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Reportagem
Da alfabetização à leitura na vida cotidiana: um percurso sinuoso
Por Maria Marta Avancini
10/12/2013

Na sociedade da informação, a leitura é a chave para o conhecimento. A diversidade de meios e formatos possibilitados pelo avanço das tecnologias de comunicação, num contexto de globalização, exige dos indivíduos capacidade de interagir com uma grande quantidade e diversidade de informações e dados em circulação.

Nesse cenário, a relevância da leitura, enquanto ferramenta para se movimentar no mundo, amplia-se e modifica-se em relação, por exemplo, a um tempo em que os livros eram raros e de difícil acesso, como ocorria até meados do século XIX. Hoje em dia, há textos de diversos tipos. “O ser humano precisa realizar leituras diversificadas e de qualidade para sobreviver na era da globalização”, analisam Lafaiete da Silva Carvalho, Ursula Blattmann, Lúcia de Lourdes Rutkowsky Bernardes e Graça Maria Fragoso no artigo “A leitura na sociedade do conhecimento”.

Esse tipo de habilidade, tão necessário na vida contemporânea, remete ao conceito de alfabetização funcional. Segundo Vera Masagão Ribeiro, o termo “alfabetismo funcional” surgiu nos Estados Unidos na década de 1930. Naquela época, era utilizado para designar a capacidade de entender instruções escritas para a realização de tarefas militares.

“A partir de então, o termo passou a ser utilizado para designar a capacidade de utilizar a leitura e a escrita para fins pragmáticos, em contextos cotidianos, domésticos ou de trabalho”, conta a pesquisadora, que é coordenadora da ONG Ação Educativa. O conceito de alfabetização funcional difere, portanto, da alfabetização pura e simples, que diz respeito à capacidade de ler e escrever.

“Na literatura americana, o sentido mais corrente do termo é aquele que referencia o alfabetismo funcional às competências funcionais”, complementa Ribeiro. Ou seja, a alfabetização funcional diz respeito à capacidade de utilizar a leitura e a escrita, incorporando-a na vida das pessoas.

Nesse sentido, o conceito de alfabetização funcional está relacionado ao de letramento: este diz respeito ao uso da leitura e da escrita na sociedade de maneira geral, conforme assinala a pesquisadora Angela Kleiman, professora titular aposentada do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Para além da decodificação

Além disso, pontua Kleiman na publicação Preciso “ensinar” o letramento? Não basta ensinar a ler e escrever?, o letramento engloba a alfabetização: "A alfabetização é inseparável do letramento. Ela é necessária para que alguém seja considerado plenamente letrado, mas não é suficiente", esclarece. Afinal, a alfabetização envolve apenas o domínio do sistema alfabético e ortográfico.

Segundo Magda Becker, professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), letramento diz respeito a práticas de leitura e escrita, ou seja, ultrapassa a dimensão da identificação de letras, sílabas e palavras, processo assegurado por meio da alfabetização, que possibilita a uma pessoa ler e escrever.

O letramento consiste na apropriação do sistema de escrita e no convívio efetivo com a leitura. Envolve, portanto, desde hábitos como buscar um jornal ou uma revista para ler, acompanhar a leitura do folheto da igreja ou do panfleto do sindicato, frequentar livrarias, escrever textos, até situações como as vivenciadas por crianças não alfabetizadas que fingem ler um livro. Assim, letrar é conduzir o indivíduo a práticas sociais de leitura e escrita.

Além disso, o letramento não diz respeito apenas à aprendizagem da língua materna. Compreender um mapa ou resolver problemas matemáticos requer certo tipo de letramento numa determinada área do conhecimento. Ao mesmo tempo, a leitura é pré-requisito para a aprendizagem das mais diversas disciplinas.

Monitorando o analfabetismo funcional

A cada dois anos, a Ação Educativa realiza, em parceria com o Instituto Paulo Montenegro – ligado ao Ibope –, um levantamento nacional, gerando o Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf). O mais recente, de 2011, completa uma série história de pouco mais de uma década, possibilitando uma radiografia da condição atual dos brasileiros em termos de capacidade de utilização da leitura e da escrita.

O último relatório aponta um cenário de melhoria em relação aos níveis mais baixos de alfabetização entre 2001 e 2011. “No entanto, não conseguimos avançar significativamente no nível pleno”, analisa Vera. O Inaf contempla quatro níveis: analfabetismo, nível rudimentar, nível básico e nível pleno. Cada um deles descreve determinadas habilidades medidas por meio de uma escala de alfabetismo. Esta escala inclui leitura, escrita e cálculo matemático.

O analfabetismo é a condição das pessoas que não são capazes de realizar tarefas simples, como a leitura de palavras e frases, mas conseguem identificar alguns números familiares (preços, números de telefone etc.). O nível rudimentar diz respeito à capacidade de localizar uma informação explícita em textos curtos e familiares (uma pequena carta), ler e escrever números e realizar operações simples (usar dinheiro para pequenas compras). Esses dois níveis caracterizam o analfabetismo funcional.

