Os bilhões de telespectadores que acompanharam a Copa do Mundo de 2006, realizada na Alemanha, assistiram a uma campanha promovida pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) contra o racismo nos estádios. Antes dos jogos, os capitães dos times liam uma mensagem anti-racista no idioma de seu país, diante de uma faixa com a expressão “Diga não ao racismo”, em inglês. Mesmo com essa campanha, após a final da Copa, em que o capitão da França, Zinedine Zidane, foi expulso de campo por dar uma cabeçada no zagueiro italiano Marco Materazzo, a imprensa internacional chegou a levantar a hipótese de que o francês, que é descendente de árabes, tenha sido vítima de preconceito por ter sido chamado de “terrorista”. A hipótese foi descartada após os depoimentos de Materazzi e Zidane na sede da Fifa, na Suíça, mas os casos de discriminação e racismo que justificam a campanha e o endurecimento da lei e das punições têm sido recorrentes.
Antes mesmo do início da Copa, o Comitê Executivo da Fifa já havia aprovado, em março deste ano, uma emenda ao artigo 55 de seu Código Disciplinar, apoiado no testemunho do jogador negro da seleção francesa, Lílian Thuram, sobre episódios de discriminação e racismo no futebol. Há cinco anos, o jogador francês já havia participado da Primeira Conferência da Fifa Contra o Racismo, em Buenos Aires, capital argentina, e sua participação na causa anti-racista colaborou para o endurecimento das sanções. Além das multas, que já eram previstas no Código Disciplinar, as novas medidas vão desde a suspensão do jogo e a dedução de 3 pontos do time do jogador que cometer a ofensa, passando por nova suspensão e dedução de 6 pontos em caso de segunda ofensa, até a desqualificação do time de uma competição, dependendo do caso.
A grande novidade dessa emenda é a previsão de medidas mais punitivas para os casos de reincidência, uma das sugestões enviadas pelo presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, ao presidente da Fifa, Joseph Blatter. Teixeira entregou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no início de abril, uma carta enviada por Blatter, na qual ele agradece o apoio do governo brasileiro na campanha contra o racismo no futebol mundial. Uma das medidas da política nacional foi a criação de uma comissão especial, pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), para apurar casos de racismo no futebol e propor ao Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial ações para superação do problema. Antes do endurecimento para os casos reincidentes, a CBF já havia alterado o seu estatuto, cumprindo determinações da Fifa, prevendo punições para atos de discriminação de raça, cor, idioma e religião. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva também prevê em seu artigo 187 punição para ofensa moral que represente discriminação a raça, cor ou etnia, e os punidos são tanto o ofensor que fizer a discriminação em campo de futebol quanto o seu clube.
Para o estudioso do assunto Antonio Jorge Soares, das universidades Gama Filho e Federal do Rio de Janeiro, a agressão verbal ou por gesto, ligada à cor da pele, ocorre no calor de um jogo de futebol como ocorrem diversas outras agressões em situações de conflito, seja entre jogadores ou entre um casal. “No jogo da provocação, a pessoa puxa aquilo que sabe que vai agredir mais, que vai abalar mais a estrutura emocional da outra”, avalia. “É muito diferente de uma situação em que uma garota branca chega com um namorado negro em casa, o pai não diz nada, e quando o namorado vai embora ele fala para ela não trazer mais o sujeito para casa”, compara.
O próprio rei do futebol, Pelé, relata em sua recém-lançada biografia ter passado por uma situação como essa última em sua juventude: “Houve uma garota, uma das primeiras, por quem eu sentia uma atração muito forte, mas o pai dela acabou com tudo: chegou na escola um dia e deu uma bronca nela por estar conversando comigo. ‘O que você está fazendo com esse negrinho?’, gritava. Foi a primeira vez, creio, que tive contato direto com o racismo, e foi absolutamente chocante. Minha namorada era branca, mas nunca tinha me passado pela cabeça que alguém pudesse se incomodar com aquilo – ou comigo”, conta Pelé no livro escrito por Orlando Duarte e Alex Bellos.
