Os problemas relacionados ao ensino de ciências são amplamente divulgados nas pesquisas educacionais da área. A desmotivação de alunos e professores não é uma novidade nas escolas brasileiras. O ensino de física, química e biologia ainda é predominantemente marcado pelo tradicionalismo positivista, o que reduz a ciência ao tecnicismo e elimina qualquer nuance de contexto no processo de desenvolvimento das teorias científicas.
Nos últimos anos, alguns pesquisadores da área de ensino de ciências têm se preocupado em oferecer algumas alternativas educacionais que visam superar a crise instaurada no atual cenário. Uma dessas alternativas é a inserção de tópicos da história da ciência, defendida por vários acadêmicos, tais como Silva et al (2008) Gatti, Nardi e Dirceu (2010), Praxedes e Peduzzi (2009), Bernardes e Santos (2009), Quintal e Guerra (2009), entre outros. Para Mathews (1994, p.72 apud Silva et al, 2008, p. 499), a história da ciência pode:
humanizar as ciências e aproximá-las mais dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos; tornar as aulas mais estimulantes e reflexivas, incrementando a capacidade do pensamento crítico; contribuir para uma compreensão maior dos conteúdos científicos, ...; melhorar a formação dos professores contribuindo para o desenvolvimento de uma epistemologia da ciência mais rica e mais autêntica, isto é, a um melhor conhecimento da estrutura de ciência e seu lugar no marco intelectual das coisas.
Nesse sentido, a abordagem histórica da ciência pode contribuir para a desmistificação do desenvolvimento científico, que, para muitos, ainda é visto como algo praticado por seres superiores e completamente isolado do contexto social em que está inserido o cientista. Assim, a presença da história da ciência nas salas de aula pode ajudar a mudar a percepção pública da ciência, além de contribuir para a formação de cidadãos críticos, o que é um aspecto primordial na educação (Silva et al, 2008).
Uma das maneiras de se levar a história da ciência para a sala de aula é colocar o aluno em contato com a biografia do cientista. Os episódios históricos, geralmente narrados nas biografias dos cientistas, evidentemente podem ocupar um lugar no processo educativo. No entanto, devem ser caracterizados e inseridos num contexto mais amplo da análise histórica (Da Silva Carneiro; Gastal, 2005). É importante que se tenha como objetivos que os aprendizes consigam compreender que o trabalho do cientista está relacionado ao contexto social em que vive, e que o desenvolvimento da ciência não é refém da genialidade isolada de alguns cientistas.
Para tanto, o material a ser utilizado pelo professor em sala de aula assume um papel importante na inserção de tópicos históricos durante a apresentação do conteúdo programático. O uso de materiais que despertem o interesse dos alunos torna-se fundamental, mas deve ser escolhido ou desenvolvido com o devido cuidado, para que os referidos objetivos sejam contemplados.
Os livros de divulgação científica
As obras biográficas sobre cientistas são classificadas como livros de divulgação científica. Alguns desses livros “costumam ser acusados de distorcer a ciência, na tentativa de apresentar algo compreensível a um público mais amplo” (Martins, 2008, p. 243).
Em pesquisa publicada recentemente (Urias; Assis, 2012), nós analisamos e comparamos duas biografias do físico Albert Einstein. A primeira, intitulada Albert Einstein e seu universo inflável, escrita por Mike Goldsmith (2002) , e a segunda, Einstein: sua vida, seu universo, escrita por Walter Isaacson (2007) . Encontramos diferenças marcantes entre as duas obras, no que diz respeito à maneira como os fatos históricos foram relatados:
Goldsmith apresenta uma visão na qual Einstein é o gênio que desenvolveu teorias importantes se valendo exclusivamente da incrível inteligência e incomum habilidade para imaginar. Essa visão contribui para mistificar ainda mais a visão popular do cientista, que trancado em seu gabinete, emprega grande esforço mental, sozinho, no anseio do momento “ahá”, que culminará numa grande descoberta.
De maneira diferente, Isaacson pôde se aprofundar nos detalhes da vida do físico e, assim, apresentou uma visão distinta da de Goldsmith. A forma como escreve sua obra, baseada em cartas pessoais do cientista, diários e anotações, evidencia uma genialidade diferente daquela concebida pela cultura popular. Isaacson mostra que Albert Einstein foi um gênio que associou ideias de outros gênios. O autor mostra que o físico foi profundamente influenciado por filósofos e cientistas que já haviam previsto os conceitos essenciais da Teoria da Relatividade Especial. Além disso, relata a falta de habilidade de Einstein com a matemática. Os auxílios de Mileva Maric e de Marcel Grossman, que mais tarde tornou-se seu matemático particular, foram fundamentais para o desenvolvimento das Teorias da Relatividade, Especial e Geral (Urias; Assis, 2012, p. 225-226).