As pessoas classificadas no nível básico são funcionalmente alfabetizadas, pois leem e compreendem textos de tamanho médio, localizam informações fazendo inferências, além de serem capazes de resolver problemas matemáticos envolvendo sequência simples de operações, e têm noção de proporcionalidade. Mas não são capazes de realizar operações complexas que envolvam etapas ou relações.

No nível pleno, a pessoa consegue compreender e interpretar textos longos, distingue fatos de opiniões; na matemática, é capaz de resolver problemas que envolvam percentuais, proporções, cálculo de área, além de interpretar tabelas, mapas e gráficos. Nota-se, então, que, para o Inaf, o alfabetismo funcional abrange a capacidade de numeramento, ou seja, a aquisição de competências matemáticas.

“Desenvolver a capacidade de numeramento é fundamental na sociedade moderna, tão marcada pela tecnologia”, analisa a coordenadora da Ação Educativa. Segundo ela, estudos internacionais como os realizados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), combinam as duas dimensões para mensurar o alfabetismo funcional.

Avanços a passos lentos

O Inaf mostra que, em 2001, 12% da população brasileira de 15 a 64 anos era analfabeta, proporção que se reduziu pela metade em 2011, atingindo 6%. A proporção de brasileiros adultos no nível rudimentar também diminuiu – caiu de 27% para 21%. Em contrapartida, o indicador computou aumento da população classificada no nível básico: 34% para 47%. Já o nível pleno se manteve estável, agregando 26% da faixa etária de 15 a 24 anos em 2001 e 2011, com pequenas oscilações ao longo da década.

A classificação dos resultados em duas categorias – analfabetos funcionais e alfabetizados funcionais – indica uma redução do analfabetismo funcional no período (de 39% para 27%) e um aumento dos alfabetizados funcionais (de 67% para 73%).

Mesmo assim, a tendência de estabilidade no nível pleno preocupa. “Estamos estagnados. Não é disso que o Brasil precisa para se transformar em uma democracia consolidada”, analisa Ribeiro. “É importante reduzir o número de analfabetos absolutos, mas o desafio para se dar o salto de um patamar para outro é enorme, exige fortes investimentos em políticas públicas”.

Esse resultado está diretamente relacionado às deficiências da educação básica no país, especialmente na fase da alfabetização, e às trajetórias das políticas educacionais no período – que avançaram no campo do acesso à escola, resultando na ampliação das matrículas, mas que patinam na qualidade e na garantia do direito à aprendizagem.

O próprio Inaf ajuda a visualizar esse cenário. Considerando as pessoas que completaram quatro anos de escolaridade, 53% permanecem nos níveis do analfabetismo funcional, chegando ao nível rudimentar. Já o nível pleno que, espera-se, tenha sido atingido por quem cursou o ensino médio, só abarca 35% das pessoas que chegaram a este patamar de escolaridade. A maior parcela das pessoas que declararam ter ensino médio foi classificada no nível básico (57%).

Impactos e consequências

A dificuldade de compreensão e de interpretação por parte de uma parcela significativa dos brasileiros ajuda a compreender os resultados da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, que investigou os hábitos de leitura de um universo de 88,2 milhões de pessoas. Destas, 50% não leem livros – 5 pontos percentuais a mais do que no levantamento anterior, realizado em 2007. Os livros não são o principal tipo de material escrito acessado: do total de leitores investigados nessa pesquisa, 53% leem revistas e 48% leem jornais.

A pesquisa aponta para uma relação entre o hábito de ler e a escolaridade: enquanto as pessoas que cursaram até a 4ª série leram 2,7 livros por ano, quem tem o ensino médio leu, em média 3,9 livros, por ano. Na faixa que tem ensino superior, a média salta para 7,7 livros/ano.

“A escola é uma instituição fundamental para o desenvolvimento do letramento e para criar o hábito da leitura”, analisa Ribeiro. Segundo a pesquisa, o professor é a principal influência para se criar o hábito de ler (45%). A influência da mãe também é significativa (43%). O gênero mais lido são os livros didáticos (66%) e a Bíblia (65%).

A renda e o fato de ser estudante também são fatores que influenciam no hábito. Os estudantes leem 6,2 livros por ano, proporção que cai para 2,3 entre os não-estudantes. Já quem possui renda maior de 10 salários mínimos por ano leu 8,6 livros em 2011 ante a 2,7 livros na faixa de até 1 salário mínimo.

A modificação desse cenário é crucial para a promoção efetiva da inclusão social. Afinal, autonomia e exercício pleno da cidadania são algumas das dimensões associadas ao alfabetismo e ao letramento: quanto mais se sabe, mais e maiores as chances de uma participação social mais ativa. Para tanto, saber interpretar, criticar e se posicionar frente às informações é uma ferramenta essencial.