Mas a discriminação, quando ocorre dentro de campo, não é vista da mesma forma pelos dois lados do conflito. Em março deste ano, após dar uma cotovelada no volante Jeovânio, do Grêmio, o zagueiro Antônio Carlos, do Juventude, foi expulso e deixou o gramado esfregando o dedo na pele do braço e gritando “macaco”, em referência à cor da pele do adversário. Antônio Carlos, que já serviu à seleção brasileira, fez um pedido público de desculpas, alegando que no calor da disputa, desferir palavrões dos mais variados é algo comum e que não deveria ultrapassar as linhas do gramado. Jeovânio, porém, disse ter se sentido humilhado e, mesmo com o pedido de desculpas, decidiu processá-lo.
Reação semelhante teve o jogador negro Grafite, ex-atacante do São Paulo, após ter sido chamado de “macaquito” pelo argentino Leandro De Sábato, do Quilmes, durante uma partida pela Libertadores da América do ano passado. Grafite, que assim como Jeovânio, disse ter se sentido humilhado, prestou queixa, e De Sábato, que foi preso logo após a partida, teve que passar duas noites detido na 34ª delegacia de polícia de São Paulo, não podendo viajar de volta para a Argentina com seus colegas de clube. Ele, no entanto, não foi enquadrado em crime de racismo, que é inafiançável, mas por injúria grave, e após o pagamento da fiança foi liberado.
As agressões racistas ligadas ao futebol nem sempre se dão dentro do campo e podem ter outras motivações além da cor da pele. “Na Europa, alguns grupos de torcedores são xenófobos ou seja, têm aversão a estrangeiros”, lembra Mauricio Murad, diretor do Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Brasileiros como o lateral Roberto Carlos, do Real Madrid, e o atacante Robert, do Betis, ambos da Espanha, já foram vítimas de discriminação e, em fevereiro deste ano, em partida do campeonato espanhol, o atacante camaronês Samuel Eto’o, do Barcelona, ameaçou abandonar o campo ao ser insistentemente agredido pela torcida do Zaragoza. Seus companheiros de clube, entre eles Ronaldinho Gaúcho, o convenceram a continuar no jogo. A federação espanhola multou o clube da torcida agressora em 9 mil euros. “A UEFA União das Associações Européias de Futebol tem estudado medidas para punir também a torcida, como usar câmeras de vigilância nos estádios”, afirma Murad. Multa mais severa foi aplicada ao Lazio, da Itália, e a seu ídolo Paolo Di Canio, após ele comemorar seu gol decisivo contra a Roma com uma saudação fascista, em janeiro de 2005: 10 mil euros.
Movimentos neo-fascistas e neo-nazistas têm preocupado a Europa. Murad, que esteve na Alemanha durante a Copa, diz que, em uma conferência sobre segurança realizada antes do torneio, ele perguntou ao presidente do comitê organizador, Franz Beckenbauer, se Ronaldinho Gaúcho - considerado pela Fifa o melhor jogador do mundo - teria segurança em caminhar sozinho de madrugada pelas ruas do país. “Ele reconheceu que não, por causa dos skinheads, que são neo-nazistas e xenófobos”, conta. Segundo Murad, a polícia alemã descobriu durante o torneio 142 grupos neo-nazistas, que atuavam não apenas nos estádios, mas também em shows e estações de metrô.
História do racismo no futebol brasileiro
Embora seja reconhecidamente o esporte mais popular no Brasil, “por aqui, o futebol começou como esporte extremamente elitista e racista”, afirma Murad. De acordo com o sociólogo, marinheiros ingleses e padres jesuítas já jogavam futebol antes de ele ser introduzido entre os brasileiros pelos descendentes de ingleses Charles Miller, em 1894, em São Paulo, e Oscar Cox, pouco depois, no Rio de Janeiro. A partir de 1900, começaram a surgir os primeiros clubes que, segundo Murad, impuseram critérios de cor e classe social para selecionar seus jogadores, exigindo riqueza e sobrenome duplo ou linhagem familiar. “Tinha muito preconceito naquela época, e é bom lembrar que fomos o último país a abolir a escravidão, pouco antes do futebol chegar aqui”, diz.