A comparação feita nessa pesquisa permitiu verificar que os dois autores das biografias elencaram praticamente os mesmos fatos históricos para permitir a compreensão do contexto da vida de Albert Einstein. No entanto, uma diferença marcante entre os dois livros foi evidenciada na notável supressão de detalhes da vida de Albert Einstein na obra de Goldsmith. Naquele trabalho (Urias; Assis, 2012), destacamos que o leitor alvo talvez não se interessasse por tais detalhes, já que a inserção de tais aspectos deixariam a obra um pouco mais densa e exigiria maiores habilidades para uma boa interpretação. Para nós, a linguagem utilizada por Goldsmith deixa claro que o seu objetivo é o de entreter o leitor e, ao mesmo tempo, apresentar-lhes um dos físicos mais renomados da história da ciência, em sua intimidade, evidenciando mais as qualidades do que os defeitos.
Esse tipo de retórica monumentaliza tanto o cientista quanto a sua obra. Para engajar o leitor, o cientista deve se tornar um super-humano, que exala virtudes, com um caráter exemplar, sem falhas, e suas descobertas acabam por serem consideradas atos heroicos. Não há falhas, e o método utilizado na pesquisa é o que determina o sucesso da descoberta.
Implicações no ensino de ciências
Estratégias de ensino que procuram contextualizar o conteúdo programático da disciplina com o método cuja teoria foi desenvolvida, levando em consideração o contexto da época em que atuava o cientista, devem ser elaboradas dentro de uma perspectiva que torne a ciência acessível aos educandos, mas que não mistifique o trabalho do cientista e o próprio desenvolvimento do conhecimento científico. Os alunos devem ter acesso aos motivos pelos quais os cientistas se debruçam sobre as teorias, pois, muitas vezes, existem objetivos políticos, sociais, tecnológicos, interesses comerciais, prêmios, ascensão acadêmica, entre outros, envolvidos nos projetos de pesquisa. Além disso, muitas portas se abrem para um cientista que desenvolve uma pesquisa de profundo impacto social. Nem a pesquisa nem o pesquisador são neutros, muito menos desconectados das coerções sociais.
No Brasil, os que se dedicam à ciência percorrem um caminho árduo. A deficiência histórica do acesso ao conhecimento científico e matemático nas escolas, a falta de oportunidades no mercado de trabalho, a difícil ascensão na carreira científica e a falta de financiamentos para as pesquisas, representam barreiras cruciais para o acesso dos jovens brasileiros nas carreiras científicas e, consequentemente, para o desenvolvimento da ciência em nosso país.
Nesse sentido, o uso das biografias no ensino de ciências pode contribuir para a apresentação da verdadeira ciência nas salas de aula e, porventura, estimular o acesso de jovens nas carreiras científicas. Fica a cargo do professor, apresentar aos alunos tal concepção de ciência, já que na maioria dos livros de divulgação científica ela é mitificada. Quanto menos idealizada for a ciência apresentada pelo professor, mais significativo será o trabalho de apresentação dos detalhes do processo científico. Quanto menos a figura do cientista for monumentalizada, ou seja, tornada inacessível, maior será o número de alunos que poderá aspirar à carreira científica.
Guilherme Urias é professor da Faculdade de Pindamonhangaba, mestre em ensino de ciências e doutorando em educação para ciência na Unesp de Bauru.
Alice Assis é professora da Faculdade de Engenharia da Unesp de Guaratinguetá e da pós-graduação em educação para ciência na Unesp de Bauru.
Referências Bibliográficas
Bernardes, A. O.; Santos, A. R. dos. “História da ciência no ensino fundamental e médio”. A Física na Escola, São Paulo, v. 10, n. 02, 2009. Da Silva Carneiro, M. H.; Gastal, M. L. “História e filosofia das ciências no ensino de biologia”. Ciência & Educação, v. 11, n. 1, p. 33–39, 2005. Gatti, S.; Nardi, R.; Silva, D. da. “História da ciência no ensino de física: um estudo sobre o ensino de atração gravitacional desenvolvido com futuros professores”. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. 15, n. 01, 2010. Goldsmith, M. Albert Einstein e seu universo inflável. Tradução Eduardo Brandão. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. Isaacson, W. Einstein: sua vida, seu universo. Tradução Celso Nogueira et al. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Martins, R. A. “Como distorcer a física: considerações sobre um exemplo de divulgação científica 1-Física clássica”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 15, n. 3, p. 243–264, 2008. Praxedes, G.; Peduzzi, L.. “Tycho Brahe e Kepler na escola: uma contribuição à inserção de dois artigos em sala de aula”. Revista Brasileira do Ensino de Física, São Paulo, v.31, n. 03, 2009. Quintal, J. R.; Guerra, A.. “A história da ciência no processo de ensino e aprendizagem”. A Física na Escola, São Paulo, v. 10, n. 01, 2009. Silva, C. P. et al. “Subsídios para o uso da história das ciências no ensino: exemplos extraídos das geociências”. Ciência & Educação, v. 14, n. 3, p. 497–517, 2008. Urias, G. M. P.; Assis, A. “Análise de biografias de Einstein em dois livros de divulgação científica”. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 29, n. 2, p. 207–228, 2012.
|