, inclusive geográfica. E muitos dos filhos começam a
manifestar uma certa propensão a um certo servilismo voluntário. Alguns já saem
nas ruas com os hinos decorados à espera de entidades místicas e morais que
reprimam e tomem conta da desordem contida em um mundo que soube desconstruir
referências e não conseguiu colocar nada no lugar. Aqui mora o perigo: nada
mais tentador do que ouvir ordens de quem jura saber o caminho; trocamos,
assim, qualquer liberdade pela sensação de segurança contida nas respostas prontas.
O mundo que se encantou com a derrubada de muros e implosão
de janelas agora está apavorado com o que viu: a diversidade. Mais que isso: está
apavorado com a ideia de que, para que todos tenham espaço, será preciso ceder
o lugar em algum momento. A diferença é que já não estamos/somos o bairro,
estamos/somos o mundo. Isso muda inclusive a forma como rimos: se antes o
sujeito desenquadrado dos padrões hegemônicos de comportamento ou sexualidade estava
desamparado, hoje ele se reúne, se articula, luta por um lugar de fala que
desarticula, por sua vez, as narrativas hegemônicas que produziram e
naturalizaram exclusão e sofrimento.
O embate, é, então, inevitável.
Éramos, então, mais felizes quando não sabíamos o tamanho
exato do mundo?
A resposta é tão distante quanto antiga. Na tradição
oriental, enquanto Confúcio buscava educar o homem por meio do conhecimento,
por considerar que todo mal brotava da ignorância, Lao-Tse preferia que as
pessoas permanecessem ingênuas e simples, como crianças.
O embate atravessa as discussões contemporâneas toda vez que
alguém, abalado pelas contestações das posições de conforto, se ressente com a
chamada ditadura (sic) do politicamente correto, que agora patrulha e condena
quem até pouco tempo vivia num reino em que até o riso e a palavra eram
ingênuas, não tinham maldade – nem serviam como ameaça de uma ordem
remanescente de 300 anos de escravidão.
Hoje, diante de discursos de ódio, é muito fácil identificar
a limitação do argumento de quem não sabe o que diz ou reproduz. Essa figura
sempre existiu. De uns tempos para cá, ganhou confiança (e candidatos
competitivos) para transformar o ódio e o preconceito em matéria-prima para as
saídas milagrosas de um tempo de incertezas e ansiedades agudas.
Talvez tenhamos sempre sido assim. A diferença é que hoje
estamos dispostos a contra-narrativas que não tinham espaço nas páginas
limitadas de edições limitadas pelo papel. Já não dormimos confiantes de que
era certa a narrativa definitiva segundo a qual a repressão a determinado
protesto foi “pacífica”, segundo as forças de segurança, quando qualquer
participante pode postar em suas redes os vídeos que desmentem a versão oficial.
Em junho de 2013 essa capacidade de dobrar narrativas oficiais ficou mais
clara. E deixou claro, em contrapartida, a dificuldade de se dormir em paz.
O erro é imaginar que essa paz existia em algum lugar do
passado e foi quebrada. Quando alguém ainda preso ao mundo pré-Guerra Fria
tenta explicar como as coisas antigamente funcionavam numa suposta ordem, é
sempre bom desconfiar dos chamados custos dessa suposta ordem. Desconfio que
havia mais silêncio, provavelmente menos embates entre grupos, sobretudo nas
relações assimétricas desenvolvidas dentro de casa, a começar pela relação
entre marido e mulher. Isso não significa que, naquela vida domesticada, as
pessoas eram mais felizes. Eram apenas mais quietas. Mais amedrontadas. Mais
propensas a somatizar sofrimento e enlouquecer no confinamento do lar, das
injustiças e das relações desiguais que não tinham, ou quase não tinham, por
onde desaguar.
Hoje observamos fluxos resultantes dessa articulação. Somos
o tempo todo confrontados em nossa posição. Em nosso conforto. No século XXI,
esse indivíduo narrado através de suas posses – o que é, o que tem, o que
conquistou – é desconstruído e despossuído, para usar uma expressão do filósofo
Vladimir Safatle, por essa possibilidade de encontro: quanto mais percebe o mundo
alargado, menor sua segurança e condição. Esse indivíduo sabe que o mundo não
se organiza a partir da sua prateleira de saberes. Mas saber da sua
incapacidade de absorver tanta informação, exposta o tempo todo em tempo tão
ágil, é a prova quase visual de sua insuficiência.
Para Safatle, assumir essa contingência é uma forma de ação,
em detrimento de quem espera ou teme a solução política que lhe é externa. A
outra opção é vedar os olhos, bocas, narinas e orelhas e reproduzir, no escuro
do quarto, a falsa sensação de controle ensaiada quando para estar no mundo
bastava sair pelo bairro. Por sorte ou azar, Mark Zuckerberg também já
providenciou o botão para bloquear divergências e fazer do mundo, virtual
apenas no nome, um palanque contínuo daquela velha opinião formada sobre tudo.
Matheus Pichonelli é
jornalista, escritor, cronista e articulista. É autor do livro de contos Diáspora (Edições Inteligentes, 2005). Mantém um blog
no Yahoo Brasil e uma coluna na CartaCapital.com.br
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