O time do Bangu, ligado a uma fábrica de tecidos, no Rio de Janeiro, foi um dos primeiros clubes a aceitar jogadores negros, já em 1906. “Era apenas para completar o time, porque seria difícil conseguir 22 gerentes de fábrica para jogar futebol. Mas já era um sinal”, aponta Murad. Em 1910, o Corinhtians foi fundado em São Paulo como o primeiro clube de origem realmente popular. Por volta de 1915, o futebol já começava a ser praticado pelas camadas sociais mais pobres nos campos de várzea, embora a maioria dos clubes, paralelamente, ainda permanecesse elitista.
Um deles, o Fluminense, fundado por Oscar Cox em 1902, aponta atualmente em seu site uma história curiosa sobre a origem do apelido de sua torcida, chamada de pó-de-arroz. O jogador negro, Carlos Alberto, que havia sido transferido do América para o Fluminense em 1914, com receio dos aristocráticos do clube, teria tentado disfarçar a cor da pele com pó de arroz, em uma partida realizada justamente no aniversário da abolição, 13 de maio. Durante o jogo, o suor o teria traído e a torcida gritaria da arquibancada: “pó-de-arroz!” Soares acrescenta outros elementos a essa versão: “Se o clube fosse racista, ele não teria ido para o Fluminense. Mesmo em relação à torcida, é estranho que houvesse preconceito contra ele, porque Carlos Alberto era filho de um fotógrafo famoso na época. Ele foi ofendido, sim, pela torcida do América, por causa da transferência. E o termo ‘pó-de-arroz’ podia ser uma referência ao empoamento da sociedade aristocrática e, no início do século XX, também era usado para se referir a cocaína”, explica.
O campeonato carioca de 1923, para os pesquisadores, é particularmente emblemático. Vindo da segunda divisão com um time de negros, mulatos e brancos pobres, o Vasco da Gama se sagrou campeão da divisão principal naquele ano. Enquanto Murad aponta esse episódio como um grande abalo no racismo, “um fenômeno no futebol e não do futebol”, Soares destaca aí o embrião da profissionalização no esporte. “Aquele time do Vasco era fisicamente superior aos outros, tinha uma estrutura profissional encoberta”, afirma, observando que o amadorismo ainda era um mecanismo de resistência das elites que governavam o esporte.
Negros ilustres
Em seu livro Dos pés à cabeça – elementos básicos de sociologia do futebol, Murad aponta como primeiro grande ídolo do futebol brasileiro um mulato, Arthur Friendenreich, filho de um alemão com uma negra. Ele marcou mais gols que Pelé, mas não foram todos documentados. Entre os que têm registro está o primeiro gol do futebol profissional brasileiro, marcado pelo São Paulo na goleada de 5 a 1 sobre o Santos, em 12 de março de 1933. Outro negro que se tornaria ídolo nos anos 1930 seria Leônidas da Silva, apelidado de Diamante Negro, que se consagrou como centroavante da seleção brasileira na Copa de 1938, na França. Tido como inventor da “bicicleta”, tipo de gol que Pelé lamenta não ter conseguido marcar em nenhuma das quatro copas que participou, o próprio Leônidas atribui a invenção da jogada a Petronilho de Brito, irmão de Waldemar de Brito, responsável por levar de Bauru para Santos, em 1953, aquele que viria a ser o maior ídolo negro de todos os tempos. Em pesquisa realizada pela Organização das Nações Unidas em 1991, para saber os nomes mais conhecidos do planeta, o terceiro da lista foi “papa”, o segundo foi “Coca-Cola” e o primeiro foi “Pelé”.
Leia mais
O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho. Petrópolis: Ed. Firmo, 1994.
Dos pés à cabeça - elementos básicos de sociologia do futebol, de Maurício Murad. Rio de Janeiro: Irradiação Cultural, 1996.
Futebol, malandragem e identidade, de Antônio Jorge G. Soares. Vitória: Secretaria de Produção e Difusão Cultural/UFES, 1994.
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